domingo, 27 de dezembro de 2015

Quês de ano novo

Que as nuvens tirem férias no réveillon. Que a contagem regressiva termine em abraços. Que os fogos explodam os maus pensamentos. Que o champanhe adoce as ideias. Que a ceia engorde a esperança. Que a música ensurdeça o desânimo. Que as ondas levem as notícias ruins. Que os ventos tragam as boas. Que a saideira afogue os pessimismos. Que mais festas como essa se repitam. Que as férias demorem a acabar. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que o verão não faça a gente se sentir em Mordor. Que chova um Rio Doce inteirinho nos reservatórios. Que seja amarga a pena para os responsáveis pela tragédia em Mariana. Que eu ganhe muito chocolate: doce ou amargo. Que o Faustão abra a boca só para comer. Que a Cláudia Leitte entenda de uma vez por todas: Ivete só tem uma. Que a Lícia Manzo escreva mais novelas. Que o Discovery compre episódios inéditos dos Irmãos à obra. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que não se confunda liberdade de expressão com liberdade de manipulação. Que as pessoas não se contentem com as manchetes. Que ouçam quem pensa diferente. Que opinem menos e argumentem mais. Que não espalhem desinformação nem reforcem preconceitos. Que duvidem dos especialistas entrevistados na tevê. Que não troquem o bom humor pelo mau gosto. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que venham muitas medalhas. Que os atletas brasileiros joguem como Neymar e falem como Joana Maranhão. Que o Vasco volte à primeira divisão e não saia mais de lá. Que a seleção mereça novamente a inicial maiúscula. Que a audiência do Linha de passe seja cada vez maior que a do Bem, amigos. Que acabem os direitos exclusivos de transmissão. Que se democratize a mídia. Que o futebol e o carnaval sejam realmente para todos. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que panelas sejam usadas para matar a fome. Que o Bolsa Família não sofra cortes. Que mais pobres e negros ingressem nas universidades. Que os estudantes de Sampa endureçam se necessário – pero sem perder a ternura. Que os índios sejam enfim ouvidos após 515 anos. Que refugiados encontrem portas abertas. Que mais gente viaje de avião pela primeira vez. Que se construam menos muros e mais pontes. Que se exercite a empatia. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que a Comic-Con venha para o Rio. Que mais tirinhas da Mafalda sejam compartilhadas. Que o Oscar premie os melhores. Que o mundo tenha um décimo da elegância de Julie Andrews e da lucidez do Chico. Que desliguem os celulares no cinema, please. Que os bons filmes nacionais sejam descobertos pelos brasileiros. Que se erradique de vez a síndrome de vira-lata. Que poetas e músicos recebam passe livre no metrô. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que todo cidadão seja considerado inocente até que se prove o contrário. Que os amigos do Aécio também sejam investigados. Que se respeite a democracia. Que Noam Chomsky e Ciro Gomes deem mais entrevistas. Que as bochechas de Pepe Mujica virem patrimônio da humanidade. Que a redação do Enem seja sobre as desigualdades promovidas pelo capitalismo. Que o Eduardo Cunha deixe o PMDB e vá para a PQP. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Que mãe, pai, mano, tios, primos esbanjem saúde. Que eu encontre os amigos mais vezes. Que muitas segundas e sextas sejam enforcadas. Que a Fernanda continue a fazer de mim a minha melhor versão. Que atravessemos o Atlântico outra vez. Que eu ganhe leitores. Que os leitores ganhem algumice lendo meus textos. Que todo mundo saia bem na foto. Que a conexão seja mais veloz. Que o povo substitua o WhatsApp por vida, por exemplo. Que aquele senador e seus eleitores aceitem o resultado das urnas.

Sobretudo: que a Força esteja com você. Sempre.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Olhos nos olhos

Uma pena que Chico – artista brasileiro, documentário de Miguel Faria Jr., fique restrito a poucos cinemas. Uma pena ainda maior que seja visto apenas (ou na quase totalidade dos casos) pelos fãs de sua música, pelos leitores de seus romances, pelos admiradores de sua postura política, pelas senhorinhas que se afogariam felizes naqueles dois mares separados por um nariz.

Mais ou menos como suas peças, que sofriam com a censura antes de serem liberadas e, no fim das contas e dos cortes, eram apreciadas tão somente por quem já compreendia que o país vivia num regime autoritário. Os que mais avançariam na escala de evolução se assistissem ao filme – os walking deads que não se cansam de repetir, por exemplo, que no tempo da ditadura é que era bom – acabam nem chegando perto da bilheteria.

E perdem a chance de tomar um cálice de lucidez ao não escutarem aquele moço de mais de setenta anos rejeitar quaisquer nostalgias. Uma delas: a dos órfãos da bossa nova, que não só choramingam saudades de quando os garotos de Ipanema mandavam no gosto popular, como ainda rotulam de brega toda nota que não caiba em sua partitura estética. Não lhes ocorre que hoje a música do interior e da periferia – talvez a que mais represente o ouvido brasileiro – chega a toda a nação. E isso é bom, conclui o autor de “Paratodos”.

Assim como é bom ver os aeroportos cheios – ainda que o saguão de embarque, para desespero de alguns, conte cada vez menos ternos e cada vez mais chinelos.

Chinelos: impressão de que os pés de Chico descansam neles a projeção inteirinha, tamanha é a sua naturalidade ao abordar temas sérios – como a repressão militar ou a procura pelo irmão perdido – e contar causos divertidos – como o show que fez com Toquinho na Itália, quando tiveram de tocar “A banda” umas cinco vezes e apelar até para “Mamãe, eu quero”, na tentativa de animar uma plateia de quinze testemunhas.

Outra palhinha dessa simplicidade franciscana que permeia todo o filme, e que pode surpreender os desavisados – por vir de um sujeito considerado um dos grandes da música brasileira –, surge no depoimento de um de seus funcionários sobre o costume do cantor de fugir de seu camarim para ficar no de seus músicos: “Já sabemos que é ele; é o único que bate antes de entrar”.

Entremeado com joias buarqueanas interpretadas por artistas tão diferentes quanto Adriana Calcanhotto e Mart’nália, Péricles e Ney Matogrosso, além de trechos de sua obra literária lidos por Marília Pêra – o que por si só já valeria o ingresso –, Chico nos dá uma oportunidade rara de entrar sem bater nas rodas vivas que são os olhos do poeta que jamais deixou a banda da História passar.

Um homem que – mesmo quando refestelado, ao lado de Tom e Vinicius, na mesa de um bar ou jogando uma pelada com os amigos – nunca esteve à toa na vida.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Terceirizando a felicidade

Você que não está nem aí para o Natal porque acha uma presepada essa história de presépio; você que não aguenta mais ver aquele idoso-propaganda, vermelho da cabeça aos pés, anunciando perus em promoção; você que não suporta essa época do ano em que as pessoas praticamente se obrigam a nevar sorrisos, mesmo com a temperatura e os preços subindo – você tem o meu perdão.

Só não tem uma uva-passa da minha misericórdia quem contrata firma para montar o próprio pinheirinho. Sério. Essa gente existe. E alega não ter espaço na agenda para comprar um arbusto que seja nas Lojas Americanas. Jura não dispor de meia hora para juntar o quebra-cabeça de galhos numerados, testar aqueles pisca-piscas que mal resistem até a noite feliz, pendurar aqueles enfeites de purpurina pura, prender no topo aquela estrela que insiste em tombar para a direita.

Mas que graça tem ostentar uma árvore se não foi você que a plantou? Pior: se não foi você que resolveu onde ficaria a bolota mais bonita?

Dia desses, estava eu passando por uma pracinha quando dei com várias crianças e suas babás. Era domingo. Do-min-go. A pergunta que não quis calar: em que lugar do mundo estariam os pais daquelas mudinhas de gente que não ali, ao lado delas, rolando na grama, sujando as mãos de terra, empurrando o balanço, jogando bola, apostando corrida com o vento, cuidando de joelhos ralados?

Cada vez mais, as pessoas delegam a terceiros aqueles instantes que poderiam render lembranças dignas dos findes cheios de sobremesa e colchonete na casa dos avós.

