domingo, 28 de junho de 2015

Meia-noite em Paris

A poucos metros do carrossel, uma excursão de viúvas brasileiras flanava sua fé antes de subir a escadaria da Sacré Coeur: ouvi a mais devota dizer que estavam ali para pagar a enésima parcela dos pecados cometidos na Galeries Lafayette. Sei. Bastou uma delas calcular que a via sacra até a basílica contava uns duzentos e tantos degraus para que desistissem da penitência: tomaram o funiculaire.

Eu tomei um atalho lateral até a igreja – cujo interior não permitem fotografar nem com palavras. Só indo lá pessoalmente.

Depois da visita ao templo, dei um pulinho na Place du Tertre, onde tive a impressão de escutar mais inglês do que francês, o que não deixou de ser um alívio. O problema é que as caricaturas desenhadas pelos artistas – todos com o physique do Gérard Depardieu – resolveram saltar das folhas brancas para me assediar feito aqueles ambulantes abarrotados de miniaturas da Torre Eiffel.

Merci e fugi.

Saí pela rua Norvins e só parei diante da escultura do homem atravessando o muro. Para os desavisados, aquilo poderia ser mais um merchan da Marvel, quem sabe da décima nona aventura solo do sexagésimo sétimo integrante dos Vingadores. Não. Era apenas um tributo ao escritor Marcel Aymé e a uma de suas obras mais famosas, Le passe-muraille – ou O passa-paredes, na versão em português.

Continuei em frente até a avenida Junot e virei à esquerda na Villa Léandre, uma ruazinha sem saída que é a porta de entrada para os meus sonhos mais bucólicos. Como não me imaginar morando num daqueles sobrados cobertos de charme e sacadas floridas? Talvez me imaginando numa cozinha tão minúscula, mas tão minúscula, que eu tivesse de escolher entre mim e o micro-ondas.

Nem pensar. Paris não merecia uma separação dessas, certamente traumática. Muito menos o Montmartre. Ainda mais que, a algumas ruas dali, resiste um monumento erguido justamente em homenagem aos casais apaixonados, o Muro do Eu Te Amo, onde a frase surge escrita em quase todos os idiomas conhecidos – exceção feita àquele resmungado pelos garçons parisienses.

Pode parecer contraditório, mas lembrar desses espécimes típicos da fauna local me deu fome. Desci a rua Lepic até o Café des Deux Moulins. Um crème brulée e a conta.

Meia dúzia de passos depois, estava eu no Boulevard de Clichy, diante do mítico Moulin Rouge. Me falaram no café que a fabulosa Amélie Poulain e seu fiel anão de jardim tinham se mudado havia alguns anos para o cabaré; lá estrelavam um espetáculo de cancã digno dos tempos em que Toulouse-Lautrec e Baz Luhrmann o frequentavam. Comprei um ingresso na primeira fila.

O show estava prestes a começar quando minha mulher me avisou: quase duas e amanhã você acorda cedo. Já passava da hora de fechar o Street e desligar o note.

P.S.: Pode ser que minhas palavras continuem perdidas em Paris e arredores. Portanto, não se assustem se elas não flanarem por aqui nas próximas semanas. Au revoir.

domingo, 21 de junho de 2015

De volta para o futuro

Quem nunca ouviu falar que notícia boa é notícia ruim? Que notícia ruim é que vende jornal? Que tragédia é que faz o ibope subir? Basta a gente acessar os principais portais da internet ou ligar a tevê diariamente para constatar que o público tem sido assombrado (só para ficar no campo econômico) com uma crise de proporções tsunâmicas – ainda que índices como inflação e desemprego mal tenham superado a condição de marola.

Por isso, não me surpreende nem um pouco que um exercício de utopia feito Tomorrowland, escrito e dirigido por Brad Bird, esteja fracassando nas bilheterias. No Brasil, por exemplo, o filme estrelado por George Clooney foi soterrado em sua estreia por um espécime genérico do cinema-catástrofe (Terremoto – a falha de San Andreas), já em cartaz havia uma semana.

Uma pena. Num mundo que parece ter abraçado todas as distopias imagináveis – do apocalipse zumbi ao planeta dos macacos, passando pela rebelião das máquinas e da natureza –, o novo trabalho de Bird merece ser apreciado justamente por recuperar uma visão otimista do futuro, por ousar acreditar que ainda é possível o que muitos julgam impossível: salvar a humanidade.

