domingo, 1 de novembro de 2015

Dava um filme

Imagine a cena: um pai apaixonado por cinema e pelos Beatles decide mostrar ao filho de quinze anos Os reis do iê, iê, iê (A hard day’s night, de Richard Lester). Crente, crente que ele vai adorar a banda e o filme. Que nada. O guri acha tudo horrível e chega a blasfemar que John Lennon era o pior de todos. Eu deserdava.

Sorte de Jesse que seu pai se chama David. Inconformado com a situação, o sujeito revira seus CDs até encontrar “It’s only love”, do álbum Rubber soul. Põe a música para tocar na esperança de que o filho ouça o que ele ouve. “Eles têm boa voz”, o garoto admite. Boa voz? “Mas o que você sentiu ouvindo a música?”, o pai quer saber. “Honestamente? Nada. Sinto muito”, responde o moleque – que ainda tem a pachorra de deitar a mão no ombro do daddy como se o consolasse.

É com sequências como essa, aparentemente banais, que David Gilmour reconstrói um pouco da história real entre ele e seu filho ao escrever O clube do filme (Intrínseca, 2009). Diante do total desinteresse do rebento pela escola, o pai – sem trabalho fixo, com dinheiro curto e tempo ocioso – faz a ele uma proposta fora do comum e, por isso mesmo, arriscada: você pode largar os estudos, desde que assista semanalmente a três filmes escolhidos por mim. Negócio fechado.

Entremeando as desventuras dos dois, que vão amadurecendo juntos, e comentários sobre filmes diversos – do hilário Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder, ao afetadíssimo Showgirls, de Paul Verhoeven, passando por Encurralado, discreta mas preciosa estreia de um jovem cineasta chamado Steven Spielberg –, Gilmour rabisca suas linhas com a simplicidade de quem prepara uma bacia de pipoca antes daquela sessão no sofá.

Exibe ainda os bastidores da própria trajetória – a de um ex-apresentador de tevê cinquentão com dificuldades de arranjar trabalho (“Não consigo arrumar uma porra de emprego nem como entregador”) – e do cinema – como o fato de o diretor Clint Eastwood jamais dizer “Ação!”, mas um elegante “Quando estiverem prontos”.

Sem lançar mão de efeitos especiais, reviravoltas a cada dez minutos ou malabarismos estilísticos, O clube do filme não só registra o relacionamento entre pai e filho com uma fotografia despojada – livre de filtros –, como ainda cativa o leitor com um zoom irresistivelmente agridoce nas chamadas pequenas coisas da vida.

(Arrisco dizer que dava um filmaço do Linklater, cineasta capaz de transformar qualquer conversa – ou retalhos de – em pura poesia cinematográfica. Vide o que ele fez em Boyhood, ao acompanhar a infância e a juventude comuníssimas do menino Mason, ou em Antes da meia-noite, ao seduzir o espectador com um casal que acaba trocando uma noite de amor por uma DR das boas. Sem contar que o longa renderia uma baita homenagem à sétima arte.

Alô, Hollywood: como assim ainda não convidaram o Ethan Hawke para o papel do papai cinéfilo?)

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