É o fulano que chama a Tia Augusta para levar os filhos à Disney e perde uma selfie com o Mickey. É o beltrano que encarrega a noiva de escolher o bufê e desperdiça a prova dos canapés. É a sicrana que pega o resumo de Dom Casmurro na internet e deixa de olhar nos olhos da Capitu. É a lindona que vota em quem o vizinho vota e joga fora a oportunidade de decidir seu futuro. É o bonitão que manda a secretária comprar o presente da esposa e abre mão do sorriso da amada ao perceber que foi ele mesmo quem garimpou o mimo. É a galera que transfere a vida social para as redes e mal lembra o quão gostoso é um abraço coletivo entre amigos.

Desse jeito, não demora até que terceirizem férias e feriados – já que praia, cachoeira, cinema, teatro ou debobeirismo no sofá só geram estresse e ansiedade.

Nem preciso dizer que eu ofereceria fácil, fácil meus serviços de baby-sitter em Orlando, ou mesmo meu apurado paladar na próxima degustação de acepipes. Reler Machado também não seria sacrifício. Abraços? Forneço-os sem cobrar honorários. Mas, por ora, vou poupar minha generosidade. Vou dar aos enfastiados de plantão uma última chance de semear e cultivar a própria árvore; de experimentar seus frutos – sempre os mais saborosos.

Pelo menos até eu convencer uns clientes a me contratarem para representá-los em cada uma daquelas sessões de tortura.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Primeiro assédio

Não sei se ele aconteceu quando fui obrigado a torcer contra as meninas na dança das cadeiras promovida pela loira do shortinho micro, ou quando fui levado a assistir àquela novela em que a vilã-mor era mulher, a alpinista social era mulher, a bêbada era mulher, a assassina era mulher – e o único homem realmente malvadão da história dava uma banana para o Brasil antes de fugir milionário.

Talvez tenha acontecido quando ouvi um velho sucesso em que valia tudo – só não valia dançar homem com homem, nem mulher com mulher.

Quem sabe se não aconteceu quando aqueles marmanjos entraram lá em casa. Era noite. Era domingo. Um provocava o outro: chegou o negão. O outro retrucava: negão é teu passadis, ô cearense cabeça chata. Até que o terceiro se meteu: esse aí camufla. No que o quarto mexeu o pezinho em sinal negativo: camufla nada, é muito macho. Só interromperam a discussão para elogiar minha vizinha: eita bicho bão.

Uma brincadeira inocente, uma coincidência não planejada, uma rima fácil, um apelido carinhoso, uma cantada ingênua – mas pode chamar de assédio.

Segundo o dicionário, a palavra – que ganhou os trends graças a uma campanha que tem incentivado as mulheres a compartilharem experiências de abuso sexual sofridas por elas – designa “uma operação militar ou um conjunto de sinais em lugar determinado, no qual se estabelece um cerco com a finalidade de exercer domínio; insistência impertinente; perseguição, sugestão ou pretensão constantes de alguém em posição privilegiada junto a outrem para conseguir alguma coisa”.

Convenhamos: o meu, o seu, os nossos neurônios sofrem esse tipo de cerco desde priscas eras – eras bem anteriores àquela em que se dizia que abolir a escravidão prejudicaria a balança comercial. E eles o sofrem trinta horas por dia, oito dias por semana. Das notícias da Monalisa às piadas do Jô, da santa missa em seu lar aos gols da rodada. Feito minúsculos iraques de massa cinzenta, são bombardeados full time por drones que tentam convencê-los de que a vida é desse ou daquele jeito e assim deve permanecer. Você que não seja chato de contestá-la.

Sereias só podem ser felizes se casarem com príncipes, ainda que isso custe suas escamas. O que há de errado com crianças ralando o bumbum na boquinha da garrafa? Tão fofas. Ciclovias e manifestações só servem para fechar o trânsito. Tem mais é que amarrar no poste: bandido bom é bandido morto. Viu aquele menino que nasceu na favela e virou juiz em Brasília? Prova de que qualquer um, com força de vontade, pode ser alguém. E o cara da novela? Defende os direitos humanos, os excluídos, mas na verdade é um bandidaço – igualzinho na vida real. Saudade do tempo em que mulher não ficava ofendidinha com um simples xaveco.

Há quem reclame que hoje tudo é assédio. Que o mundo anda aborrecido demais. Que o politicamente correto tirou o humor das relações. Que não se pode abrir a boca, sob o risco de ser acusado de discriminar os que a mantêm fechada. Que qualquer fonema emitido na hora e lugar errados pode ser usado contra você num tribunal.

Esclarecendo: não é que hoje tudo seja assédio. Já era assim na pré-história de anteontem. A diferença? Hoje o assédio é denunciado, é julgado, é punido. Apesar de espasmos de retrocesso aqui e ali (reação esperada de quem vê seus privilégios ameaçados), as pessoas têm tido cada vez menos medo – e mais liberdade – de expressar ideias e sentimentos antes apenas sussurrados, quando não brutalmente silenciados. A democracia avança e há de seguir avançando.

Aos incomodados: que se mudem. Ou que mudem o disco. Vale tudo mais não.

domingo, 29 de novembro de 2015

Menos muros, mais pontes

Estados Unidos, 1957. As bruxas da Guerra Fria todas soltas. Enquanto os americanos temem um ataque nuclear no quintal de casa e a possibilidade de suas crianças virarem comida de comunista, o advogado especializado em seguros James B. Donovan (Tom Hanks) é convocado por Washington para defender – pró-forma – o espião russo recém-capturado Rudolf Abel (Mark Rylance).

Essa é a história real que Steven Spielberg resgata em Ponte dos espiões – um filme em que o cineasta expõe não só a hipocrisia de uma nação que se diz democrática (e é capaz de promover um julgamento apenas para manter as aparências), mas também a estupidez de um governo que não percebe que executar seu prisioneiro significa desperdiçar uma valiosa moeda de troca.

Pena que a coragem temática do diretor resvale na sua eventual falta de sutileza: o momento em que Donovan discursa na Suprema Corte não carecia de tanta música e montagem – a interpolação entre a fala do advogado e a decolagem do piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell) rumo à sua missão na União Soviética é usada tão somente para reiterar aos berros o heroísmo do primeiro.

Pa-ra-quê? Pa-ra-quem? Que espectador ainda não tinha reparado o quão capitão-américa era aquele homem comum que enfrentava o Sistema?

Sutileza, porém, não falta à atuação de Rylance. O ator interpreta Abel ciente de que a discrição deve ser o principal talento de qualquer espião. É especialmente simbólica a sequência, ainda no início do longa, em que ele desvia a atenção dos agentes do FBI – para uma dentadura inclusive – enquanto literalmente apaga um arquivo importante. Certeza de que outro James (não o Donovan) o aplaudiria de pé.

Merece aplausos também o humor com que os irmãos Coen adoçam o roteiro: o Nescafé com dois torrões de açúcar e creme, oferecido ao personagem de Hanks assim que o advogado põe as digitais na CIA, é uma forma divertida e elegante de mostrar que a agência sabe tudo sobre ele. Outra piada bastante eficaz é a que brinca com os nomes enooooormes das nações socialistas.

Mais do que eficazes – inspiradíssimas – são algumas transições entre cenas, como a passagem que começa no tribunal (com o juiz pedindo que o público fique de pé) e termina na escola (com as crianças levantando para um juramento à pátria), ou a que se inicia no hangar onde os pilotos conhecem certo avião e acaba na mesa onde estão os objetos apreendidos no apartamento de Abel.

Esses links (os raccords, como me ensinou Pablo Villaça) reverberam ainda mais numa história em que pontes superam muros, seja o de Berlim – que Donovan é obrigado a atravessar para negociar a troca entre Abel e Powers, detido pelos russos –, seja o do ódio – erguido pelos americanos ao constatarem que o advogado faria o que estivesse ao alcance da lei para defender seu cliente.

Um dos raros seres pensantes do lado ianque (justamente por se manter imune à paranoia inoculada em seus compatriotas), o protagonista se converte na ponte a que o título se refere. Tal metáfora ganha forma na última tela que Abel pinta e com a qual presenteia Donovan – uma tela que rima à perfeição com a da ponte do Brooklyn, retocada pelo espião ainda nos primeiros minutos do filme.

