domingo, 27 de setembro de 2015

Nem tudo que reluz

Era um desses programas de viagem. A apresentadora mostrava os cinco castelos imperdíveis da Europa. Estava no top one – Neuschwanstein, Alemanha – quando olhou para a câmera e, sem o menor pudor, revelou que aquele palácio, construído na segunda metade do século dezenove, tinha inspirado Walt Disney a erguer o Castelo da Bela Adormecida em Orlando, nos Estados Unidos.

Quase virei abóbora ao ouvir o absurdo. Qualquer um com noção mínima de geografia dos contos de fada (ou acesso ao Google) sabe que a dona do tal palacete é e sempre foi a Cinderela.

Corta para o jornal da hora do almoço: a moça do tempo explicando que o megaterremoto que atingiu o Chile há algumas semanas fora causado pelo afastamento de duas placas tectônicas, a Sul-Americana e a de Nazca. Errado, esperneou um amigo geógrafo – que esclareceu que ambas são convergentes e, portanto, causam abalos sísmicos quando se chocam, isto é, quando uma vai em direção à outra.

Falhas como essa não chegam a provocar um tsunami de indignação – mas deveriam nos deixar em estado de alerta para catástrofes maiores.

Catástrofes como a que aconteceu numa recente edição daquele dominical famoso por transformar os gols da rodada em teatrinho de fantoches. Era uma reportagem sobre Que horas ela volta? – o filme estrelado por Regina Casé que trata das promiscuidades ainda existentes, em nosso país, na relação entre patrões e empregadas domésticas.

Pensando bem, não era uma reportagem sobre esse filme. Afinal, em vez de sublinhar o tom crítico da fita, a matéria optou por ressaltar os laços de família e fofura que uniriam tais personagens na vida real. Pior: ainda ilustrou a questão com um caso que se opunha ao enredo do longa  o da filha de uma empregada que, mesmo após a mãe pedir demissão, continuou na casa dos patrões, sendo criada por eles com todo love, love, love. “A gente está falando de pessoas, de respeito, carinho, amizade, amor. E nada disso se escreve na carteira de trabalho”, completava o repórter em off, enquanto eu ia ao banheiro devolver ao mundo o misto que havia acabado de ingerir.

Que jornalismo é esse que usa cenas do tipo Julie-Andrews-cantando-dó-ré-mi-nas-montanhas para contar uma história cuja trilha sonora ainda são os ecos das chibatadas?

Última zapeada antes de encerrar: mesa-redonda sobre política e economia naquele canal de notícias que nunca desliga. O jornalista-mediador ouve um ex-ministro afirmar – baseado num estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – que o Brasil dá mais do seu PIBito para a educação do que países mais ricos e, mesmo assim, sofre com a baixa qualidade do ensino. A informação, claro, leva o âncora a revirar suas célebres olheiras e a sugerir a urgência de se cortarem gastos na área, de se tornar a gestão mais eficiente, de se premiar o professor por resultados – a dieta de austeridade e meritocracia que nos tem sido empurrada goela abaixo por nutricionistas liberais.

Sobem as letrinhas, o programa termina.

Não para os meus neurônios, que exigiram um Google (sempre ele) no tal estudo da OCDE. Foi a vez de as minhas olheiras revirarem. Se por um lado era verdade que nossas despesas com educação superavam as de países mais ricos, quando se consideravam os respectivos PIBitos, por outro era igualmente verdade que – em razão do grande número de estudantes no Brasil – nosso gasto com cada guri era apenas o penúltimo numa lista de 34 nações, incluídas aqui outras dez em desenvolvimento.

A não ser que o último lugar rendesse ao país uma revolta do giz promovida por alunos e professores, com apoio da população e da mídia, reduzir ainda mais os investimentos em educação não me parecia ser a melhor alternativa para impedir uma bolota vermelha no boletim. Será que o famigerado jornalista – grisalho de tanta credibilidade – não tinha os dados completos da pesquisa da OCDE, ou resolveu omitir o que não interessava só para ajustar os fatos ao que realmente queria dizer?