Para isso, a trama conta com uma protagonista – a jovem Casey Newton (Britt Robertson) – não só determinada a evitar que uma plataforma de lançamento de foguetes seja desmontada, mas também inconformada com o olhar pessimista (realista?) de seus professores em relação ao destino do planeta. É especialmente divertida a sequência em que eles a ignoram enquanto falam de aquecimento global e afins.

Justamente por jamais desistir do futuro, Casey é escolhida por Athena (vivida com extrema sensibilidade por Raffey Cassidy) para impedir a destruição do mundo paralelo que dá nome ao filme e, consequentemente, da própria Terra. A elas se junta o inventor Frank Walker (Clooney), um homem desiludido que já estivera em Tomorrowland nos anos sessenta, quando ainda era um garoto.

Se não bastasse ser um deslumbre visual – seja pela recriação da Feira Mundial de 1964, seja pelos gadgets da casa onde Walker se exila por anos, seja pelo design da tal Terra do Amanhã, com suas piscinas que desafiam a gravidade –, o longa ainda oferece um roteiro que escapa da mediocridade como se usasse um propulsor a jato; a um só tempo, ele encanta o espectador com as possibilidades do futuro e o alerta para os paradoxos do presente, como o fato de vivermos simultaneamente epidemias de obesidade e fome.

Além disso, os roteiristas adotam uma estratégia invariavelmente elegante: a de espalhar aqui e ali – com discrição – pistas sobre o que vai acontecer nas cenas seguintes. Exemplo disso ocorre quando, instantes antes de Walker atravessar a passagem secreta (ou cair na toca) que o levará pela primeira vez a Tomorrowland, vemos de relance um conhecido personagem de Alice no País das Maravilhas.

Falando em personagens conhecidos, outra ótima sacada é a “participação” de Júlio Verne, Thomas Edison, Nikola Tesla e Gustave Eiffel (imagineers, diria Walt Disney) num momento-chave do filme, no qual um famoso cartão-postal se mostra muito mais do que uma simples escultura de ferro. A reação das pessoas nas ruas, registrando o espetáculo inusitado com seus celulares, só ajuda a conferir verossimilhança à situação.

O maior espetáculo, no entanto, fica para os minutos finais. Capaz de arrepiar os que deixaram o cinismo do lado de fora do cinema, a sequência que encerra a projeção estabelece uma rima temática que não deve passar despercebida aos corações mais atentos (spoiler! spoiler!): os escolhidos da vez para habitar Tomorrowland – gente de todas as partes do mundo – ecoam e de certa forma realizam aquelas marionetes multiétnicas vistas no início do longa, numa das principais atrações da Feira Mundial, chamada It’s a Small World.

Cumprem a esperança quase ingênua de que, apesar de a cada manchete nos ser vendido um futuro à Mad Max, há um outro bem melhor – todo feito para quem nele acredita.

domingo, 14 de junho de 2015

Santa estupidez

Como são as coisas: o vice-presidente Michel Temer compara o ministro Joaquim Levy a Jesus Cristo e nenhum feliciano se pronuncia contra uma blasfêmia dessas. Que eu saiba, o mentor do ajuste fiscal – responsável pelo aumento de impostos e por cortes na saúde e na educação – não representa uma classe oprimida ou injustiçada; muito menos é um subversivo, ainda mais quando se trata de economia.

O mesmo não se pode dizer, no entanto, da atriz transexual (Viviany Beleboni) que, na Parada Gay do último domingo, assumiu o papel de Cristo crucificado para protestar contra os crimes sofridos pelos homossexuais mundo afora. Ela, sim, encarna uma categoria ampla e historicamente perseguida – e, portanto, faz todíssimo jus à cruz que carregou pela Avenida Paulista durante o evento.

Certeza de que o Jesus ao qual fui apresentado – um homem inteligente e sinônimo de amor segundo a tradição cristã – aprovaria a encenação.

Não houve ali, como alguns malafaias espalharam pelas redes sociais, ataque à fé ou deboche ao sagrado. Ao contrário. A escolha do mais emblemático símbolo cristão – que encerra o sofrimento de todos os excluídos e marginalizados pela sociedade, sejam eles homens ou mulheres, hétero ou homossexuais – só sublinha o respeito da comunidade gay pela figura em questão.

Difícil entender que, no instante em que Viviany resgata a Paixão, ela reconhece – em nome dos seus – o abrigo que a imagem representa para cada um que nela acredita?