Em tempos de fronteiras ainda mais fechadas – e não falo apenas das cercas construídas por aqueles países avessos a refugiados ou imigrantes, mas em especial dos tapumes que tantos têm colocado nas próprias mentes –, nada mais oportuno do que recuperar a aventura de um sujeito que usou a inteligência e o diálogo como as únicas armas possíveis contra a ignorância e o medo.

domingo, 22 de novembro de 2015

Às armas, cidadãos?

Não consultei a lista da Billboard, mas aposto que a Marselhesa esteve entre as mais pedidas da semana. O hino francês bombou – sem trocadilho macabro – nos últimos dias. Gente à beça tirou o biquinho do armário para bradar seus famosos versos: “Aux armes, citoyens,/ Formez vos bataillons,/ Marchons, marchons!” (“Às armas, cidadãos,/ Formai vossos batalhões,/ Marchemos, marchemos!”).

Até aí nada de mais. Aqueles acordes bélicos mexem com o Robespierre que existe em cada um de nós.

Para quem guilhotinou essa aula de História, Rob foi um personagem importante da Revolução Francesa. Líder dos jacobinos – facção política radical que representava a pequena burguesia contra a monarquia absolutista –, ajudou a implantar o regime do terror, responsável por decapitar nobres, clérigos e até militantes moderados, acusados de não defenderem a causa com o devido vigor.

De volta aos dias de hoje – em que o terror também não poupa cabeças –, esse mesmo espírito beligerante parece ter deixado os versos da Marselhesa para baixar em certos corpos e degolar seu bom senso. Os possuídos passaram a disparar por aí a certeza de que, se houvesse acesso irrestrito a armas de fogo na França, os próprios cidadãos poderiam ter se defendido dos atentados daquela trágica sexta-feira e, portanto, preservado algumas dezenas de vidas.

Fazendo de conta que eu estivesse igualmente oco do pescoço para cima, quem sabe não comprasse essa e outras certezas: a certeza de que todas as pessoas que foram ao Bataclan teriam saído de casa para assistir a um show armadas; a certeza de que seus revólveres seriam páreo para os rifles dos terroristas; a certeza, enfim, de que mais tiros sendo disparados num lugar fechado, apertado e escuro salvariam mais vidas.

A certeza – aqui retrucam os descabeçados – de que os extremistas pensariam duas vezes antes de atacar. Porque as armas asseguram a paz; elas dissuadem.

Como assim as armas asseguram a paz? Como assim elas dissuadem? Um Google rápido e a gente descobre o quanto: conforme aponta o Institute for Economics and Peace, ações de grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico cresceram consideravelmente desde o início da chamada guerra ao terror – que se seguiu ao colapso das Torres Gêmeas, em 2001. Hoje há cinco vezes mais mortes por ataques terroristas do que naquela época. Em 14 anos, foram registrados 48 mil atentados em 123 países, com 107 mil vítimas fatais.

Enquanto isso, estimativas do Bureau of Investigative Journalism mostram que, a cada tentativa de executar um líder terrorista, os drones norte-americanos matam pelo menos 28 civis inocentes. Nos últimos dez anos, verificou-se essa proporção no Afeganistão, no Iêmen, no Paquistão e na Somália – países que, infelizmente, não têm uma Torre Eiffel para pintar com as cores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, nem um mundo inteiro para chorar seus mortos.

Eu poderia terminar este texto com a lucidez de Noam Chomsky, renomado pensador segundo o qual “um modo fácil de combater o terrorismo é parar de participar dele”. Ou mesmo com os versos surrados de um hit pacifista, contraponto óbvio mas necessário ao hino francês. Só que não. Vou preferir a simplicidade de quatro palavritas com as quais encerrei a discussão real que deu origem a estas linhas.

As armas dissuadem. Ahã.

domingo, 15 de novembro de 2015

De portas abertas

Quantas vezes não vimos chefes de Estado virem a público, depois de um atentado como o que ocorreu na última sexta-feira em Paris, para anunciar fechamento de fronteiras, controle mais rígido da imigração, aumento de gastos militares, ataques preventivos a possíveis células terroristas nos confins do mundo, restrição de direitos civis (como à privacidade) – tudo em nome da tal guerra contra o terror?

O presidente francês François Hollande não fugiu à regra e prometeu uma resposta implacável aos extremistas da vez. Ponto para ele, segundo os analistas políticos. Diz o manual de boas maneiras do grande estadista que o representante-mor da nação – mais do que demonstrar equilíbrio e firmeza diante do caos – deve assegurar aos seus compatriotas uma reação à altura.

Eles precisariam disso para se sentir de fato protegidos.

Uma reação à altura. Uma reação à altura. Repito para mim mesmo a sentença e só consigo enxergar nela uma sentença: de morte. Quem realmente precisa de mais um soldado, de mais um fuzil, de mais um tanque, de mais um caça, de mais um míssil, de mais um drone a milhares de quilômetros matando ora terroristas, ora inocentes – ora outros inocentes – para se sentir mais protegido?

Até agora a chamada cruzada antiterror – da qual ouço falar desde os tempos em que o Rambo fuzilava figurantes em nome da liberdade – não trouxe a paz tão prometida; trouxe, sim, periódicos onzes de setembro para a humanidade. Do atentado em Nova York para cá, cidades como Beirute, Londres, Madri, Mumbai, Tel Aviv, entre tantas outras, já tiveram seus quinze minutos de sangue.

Sem contar as que convivem diariamente com a violência de grupos extremistas, em geral africanas e asiáticas, e que não despertam a mesma comoção mundial.

Um episódio que sempre lembro nessas horas é a reação de Israel – uma reação à altura, registre-se – ao assassinato de atletas seus por terroristas árabes durante os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. O governo israelense convocou seu serviço secreto (o Mossad) e deu a ele a missão de matar os responsáveis pelo crime. Desnecessário dizer que a retaliação promovida há quase meio século não resolveu os conflitos gravíssimos que ainda vitimam palestinos e judeus.

Por isso, o discurso protocolar de Hollande – provavelmente a ser seguido por uma contraofensiva bélica que só há de interessar aos fabricantes de armas – não me faz sentir nem um pouco protegido, e menos ainda esperançoso de que essa espiral aparentemente infinita de violência acabe um dia. Ele tão somente mantém as portas abertas para novas explosões de barbárie.

Quem dera o presidente francês fechasse de uma vez aquele manual e se inspirasse no exemplo de seus concidadãos, que (numa iniciativa que ficou conhecida nas redes sociais como #PorteOuverte) abriram suas casas para abrigar as pessoas que estavam nas ruas durante os atentados e precisavam de um lugar seguro. Uma atitude não só simpática dos parisienses – mas sobretudo corajosa.

Especialmente por ter sido tomada numa noite em que o medo recomendava o contrário – e o terror mais do que flanava por seus queridos bulevares.

domingo, 8 de novembro de 2015

Zapear é preciso

Entreouvido no elevador: nunca troco de canal. Trocar pra quê, se só vejo o jornal e a novela? Eu também não. A tevê está sempre no quatro.

Direito de cada um poupar o próprio controle-remoto. Mas não consigo entender quem tem mais de cem canais à disposição e se contenta com um só. Não sabe o que está perdendo: aquela receita de bolo caseiro com calda de frutas vermelhas; aquela viagem de trem pelo interior da Europa; aquele documentário sobre John Lennon; aquela entrevista com a Martha Medeiros; aquela série dos zumbis; aquele filmaço com a Julie Delpy; aquele show com Gil e Caetano.

Só para ficar no pacote básico da minha tevê a cabo.

Agora um off no lado de lá da telinha e um power no lado de cá – que conta com uma grade mil vezes mais variada do que qualquer emissora. Já notaram que é cada vez maior o número de criaturas como aquelas duas no elevador, impermeáveis a qualquer programinha que escape às mesmices de todos os dias?

Não é à toa que esses tipos, ao toparem com uma Simone de Beauvoir nos vestibulares da vida, esbugalhem os olhos como se encarassem um alien fazendo topless.