Não tenho resposta para essa pergunta. Mas, para o leitor, tenho um conselho: jamais prove a maçã que lhe oferecerem, por mais suculenta que seja, sem antes checar sua procedência e validade – sob o risco de cair em sono profundo no primeiro castelo encantado que aparecer.

domingo, 20 de setembro de 2015

Espanando a relação

Um filme que abre as janelas de uma casa grande (daquelas com várias suítes, piscina, dependências) e tira das sombras o convívio aparentemente pacífico entre uma família de classe média alta e a empregada que lá trabalha. Uma história de encontros e desencontros entre mães e filhos. Um retrato – com o filtro do otimismo – de um país em transformação.

Dirigido e roteirizado por Anna Muylaert, Que horas ela volta? narra o cotidiano arrumadinho de Val (Regina Casé), doméstica como tantas outras (ainda) espalhadas por mausoléus Brasil afora. Só que, de repente, essa vidinha com cada coisa em seu lugar é desarrumada por Jéssica (Camila Márdila), a filha que deixa o Nordeste para prestar vestibular em São Paulo e termina se hospedando no local de serviço da mãe. Bem informada e com a autoestima de quem não se considera inferior a ninguém, a jovem começa a questionar o comportamento submisso de Val diante dos patrões, o que acaba expondo o apartheid ali existente.

Por contar uma história infelizmente brasileiríssima – sem varrer para debaixo do tapete o que ainda resta do legado escravagista em nosso dia a dia –, o longa escolhido para ser o representante brasileiro no Oscar é capaz de servir de espelho para públicos tão distintos (e distantes?) quanto o do Morumbi e o da Zona Leste, só para ficar na geografia social paulistana. Improvável a plateia não enxergar a si mesma nos andares daquela pirâmide de muros quase inescaláveis há alguns anos.

Quantas senhoras de bem não se identificarão com “dona” Bárbara (Karine Teles acertadamente contida, sem as afetações das madrastas dos contos de fada), a patroa que, de tão “generosa”, trata sua criada de tantos e tantos anos como um membro “praticamente da família”? Quantas marias não se reconhecerão na Val, a empregada que, de tão competente, já “nasceu sabendo sua posição”?

Aqui um paninho rápido na atuação de Regina Casé: notável sua capacidade de migrar das cenas bem-humoradas – como a que a traz tentando decifrar o jogo de xícaras e garrafa térmica com o qual presenteia a dona da casa – para as mais dramáticas – como a que acompanha a discussão dela com a filha em sua cela, ops, quartinho, pouco antes de a menina deixar a mansão em meio a uma chuvarada.

Igualmente notável é a sutileza do roteiro – que não só se destaca por passagens escancarada e lindamente simbólicas, como quando Val enfim entra na piscina, mas também por tomadas tão silenciosas quanto expressivas, como aquela em que a personagem, depois de estender as roupas no varal, resolve sentar-se, fechar os olhos e descansar brevemente sob o sol.

Outra sequência que não deve passar entre nuvens – e que só ratifica o cuidado do roteiro com os detalhes – é a que mostra Val e Jéssica tomando café juntas, nos minutos finais da projeção: o espectador atento vai reparar que xícaras e pires não descombinam mais. Discreta metáfora para aquilo que por tanto tempo esteve fora do lugar (mãe e filha) e agora está onde sempre deveria ter estado. Uma ao lado da outra.

É bem possível que alguns – os que não querem enxergar a faxina pela qual o país começou a passar na última década, e/ou não se conformam que a roupa suja da senzala esteja sendo finalmente lavada – acusem o filme de apostar ingenuamente na esperança, ainda mais num momento em que as manchetes só ecoam caos e crise. Pois eu apostaria também. Especialmente depois de ver, nos classificados, que os novos imóveis não vêm mais com aquele velho quartinho virado apenas para a cozinha.

Agora ele é reversível.

domingo, 13 de setembro de 2015

Fora de área

Era um comercial da Gevetê. Ou da Néti. Ou da Iscai. Não lembro. Tentava vender um combo qualquer, desses com telefone, internet, tevê a cabo, pombo-correio on demand, sinal ilimitado de fumaça e tambores wifi. Até aí nada de mais. A não ser o valor do pacote, que prefiro censurar, em respeito ao contracheque da tradicional família brasileira.

Ainda assim, apesar dos números pornográficos exibidos em horário de criança acordada, o anúncio teria passado invisível na minha intranet, se não fosse o ator cantarolando feliz da vida – em meio a um cenário café-da-manhã-com-Doriana – que não tinha mais fins de semana nem feriados, que ficar off-line não era mais uma opção.