Surreal a gente habitar um mundo onde a cada segundo novas estações são sintonizadas, onde informação e opinião jorram das mais diversas mídias, onde a alta definição populariza cores que nem imaginávamos existir – e ainda assim aqueles marmanjos arregalem as vísceras por causa de um simples outubro rosa; ou porque um ator negro empunha um sabre de luz no trailer do mais recente Guerra nas estrelas.

Jedi bom é jedi branco, sentenciam os discípulos do Império – e que sith a pluralidade.

Quem sabe a oferta de tantos canais específicos (como o que só fala de ursos-polares veganos no Alasca ou o que só exibe casos de noivas suicidas em Acapulco) esteja guetizando as mentes e tornando-as menos afeitas à diversidade. Penso naquele indivíduo que passa madrugadas diante do Bloomberg e, de repente, é sequestrado pelos amigos para uma tarde no Maraca: em vez de gritar o nome do craque do time, o elemento faz versinho para o CEO do clube.

Sintoma típico de quem está precisando botar os neurônios para zapear com urgência – porque enfiou o mundo inteiro numa (minúscula) bolsa de valores.

domingo, 1 de novembro de 2015

Dava um filme

Imagine a cena: um pai apaixonado por cinema e pelos Beatles decide mostrar ao filho de quinze anos Os reis do iê, iê, iê (A hard day’s night, de Richard Lester). Crente, crente que ele vai adorar a banda e o filme. Que nada. O guri acha tudo horrível e chega a blasfemar que John Lennon era o pior de todos. Eu deserdava.

Sorte de Jesse que seu pai se chama David. Inconformado com a situação, o sujeito revira seus CDs até encontrar “It’s only love”, do álbum Rubber soul. Põe a música para tocar na esperança de que o filho ouça o que ele ouve. “Eles têm boa voz”, o garoto admite. Boa voz? “Mas o que você sentiu ouvindo a música?”, o pai quer saber. “Honestamente? Nada. Sinto muito”, responde o moleque – que ainda tem a pachorra de deitar a mão no ombro do daddy como se o consolasse.

É com sequências como essa, aparentemente banais, que David Gilmour reconstrói um pouco da história real entre ele e seu filho ao escrever O clube do filme (Intrínseca, 2009). Diante do total desinteresse do rebento pela escola, o pai – sem trabalho fixo, com dinheiro curto e tempo ocioso – faz a ele uma proposta fora do comum e, por isso mesmo, arriscada: você pode largar os estudos, desde que assista semanalmente a três filmes escolhidos por mim. Negócio fechado.

Entremeando as desventuras dos dois, que vão amadurecendo juntos, e comentários sobre filmes diversos – do hilário Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder, ao afetadíssimo Showgirls, de Paul Verhoeven, passando por Encurralado, discreta mas preciosa estreia de um jovem cineasta chamado Steven Spielberg –, Gilmour rabisca suas linhas com a simplicidade de quem prepara uma bacia de pipoca antes daquela sessão no sofá.

Exibe ainda os bastidores da própria trajetória – a de um ex-apresentador de tevê cinquentão com dificuldades de arranjar trabalho (“Não consigo arrumar uma porra de emprego nem como entregador”) – e do cinema – como o fato de o diretor Clint Eastwood jamais dizer “Ação!”, mas um elegante “Quando estiverem prontos”.

Sem lançar mão de efeitos especiais, reviravoltas a cada dez minutos ou malabarismos estilísticos, O clube do filme não só registra o relacionamento entre pai e filho com uma fotografia despojada – livre de filtros –, como ainda cativa o leitor com um zoom irresistivelmente agridoce nas chamadas pequenas coisas da vida.

(Arrisco dizer que dava um filmaço do Linklater, cineasta capaz de transformar qualquer conversa – ou retalhos de – em pura poesia cinematográfica. Vide o que ele fez em Boyhood, ao acompanhar a infância e a juventude comuníssimas do menino Mason, ou em Antes da meia-noite, ao seduzir o espectador com um casal que acaba trocando uma noite de amor por uma DR das boas. Sem contar que o longa renderia uma baita homenagem à sétima arte.

Alô, Hollywood: como assim ainda não convidaram o Ethan Hawke para o papel do papai cinéfilo?)

domingo, 25 de outubro de 2015

Bergmans e bays

Homem invade escola e mata dois.

É ler a manchete aí em cima e perguntar as mesmices: de novo, Tio Sam? onde o assassino comprou os rifles? na padaria ou na farmácia? quantas columbines ainda serão necessárias para que os americanos entendam de uma vez por todas que incentivar uma cultura bélica só é bom negócio para os fabricantes de armas?
 
Mas o crime – segurem o queixo – não aconteceu nos Estados Unidos, e sim a sete mil e tantos quilômetros de lá; na Suécia, para ser exato. Aquele país mais conhecido pelos chicles explosivos do ABBA e os tiros certeiros do Ibrahimovic. O criminoso, por sua vez, não usou pistola, espingarda, nem bazuca. Preferiu uma espada.

O cenário e a arma inusitados foram o estopim para que atiradores de bobagem espalhados pela internet – a cada dia um campo mais minado – começassem a disparar as costumeiras ironias de baixo calibre. O alvo? Qualquer um que veja no belicismo ianque uma das causas da violência que frequentemente assalta high-schools e universidades daquele país.

– Agora quero ver culparem os americanos ou os revólveres por essa tragédia – metralharam sem piedade os snipers de neurônios, variedade de homicida que sempre põe à prova meu discurso pacifista. É nessas horas que agradeço a céus e infernos o fato de o arsenal disponível aqui em casa se restringir a palavras.

Seria difícil ignorar o gatilho diante de seres incapazes de admitir que: se os americanos não tivessem acesso tão fácil a armas de fogo e “precisassem” de uma espada toda vez que sua loucura bélica os impelisse a ocupar uma sala de aula, isso certamente desencorajaria esse tipo de atitude ou, no mínimo, pouparia muitas vidas. Comparar o número de vezes em que ocorre um crime desses na Suécia e nos Estados Unidos é até piada.

– Piada é o Brasil não ter acesso (legal) a armas de fogo e bater os americanos em mortes – contra-atacaram os bolsonaros de sinapses.

Estava demorando para a discussão chegar ao lado de cá do Equador. Infelizmente, no entanto, não me surpreende que tais criaturas finjam não perceber o desatino de usar o que aconteceu na terra de Ingmar Bergman – ou o que acontece a todo momento na de Michael Bay – para falar da violência no Brasil. Que eu saiba, aqui (em geral) não temos gente invadindo escolas ou universidades para promover chacinas. Nossa violência é de outra natureza, tem outras origens – intrinsecamente ligadas a desigualdades sociais históricas.

É lamentável que tantos exemplares da espécie dita sapiens insistam em não reconhecer nem essa diferença. E sigam alvejando o mundo com seus projéteis de cinismo.

domingo, 18 de outubro de 2015

Ficções e facções

Rompi com a novela do João Emanuel Carneiro. Sério. Desde que Romero Rômulo (Alexandre Nero) e Zé Maria (Tony Ramos) se encontraram à luz de um dia ensolarado – bem em frente à fundação do ex-vereador – e ainda trocaram um aperto de mão, perdi o encanto pela Regra do jogo. E nem adianta a Alcione cantar que o amor será eterno novamente. Sem chance, Marrom.

O poeta já dizia: a diferença entre a verdade e a mentira é que a primeira não precisa fazer sentido. Não por acaso, a regra principal de qualquer jogo de ficção é a verossimilhança. Também conhecida como coerência (ou lógica) interna, a “vero” é o temperinho que permite ao espectador engolir a história que lhe é contada sem se engasgar com os fatos narrados – sem duvidar que estes realmente possam acontecer, uma vez que eles respeitam as leis do universo proposto pelo autor.

Pois essa regrita foi triturada em mais pedaços que aquele xadrez da abertura, quando os dois chapas de facção promoveram o tal tête-à-tête a céu aberto. Em que mundo um sujeito como o Romero – que vive da imagem de bom moço, de defensor dos direitos humanos, de criador de uma instituição que reabilita ex-presidiários – arriscaria a própria reputação só para levar cinco dedos de prosa com um foragido da polícia acusado de participar de uma célebre chacina?

Ou: que organização criminosa tão poderosa é essa (à qual a dupla pertence) que autoriza um encontro, ou melhor, um furo desses – maior que o provocado pelos fuzis que ela trafica?

Alguém dirá: ah! isso é novela, novela é assim mesmo. Ao que este aqui retrucará: não, amigo, não é assim mesmo. Justamente por ser novela, por ser faz de conta, a conta tem que fechar muito direitinho. Não pode haver fração que escape à contabilidade do verossímil. Sob pena de o espectador minimamente atento não acreditar mais na trama e desistir dela. Como ocorreu comigo.

Já basta que da novela da vida real a gente não possa desistir tão facilmente. Não tem controle-remoto para isso.

Vejam o caso de certo senador tucano e de certo deputado peemedebista (presidente da Câmara até o fechamento desta edição). Um e outro são filiados a siglas que, em tese, ocupam espaços antagônicos. A primeira é oposição ao governo; a segunda, situação. Só que ambas invariavelmente votam a favor das mesmas coisas: doação de empresas para campanhas eleitorais, flexibilização de leis trabalhistas, diminuição da maioridade penal – entre outros temas dignos de protagonizar qualquer bom (?) folhetim.

De que evidência maior alguns espectadores precisam para perceber que – a despeito de aparentarem estar em lados opostos – os dois personagens pertencem à mesma facção? Àquela facção que defende os interesses das grandes corporações, do capital financeiro, do livre mercado, de tudo que há de mais conservador na sociedade?

Um aperto de mãos em horário nobre? Inverossímil é que isso ainda seja necessário.

domingo, 11 de outubro de 2015

Meninos perdidos

Amanhã é aquele dia em que muitos vão se lembrar de quando corriam descalços na rua, jogavam queimado no play, passavam as manhãs perdidos na Caverna do Dragão, varavam madrugadas devorando fantasminhas com um joystick, viajavam para o outro lado do mundo ao lado de jaspions e gyodais, morriam de vergonha da mamãe e do papai puxando o parabéns da Xuxa, faziam de um tabuleiro o jogo da (sua) vida.

Sorte a minha estar entre esses cuja caixa-forte de memórias felizes é bem maior que a do Tio Patinhas. Uma turma que, apesar de já ter deixado Oz e suas mágicas há algum tempo – de já ter vivido trinta e tantos outubros –, ainda guarda com carinho cada um dos tijolos amarelos que ajudaram a pavimentar sua estrada até aqui.

Pena que nem todas as estradas recebam um acabamento semelhante; algumas colecionam tantos buracos que invariavelmente causam acidentes e fazem vítimas.

É o caso das ruelas percorridas por aqueles jovens que mal dobraram a esquina da infância com a adolescência e já abandonaram a criança que um dia existiu neles. Em seus bolsos não restou um centavo de memória feliz – apenas a lembrança do guri que só corria descalço porque não tinha o que calçar; que jamais brincou num lugar tão seguro quanto um play; que passava as manhãs perdido entre arranha-céus de lixo catando uns trocados; que varava madrugadas no chão esperando os tiros cessarem; que só viajava quando lhe ofereciam um teco (e não era de pirlimpimpim); que morria de vergonha de não saber dizer o paradeiro da mãe e o nome do pai.

Que jogava um War cujo tabuleiro era o próprio cotidiano.

Recentemente, um arrastão de manchetes levou muita gente a demonizar esses adolescentes em razão dos crimes praticados por eles numa famosa praia carioca. Psicopatas, gritaram uns. Não têm caráter, berraram outros. Como se de repente um surto de psicopatia e mau-caratismo tivesse atingido apenas meninos pobres, negros e moradores da periferia – meninos cujo caminho até aquela areia nunca chegou perto do tapete macio por onde um dia deslizamos nossos autoramas.

(Só um parêntese de esclarecimento: tentar entender por que este ou aquele jovem ingressou na tripulação do Capitão Gancho não significa defender a impunidade. Toda pirataria deve ser combatida e castigada. No entanto, mandar para a prancha o pequeno Alma Negra sem compreender a origem de sua vilania seria tão inócuo quanto tratar uma febre sem curar a infecção.)

Enfim, que a data a ser comemorada amanhã vá além de saudades coloridas e álbuns desbotados. Que seja também um cantinho do pensamento para todos nós. Não vai fazer mal nenhum dedicarmos um minuto de silêncio às crianças que – ao tirarem a cartela do revés no Banco Imobiliário da vida – tiveram mais que suas infâncias roubadas.

Perderam a chance de construir a própria Terra do Nunca.

domingo, 4 de outubro de 2015

Asilo

Menino de onze anos é morto durante operação policial em comunidade do subúrbio carioca. Em protesto, moradores do lugar fecham uma das principais avenidas da cidade na hora do rush. Logo surgem as primeiras manifestações de comoção: bando de vagabundos, desocupados, só sabem tumultuar, tinha que meter bala nessa cambada, fechar via pública é uma afronta, e o meu direito de ir e vir?

Eu só queria entender em que mundo uma rua interrompida pode causar mais indignação do que uma vida interrompida.

No mesmo mundo que só se incomoda com assaltos quando eles acontecem naquela praia famosa; que só se preocupa com o apartheid quando ele ocorre do outro lado do Atlântico; que só se escandaliza com o drama dos refugiados quando eles não atravessam a fronteira do seu país; que só se comove com a pobreza quando ela não mendiga na calçada da sua casa.

É a síndrome da empatia seletiva.

Um distúrbio capaz de fazer o sujeito que mora na periferia – a mil beerretês de copas e ipanemas, mas a um valão da última chacina – se colocar no lugar da páti que teve o smart furtado ou do play que teve o cordão roubado, e não na mira do vizinho que estava no beco errado na hora errada.

Curioso o sintoma que leva alguém a se angustiar toda vez que o telejornal mostra uma cerca sendo erguida pelo país que não quer receber mais imigrantes – e, ao mesmo tempo, a se preocupar com a possibilidade de perder o emprego para os haitianos que continuam chegando à sua cidade.

Mais curioso ainda o sintoma da solidariedade a distância: a senhorinha liga religiosamente para o Criança Esperança, mas desliga imediatamente – o coração? – ao ver aquela criança dormindo no cimento, a poucos metros de sua portaria. Pior: ainda resmunga que paga um ipeteú de Leblon para receber uma paisagem de Pavuna.

Chagas de uma época em que a desumanização está com a cotação nas alturas: em que aulas de história e geografia (na Austrália) são substituídas por lições de programação; em que cursos de ciências sociais (no Japão) são cancelados para se dar mais espaço às exatas; em que cadernos de literatura de grandes jornais (no Brasil) são extintos – afinal, de que nos serve a poesia numa hora dessas?

Que diferença faz um verso de colírio quando a capacidade de enxergar o outro varia de acordo com o tamanho do engarrafamento a ser enfrentado após um dia de trabalho?

Pois é justamente em razão dessa miopia que, mesmo não sendo sírio, afegão ou africano, já estou considerando seriamente a hipótese de me refugiar também: só que noutro planeta. O plano é cruzar o oceano sideral, atracar numa das recém-descobertas praias marcianas e, quem sabe, estabelecer contato com seres inteligentes – cujas vistas não estejam embaçadas de tanto preconceito e intolerância.

domingo, 27 de setembro de 2015

Nem tudo que reluz

Era um desses programas de viagem. A apresentadora mostrava os cinco castelos imperdíveis da Europa. Estava no top one – Neuschwanstein, Alemanha – quando olhou para a câmera e, sem o menor pudor, revelou que aquele palácio, construído na segunda metade do século dezenove, tinha inspirado Walt Disney a erguer o Castelo da Bela Adormecida em Orlando, nos Estados Unidos.

Quase virei abóbora ao ouvir o absurdo. Qualquer um com noção mínima de geografia dos contos de fada (ou acesso ao Google) sabe que a dona do tal palacete é e sempre foi a Cinderela.

Corta para o jornal da hora do almoço: a moça do tempo explicando que o megaterremoto que atingiu o Chile há algumas semanas fora causado pelo afastamento de duas placas tectônicas, a Sul-Americana e a de Nazca. Errado, esperneou um amigo geógrafo – que esclareceu que ambas são convergentes e, portanto, causam abalos sísmicos quando se chocam, isto é, quando uma vai em direção à outra.