Como assim, cara-pálida de tanta selfie e sofá?

Quem decretou que os fins de semana na casa da sogra fofa (ela existe) devem ser substituídos por hora extra no uatizápi da empresa? Que os feriados à beira-mar são perfeitamente dispensáveis se comparados àquele fascinante curso de networking e marketing pessoal via iscaipe? Que ficar off-line para ajudar a filhota com o quebra-cabeças de mil peças do castelo da Elsa é jogar tempo na lixeira?

Os viciados em bytes que me perdoem – mas vida com banda larga de verdade tem domingo com a família, finde naquela pousada em Cabo Frio, pracinha com os filhos, cinema com a esposa, jantar com o maridão, conversa fora com os amigos, passeio com os cachorros, pão de queijo no mercado, futebol na tevê, livro na cabeceira, bicicleta na rua, soneca depois da sobremesa.

Conexão de altíssima intimidade com aquele mundo que existe de se pegar.

Não sei quem teve a ideia de incentivar a humanidade a guardar celular sob o travesseiro, tablet entre o garfo e a faca, notebook na sacola de praia. Certamente um sujeito que não sabia que uma noite inteira de son(h)o é o melhor carregador de bateria; que refeição gostosa é a que a gente compartilha com quem está na mesa; que descanso de tela dos bons é aquele marzão ali na frente.

Pois alguém avise a ele e a seus seguidores que ficar off-line não é fazer logout da realidade, muito menos bloquear indefinidamente as pop-ups do noticiário. É apenas fechar as abas das irrelevâncias e se concentrar no download do que realmente importa – e que em geral está bem ao nosso lado, a um touch de distância.

domingo, 6 de setembro de 2015

Extraviado

Não sei se vocês se lembram de Viktor Narvoski, personagem de Tom Hanks que ficava preso num aeroporto em Nova York, simultaneamente impedido de voltar ao seu país (que teve as fronteiras fechadas após um golpe de Estado) e de entrar nos Estados Unidos (já que seu passaporte, em razão do incidente, perdera a validade). O filme era O terminal, de Steven Spielberg.

Estou com um problema parecido. Voltei de Paris, aterrissei no Galeão, mas ainda não cruzei a alfândega que separa as nuvens do asfalto. Cabeça e coração continuam perdidos na esteira do desembarque, feito bagagem sem dono. Talvez estejam à espera de que algum desavisado os despache novamente para o Charles de Gaulle.

Cá entre nós, eles não se incomodariam nem um pouco com mais dez horas de voo – desde que o próximo petit déjeuner tivesse aqueles croissants capazes de amanteigar o humor do mais parisiense dos garçons. Aqui uma ressalva no lugar-comum: não cruzei com nenhum monsieur que não fosse ao menos cordial. Valeu a tática de abordá-los sempre com um bonjour antes do parlez-vous anglais.

Paris não é mesmo endereço de lugares comuns. Lá, um emaranhado de ferro fascina tanto quanto os jardins de Monet; as escadarias infinitas de uma Sacré Coeur tiram o fôlego tanto quanto o sorriso de uma pintura; um muro no Montmartre conquista tanto quanto um je t’aime na voz da Piaf; o palco que deusas e ninfas de mármore pisam seduz tanto quanto o do Moulin Rouge.

Ah! cidade luz mesmo quando entre nuvens – onde um rio não é um rio, mas um oceano de cartões-postais; onde uma praça não é uma praça, mas uma página da História; onde um palácio não é um palácio, mas apenas a ala em que os Luíses guardavam suas amantes; onde um café não é um café, mas uma Notre Dame para os devotos de Amélie Poulain; onde uma rua não é uma rua, mas um Louvre a céu aberto.

Ulalá.

Aberto parece estar meu carrefour de metáforas e hipérboles. Eu sei. Mas o leitor há de perdoar os excessos deste flâneur de classe econômica. A verdade é que ninguém atravessa uma Champs-Élysées de sensações impunemente. Alguma coisa os franceses botam naquelas madeleines para a gente voltar assim, meio Maria Antonieta depois da Revolução: com a cabeça fora do lugar.

E o coração guilhotinado pela saudade.