Falhas como essa não chegam a provocar um tsunami de indignação – mas deveriam nos deixar em estado de alerta para catástrofes maiores.

Catástrofes como a que aconteceu numa recente edição daquele dominical famoso por transformar os gols da rodada em teatrinho de fantoches. Era uma reportagem sobre Que horas ela volta? – o filme estrelado por Regina Casé que trata das promiscuidades ainda existentes, em nosso país, na relação entre patrões e empregadas domésticas.

Pensando bem, não era uma reportagem sobre esse filme. Afinal, em vez de sublinhar o tom crítico da fita, a matéria optou por ressaltar os laços de família e fofura que uniriam tais personagens na vida real. Pior: ainda ilustrou a questão com um caso que se opunha ao enredo do longa  o da filha de uma empregada que, mesmo após a mãe pedir demissão, continuou na casa dos patrões, sendo criada por eles com todo love, love, love. “A gente está falando de pessoas, de respeito, carinho, amizade, amor. E nada disso se escreve na carteira de trabalho”, completava o repórter em off, enquanto eu ia ao banheiro devolver ao mundo o misto que havia acabado de ingerir.

Que jornalismo é esse que usa cenas do tipo Julie-Andrews-cantando-dó-ré-mi-nas-montanhas para contar uma história cuja trilha sonora ainda são os ecos das chibatadas?

Última zapeada antes de encerrar: mesa-redonda sobre política e economia naquele canal de notícias que nunca desliga. O jornalista-mediador ouve um ex-ministro afirmar – baseado num estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – que o Brasil dá mais do seu PIBito para a educação do que países mais ricos e, mesmo assim, sofre com a baixa qualidade do ensino. A informação, claro, leva o âncora a revirar suas célebres olheiras e a sugerir a urgência de se cortarem gastos na área, de se tornar a gestão mais eficiente, de se premiar o professor por resultados – a dieta de austeridade e meritocracia que nos tem sido empurrada goela abaixo por nutricionistas liberais.

Sobem as letrinhas, o programa termina.

Não para os meus neurônios, que exigiram um Google (sempre ele) no tal estudo da OCDE. Foi a vez de as minhas olheiras revirarem. Se por um lado era verdade que nossas despesas com educação superavam as de países mais ricos, quando se consideravam os respectivos PIBitos, por outro era igualmente verdade que – em razão do grande número de estudantes no Brasil – nosso gasto com cada guri era apenas o penúltimo numa lista de 34 nações, incluídas aqui outras dez em desenvolvimento.

A não ser que o último lugar rendesse ao país uma revolta do giz promovida por alunos e professores, com apoio da população e da mídia, reduzir ainda mais os investimentos em educação não me parecia ser a melhor alternativa para impedir uma bolota vermelha no boletim. Será que o famigerado jornalista – grisalho de tanta credibilidade – não tinha os dados completos da pesquisa da OCDE, ou resolveu omitir o que não interessava só para ajustar os fatos ao que realmente queria dizer?

Não tenho resposta para essa pergunta. Mas, para o leitor, tenho um conselho: jamais prove a maçã que lhe oferecerem, por mais suculenta que seja, sem antes checar sua procedência e validade – sob o risco de cair em sono profundo no primeiro castelo encantado que aparecer.

domingo, 20 de setembro de 2015

Espanando a relação

Um filme que abre as janelas de uma casa grande (daquelas com várias suítes, piscina, dependências) e tira das sombras o convívio aparentemente pacífico entre uma família de classe média alta e a empregada que lá trabalha. Uma história de encontros e desencontros entre mães e filhos. Um retrato – com o filtro do otimismo – de um país em transformação.

Dirigido e roteirizado por Anna Muylaert, Que horas ela volta? narra o cotidiano arrumadinho de Val (Regina Casé), doméstica como tantas outras (ainda) espalhadas por mausoléus Brasil afora. Só que, de repente, essa vidinha com cada coisa em seu lugar é desarrumada por Jéssica (Camila Márdila), a filha que deixa o Nordeste para prestar vestibular em São Paulo e termina se hospedando no local de serviço da mãe. Bem informada e com a autoestima de quem não se considera inferior a ninguém, a jovem começa a questionar o comportamento submisso de Val diante dos patrões, o que acaba expondo o apartheid ali existente.

Por contar uma história infelizmente brasileiríssima – sem varrer para debaixo do tapete o que ainda resta do legado escravagista em nosso dia a dia –, o longa escolhido para ser o representante brasileiro no Oscar é capaz de servir de espelho para públicos tão distintos (e distantes?) quanto o do Morumbi e o da Zona Leste, só para ficar na geografia social paulistana. Improvável a plateia não enxergar a si mesma nos andares daquela pirâmide de muros quase inescaláveis há alguns anos.

Quantas senhoras de bem não se identificarão com “dona” Bárbara (Karine Teles acertadamente contida, sem as afetações das madrastas dos contos de fada), a patroa que, de tão “generosa”, trata sua criada de tantos e tantos anos como um membro “praticamente da família”? Quantas marias não se reconhecerão na Val, a empregada que, de tão competente, já “nasceu sabendo sua posição”?

Aqui um paninho rápido na atuação de Regina Casé: notável sua capacidade de migrar das cenas bem-humoradas – como a que a traz tentando decifrar o jogo de xícaras e garrafa térmica com o qual presenteia a dona da casa – para as mais dramáticas – como a que acompanha a discussão dela com a filha em sua cela, ops, quartinho, pouco antes de a menina deixar a mansão em meio a uma chuvarada.

Igualmente notável é a sutileza do roteiro – que não só se destaca por passagens escancarada e lindamente simbólicas, como quando Val enfim entra na piscina, mas também por tomadas tão silenciosas quanto expressivas, como aquela em que a personagem, depois de estender as roupas no varal, resolve sentar-se, fechar os olhos e descansar brevemente sob o sol.

Outra sequência que não deve passar entre nuvens – e que só ratifica o cuidado do roteiro com os detalhes – é a que mostra Val e Jéssica tomando café juntas, nos minutos finais da projeção: o espectador atento vai reparar que xícaras e pires não descombinam mais. Discreta metáfora para aquilo que por tanto tempo esteve fora do lugar (mãe e filha) e agora está onde sempre deveria ter estado. Uma ao lado da outra.

É bem possível que alguns – os que não querem enxergar a faxina pela qual o país começou a passar na última década, e/ou não se conformam que a roupa suja da senzala esteja sendo finalmente lavada – acusem o filme de apostar ingenuamente na esperança, ainda mais num momento em que as manchetes só ecoam caos e crise. Pois eu apostaria também. Especialmente depois de ver, nos classificados, que os novos imóveis não vêm mais com aquele velho quartinho virado apenas para a cozinha.

Agora ele é reversível.

domingo, 13 de setembro de 2015

Fora de área

Era um comercial da Gevetê. Ou da Néti. Ou da Iscai. Não lembro. Tentava vender um combo qualquer, desses com telefone, internet, tevê a cabo, pombo-correio on demand, sinal ilimitado de fumaça e tambores wifi. Até aí nada de mais. A não ser o valor do pacote, que prefiro censurar, em respeito ao contracheque da tradicional família brasileira.

Ainda assim, apesar dos números pornográficos exibidos em horário de criança acordada, o anúncio teria passado invisível na minha intranet, se não fosse o ator cantarolando feliz da vida – em meio a um cenário café-da-manhã-com-Doriana – que não tinha mais fins de semana nem feriados, que ficar off-line não era mais uma opção.

Como assim, cara-pálida de tanta selfie e sofá?

Quem decretou que os fins de semana na casa da sogra fofa (ela existe) devem ser substituídos por hora extra no uatizápi da empresa? Que os feriados à beira-mar são perfeitamente dispensáveis se comparados àquele fascinante curso de networking e marketing pessoal via iscaipe? Que ficar off-line para ajudar a filhota com o quebra-cabeças de mil peças do castelo da Elsa é jogar tempo na lixeira?

Os viciados em bytes que me perdoem – mas vida com banda larga de verdade tem domingo com a família, finde naquela pousada em Cabo Frio, pracinha com os filhos, cinema com a esposa, jantar com o maridão, conversa fora com os amigos, passeio com os cachorros, pão de queijo no mercado, futebol na tevê, livro na cabeceira, bicicleta na rua, soneca depois da sobremesa.

Conexão de altíssima intimidade com aquele mundo que existe de se pegar.

Não sei quem teve a ideia de incentivar a humanidade a guardar celular sob o travesseiro, tablet entre o garfo e a faca, notebook na sacola de praia. Certamente um sujeito que não sabia que uma noite inteira de son(h)o é o melhor carregador de bateria; que refeição gostosa é a que a gente compartilha com quem está na mesa; que descanso de tela dos bons é aquele marzão ali na frente.

Pois alguém avise a ele e a seus seguidores que ficar off-line não é fazer logout da realidade, muito menos bloquear indefinidamente as pop-ups do noticiário. É apenas fechar as abas das irrelevâncias e se concentrar no download do que realmente importa – e que em geral está bem ao nosso lado, a um touch de distância.

domingo, 6 de setembro de 2015

Extraviado

Não sei se vocês se lembram de Viktor Narvoski, personagem de Tom Hanks que ficava preso num aeroporto em Nova York, simultaneamente impedido de voltar ao seu país (que teve as fronteiras fechadas após um golpe de Estado) e de entrar nos Estados Unidos (já que seu passaporte, em razão do incidente, perdera a validade). O filme era O terminal, de Steven Spielberg.

Estou com um problema parecido. Voltei de Paris, aterrissei no Galeão, mas ainda não cruzei a alfândega que separa as nuvens do asfalto. Cabeça e coração continuam perdidos na esteira do desembarque, feito bagagem sem dono. Talvez estejam à espera de que algum desavisado os despache novamente para o Charles de Gaulle.

Cá entre nós, eles não se incomodariam nem um pouco com mais dez horas de voo – desde que o próximo petit déjeuner tivesse aqueles croissants capazes de amanteigar o humor do mais parisiense dos garçons. Aqui uma ressalva no lugar-comum: não cruzei com nenhum monsieur que não fosse ao menos cordial. Valeu a tática de abordá-los sempre com um bonjour antes do parlez-vous anglais.

Paris não é mesmo endereço de lugares comuns. Lá, um emaranhado de ferro fascina tanto quanto os jardins de Monet; as escadarias infinitas de uma Sacré Coeur tiram o fôlego tanto quanto o sorriso de uma pintura; um muro no Montmartre conquista tanto quanto um je t’aime na voz da Piaf; o palco que deusas e ninfas de mármore pisam seduz tanto quanto o do Moulin Rouge.

Ah! cidade luz mesmo quando entre nuvens – onde um rio não é um rio, mas um oceano de cartões-postais; onde uma praça não é uma praça, mas uma página da História; onde um palácio não é um palácio, mas apenas a ala em que os Luíses guardavam suas amantes; onde um café não é um café, mas uma Notre Dame para os devotos de Amélie Poulain; onde uma rua não é uma rua, mas um Louvre a céu aberto.

Ulalá.

Aberto parece estar meu carrefour de metáforas e hipérboles. Eu sei. Mas o leitor há de perdoar os excessos deste flâneur de classe econômica. A verdade é que ninguém atravessa uma Champs-Élysées de sensações impunemente. Alguma coisa os franceses botam naquelas madeleines para a gente voltar assim, meio Maria Antonieta depois da Revolução: com a cabeça fora do lugar.

E o coração guilhotinado pela saudade.

domingo, 19 de julho de 2015

Sinais

Considerando seriamente a possibilidade de pegar um empréstimo e comprar uma passagem só de ida para Plutão. É que aquele coração balançou minhas asas. Fiquei tão comovido com a mensagem dos plutonianos, que até o frio de menos duzentos já não as congela mais. Que é um inverninho ligeiramente rigoroso perto de um contato imediato com seres capazes de rabiscar tamanha gentileza?

(Para quem vive em outro mundo e não faz a menor ideia do que estou falando: na última terça-feira, uma sonda espacial – a New Horizons – se aproximou do minúsculo planeta como nunca antes na história desta galáxia e registrou algumas imagens dele, entre as quais a tal em que aparece sobre sua superfície um borrão muito semelhante ao mais famoso dos músculos.)

A Nasa não divulgou, mas o Wikileaks vazou: nossos vizinhos vêm tentando se comunicar com a gente faz tempo. Ninguém sabe ao certo desde quando. Fontes garantem, porém, que eles começaram a desenhar símbolos em plantações e piscar luzes no céu há mais de dois mil anos – especificamente no dia em que resolvemos crucificar um homem apenas porque ele pregava amor, tolerância e outros comunismos.

Inconformados com tanta miséria, violência, poluição e, em especial, com a cegueira humana diante dessas tragédias, os plutonianos chegaram a enviar replicantes para cá, a fim de estabelecerem um contato além do terceiro grau. Gutemberg teria sido um deles. Na cabeça enorme dos ETs, vivia a esperança de que, após uma invenção como a imprensa, a comunicação com (e entre) os terráqueos se tornaria mais fácil.

Ingênuos.

Mal sabiam os cinzentos que os principais jornais, revistas e canais de tevê serviriam justamente para o contrário: embaçar ainda mais nossa visão. Está aí o exemplo de inúmeros noticiários brasileiros, que têm tido o desplante de apontar a política de austeridade e a redução da maioridade penal como soluções, respectivamente, para a crise econômica e a violência no país.

Como se os gregos não estivessem mais arruinados que o Parthenon mesmo depois de anos e anos cortando gastos para pagar juros. Como se a insegurança não fosse maior nas periferias das grandes cidades, onde jovens de dezesseis anos (menos até) são executados regularmente por policiais e milicianos sem que madames e madamos leiam uma nota sobre o tema nas colunas sociais ou nos livros para colorir.

Ultimamente, a comunidade plutoniana tem usado estratégias cada vez mais ousadas para atravessar os poderosos campos de força reacionária e alertar os terrestres sobre os perigos de se deixarem abduzir por quem só pensa em defender o próprio lucro. A mais recente teria sido invadir o corpo de um importante líder mundial: o papa Francisco. A prova disso seria seu discurso em terras bolivianas há duas semanas, no qual ele criticou a “globalização da exclusão e da indiferença” e a descreveu como “ditadura sutil”.

De fato, quem viu o pontífice no palanque afirma que ele parecia tomado por uma entidade. Eu só não imaginava que fosse uma entidade alienígena.

Verdade ou ficção (científica), quero acreditar que aquele imenso coração seja um sinal de que os plutonianos jamais vão desistir da humanidade. De que vão continuar apostando seus sabres de luz em nossa espécie. De que vão insistir até o finzinho dos tempos em seu exercício de empatia para com o Homo sapiens.

Mesmo que às vezes não mereçamos tanto zelo e linchemos a evolução – como quando voltamos ao passado e transformamos postes em troncos.

domingo, 12 de julho de 2015

Se chorei ou se sorri

Definição melhor não há para Divertida mente: filme cabeça. Não bastasse ter como cenário principal o cérebro de uma menina de onze anos (Riley) e como protagonistas as emoções que lá habitam – Alegria, Medo, Nojinho, Raiva e Tristeza –, o novo longa da Pixar ainda apresenta um conjunto tão vasto de boas ideias, que ofuscaria até uma viagem à cachola de Freud guiada por Charlie Kaufman.

Que neurônio não sorri diante daquelas criaturinhas aspirando e descartando as lembranças mais antigas? Que não gargalha toda vez que certo jingle é repetido? Que não pega carona no trem do pensamento? Que não se encanta com as ilhas que sustentam a personalidade de Riley e que, com a passagem da infância para a adolescência, desmoronam e precisam ser reconstruídas?

Quantas sinapses não são feitas quando três personagens invadem a sala do pensamento abstrato e sofrem uma espécie de picassoalização das suas formas (numa sequência que brinca com a própria natureza da animação)? Quantas zonas da massa cinzenta não são reativadas quando certa criatura assustadora – que repousava nos confins do inconsciente – precisa ser acordada? Quantos neurotransmissores não são produzidos quando somos levados ao lugar onde os sonhos são fabricados – algo como uma Hollywood intracraniana?

Mesmo que se resumisse a esses conceitos – todos tão bem resolvidos visualmente, que em geral prescindem de grandes explicações para que sejam entendidos (vide as memórias, representadas pelas esferas coloridas) –, Divertida mente já seria um filmaço. Mas não. Ele vai muitíssimo além de um desfile de alegorias digno de nota dez em originalidade.

Numa época em que não compartilhar selfies de felicidade absoluta a cada segundo é indício de câncer emocional em processo de metástase, um filme que trata a Tristeza com tezão, conferindo-lhe status de personagem indispensável à vida de qualquer ser humano, merece toda a atenção e reverência. É um insight de ousadia e coragem em meio a tanto déjà-vu nas telonas.

Em ritmo de aventura (o que entretém os ainda miúdos), o roteiro mostra ao espectador e à Alegria – habituada a afastar a Tristeza do painel de comando – que não amadurecemos apenas com sorrisos: lágrimas são mais do que necessárias para que possamos pavimentar novas estradas dentro de nós mesmos e erguer pontes mais seguras entre nossas emoções e o mundo.

Falando em pontes, sugiro ao leitor que atravesse uma até o cinema mais próximo. Já. Se quiser experimentar a sensação de uma doce amnésia do senso comum.

domingo, 5 de julho de 2015

Ora (direis) ouvir asneiras

Ingenuidade minha achar que eu aguentaria ficar algumas semanas longe do meu palanquete e dos meus dezesseis leitores; que eu renunciaria ao desejo de escrevinhar uma ou duas palavras enquanto estivesse refugiado no Street View, programinha do Google Maps que permite a qualquer um flanar por Paris, Londres ou Nova York sem precisar de visto ou Visa.
                 
Como continuar passeando tranquila e virtualmente por Montmartre, se uma horda de parvos ocupa as ruas de verdade com paus, pedras e preconceito?

Espiem só o caso do Olavinho, figurinha repetida nos saraus mais vips da cidade. O rapaz não conseguiu ver os amigos pintando as próprias fuças com as cores do arco-íris – a fim de comemorarem a legalização do casamento gay nos Estados Unidos – sem espalhar por aí a foto de uma criança esquálida e desnutrida: quando a causa de vocês for o combate à fome, me chama que eu tô dentro.

Tá nada, bonitão. Vai me dizer que já se esqueceu daquele dia em que muitos compartilharam a notícia de que o Brasil – segundo uma tal Organização das Nações Unidas, vulgo ONU – tinha deixado o mapa mundial da fome e você simplesmente a esnobou? Pior. Ainda criticou a bolsa que o governo dava para os mais pobres: não pode dar o peixe, tem que ensinar a pescar.

Olha quem fala: um sujeito que sempre estudou em escola particular (desde o Pica-Pauzinho Azul), fez inglês, natação e jiu-jítsu, concluiu a faculdade de Administração em oito anos, emendou com o MBA – e jamais precisou trabalhar para pagar os estudos. Aliás, jamais precisou trabalhar. Recentemente é que um vereador-amigo-do-seu-pai arrumou um estágio para ele na Assembleia Legislativa.

Se pelo menos Olavinho abrisse a boca só nos anos bissextos. Mas não. Quase uma semana depois de a Casa Branca ter arco-irizado suas paredes, a galera que aderiu ao movimento nas redes sociais começou a descolorir seus perfis. Pa-ra-quê, minha nossa senhora das más línguas? Lá veio a criatura de novo: estão vendo? não falei que era modinha? se não era, por que não ficaram pintados pra sempre?

(Suspiro.)

Alguém avisa ao príncipe das marés ipanêmicas que não preciso vestir a camisa do Vasco dia sim, dia também – até o fim dos séculos – para mostrar que sou cruz-maltino? Que prefiro guardar o manto para os jogos mais decisivos, as vitórias mais emblemáticas, os momentos mais críticos?

É tanto piti contra toda e qualquer hashtag militante (sua última vítima foi a #reduçãonãoésolução, sobre a maioridade penal) que já desconfio de que o problema de Olavinho não é o movimento xis ou ípsilon – mas o movimento. Qualquer movimento. O cara não suporta ativismos. Não vê sentido nessas manifestações em favor de mulheres, negros, gays e famintos. Pudera: o que esperar de alguém que celebra o orgulho de ser homem, branco, hétero e ter tido sempre a barriga cheia?

Que acredita religiosamente que ativistas jamais mudaram o mundo? Que nunca ouviu falar em Harvey Milk e Rosa Parks? em Frei Betto e Zilda Arns? em Kailash Satyarthi e Malala Yousafzai? Google neles, crianças. E nem vou citar gigantes como Jesus, Joana d’Arc, Gandhi ou Martin Luther King – porque sei resistir a uma covardia desnecessária.

Só não sei resistir à piada que os inimigos mais próximos do vate têm contado por aí (e com a qual encerro este palavrório): a de que, calado, Olavinho é um Bilac.

domingo, 28 de junho de 2015

Meia-noite em Paris

A poucos metros do carrossel, uma excursão de viúvas brasileiras flanava sua fé antes de subir a escadaria da Sacré Coeur: ouvi a mais devota dizer que estavam ali para pagar a enésima parcela dos pecados cometidos na Galeries Lafayette. Sei. Bastou uma delas calcular que a via sacra até a basílica contava uns duzentos e tantos degraus para que desistissem da penitência: tomaram o funiculaire.

Eu tomei um atalho lateral até a igreja – cujo interior não permitem fotografar nem com palavras. Só indo lá pessoalmente.

Depois da visita ao templo, dei um pulinho na Place du Tertre, onde tive a impressão de escutar mais inglês do que francês, o que não deixou de ser um alívio. O problema é que as caricaturas desenhadas pelos artistas – todos com o physique do Gérard Depardieu – resolveram saltar das folhas brancas para me assediar feito aqueles ambulantes abarrotados de miniaturas da Torre Eiffel.

Merci e fugi.

Saí pela rua Norvins e só parei diante da escultura do homem atravessando o muro. Para os desavisados, aquilo poderia ser mais um merchan da Marvel, quem sabe da décima nona aventura solo do sexagésimo sétimo integrante dos Vingadores. Não. Era apenas um tributo ao escritor Marcel Aymé e a uma de suas obras mais famosas, Le passe-muraille – ou O passa-paredes, na versão em português.

Continuei em frente até a avenida Junot e virei à esquerda na Villa Léandre, uma ruazinha sem saída que é a porta de entrada para os meus sonhos mais bucólicos. Como não me imaginar morando num daqueles sobrados cobertos de charme e sacadas floridas? Talvez me imaginando numa cozinha tão minúscula, mas tão minúscula, que eu tivesse de escolher entre mim e o micro-ondas.

Nem pensar. Paris não merecia uma separação dessas, certamente traumática. Muito menos o Montmartre. Ainda mais que, a algumas ruas dali, resiste um monumento erguido justamente em homenagem aos casais apaixonados, o Muro do Eu Te Amo, onde a frase surge escrita em quase todos os idiomas conhecidos – exceção feita àquele resmungado pelos garçons parisienses.

Pode parecer contraditório, mas lembrar desses espécimes típicos da fauna local me deu fome. Desci a rua Lepic até o Café des Deux Moulins. Um crème brulée e a conta.

Meia dúzia de passos depois, estava eu no Boulevard de Clichy, diante do mítico Moulin Rouge. Me falaram no café que a fabulosa Amélie Poulain e seu fiel anão de jardim tinham se mudado havia alguns anos para o cabaré; lá estrelavam um espetáculo de cancã digno dos tempos em que Toulouse-Lautrec e Baz Luhrmann o frequentavam. Comprei um ingresso na primeira fila.

O show estava prestes a começar quando minha mulher me avisou: quase duas e amanhã você acorda cedo. Já passava da hora de fechar o Street e desligar o note.

P.S.: Pode ser que minhas palavras continuem perdidas em Paris e arredores. Portanto, não se assustem se elas não flanarem por aqui nas próximas semanas. Au revoir.