Dificílimo, sim, para a massa que se deixa contaminar pelo perigoso vírus da imbecilidade, da parvoíce, da indigência cognitiva (os nomes são vários) que adoece o país. Um vírus inoculado por criaturas que só têm interesse em lucrar com a ignorância alheia. A propósito, quantos dinheiros não devem render a certas igrejas (sic) “tratamentos” como o da cura gay?

Curiosidade: essas mesmas criaturas não atiraram suas pedras quando, em 2012, a revista Placar pôs na capa um Neymar crucificado, sob a justificativa de que o jogador (à época chamado de cai-cai) teria virado “bode expiatório em um esporte onde todos jogam sujo”. Nesse caso, sim, talvez coubesse alguma indignação: afinal, o então craque do Santos não era – jamais foi, pelo menos a partir do momento em que se tornou profissional – um excluído, um marginalizado.

Ali era evidente o uso sensacionalista da imagem sagrada para os cristãos; era óbvio o fim meramente comercial. Mas a lógica do lucro a qualquer preço – tão cara aos que se julgam corretores do Céu e do Inferno, incessantemente (em)pregada por eles em seus shopping centers da fé – não costuma alarmá-los. Para esses seres ungidos com óleo de peroba, pecado capital é perder um bom negócio.

Não importa que o endereço da firma seja Sodoma ou Gomorra.

domingo, 7 de junho de 2015

Desafio poético

Há algumas semanas, uma querida amiga me desafiou a postar no Face quatro poemas da minha vida. Em quatro dias. Pa-ra-quê. O ato de escolher esse e desescolher aqueles cinco mil e quatrocentos fez certas convicções gaguejarem. Como optar por um Drummond sem magoar um Bandeira? Como decidir por um Quintana sem aborrecer um Leminski? Como eleger um Vinicius sem melindrar um Pessoa?

Reconheço: publicar antologias de quatro poemas da minha vida não é um dos talentos deste reles cronista.

Mas ignorar um convite também não é. Eu não podia deixá-lo sem resposta. Foi então que veio a ideia – politiquérrima, admito – de selecionar versos que não tivessem saído das estrofes de um Neruda. Que tivessem saído, sim, de uma canção despretensiosa, de um filme reprisado mil vezes, de uma situação aparentemente qualquerzinha – quando em geral é preciso mais do que cinco sentidos para detectar a tal da poesia.

Essa saída nada honrosa, pretendo compensar não me restringindo a um fab four: recito cinco, seis, quantos instantes rimarem à memória, pode ser?

Que tal começar pela infância? Pelo cancioneiro da Xuxa? Certos versos da loira me encantam até hoje graças ao estranhamento que ainda provocam: “se tudo que é livre/ é superincrível/ tem cheiro de bala, capim e chulé”; “o He-Man dança um rock gravado por Tom Jobim/ enquanto a She-Ra namorava o Esqueleto no jardim”; “quem canta no chuveiro todo mal vai espantar/ casamento de viúva, sol e chuva sem parar”.

Quem há de negar que existe aí uma pegada surrealista?

O cinema também me deixou seus alumbramentos; e não estou falando apenas de lirismos explícitos, como o ET voando de bicicleta com aquela megalua ao fundo ou a abóbora se fantasiando de carruagem para a Cinderela ir ao baile. Falo do Cameron praticamente tragado pela tela Tarde de domingo na Ilha de Grande Jatte, de Georges Seurat, em Curtindo a vida adoidado.

Não importa quantas vezes eu veja aquela cena: sempre me perco no caminho entre os olhos do rapaz e o quadro impressionista.

Até a tevê deu sua contribuição para minha antologia de poemas improváveis. Como não guardar o epílogo do episódio em que o menino Chaves e a vila inteira vão para Acapulco? Aquela pouquíssima luz, eles quase sombras ao redor da fogueira, a musiquinha triste, a promessa de se despedir “sem dizer adeus jamais”, e eu vou ali assoar o nariz antes que esse momento ternura-só-lâmina corte meu coração novamente.

Fechando com chave dezoito quilates, uma estrufa, digo, uma estrofe que minha Fernanda e eu burilamos pelo menos uma vez por semana, geralmente à tardinha, quando os dois estão em casa: paramos tudo – especialmente o relógio vermelho da cozinha – e dividimos um chocolate. Pode ser um bombom, pode ser uma barra. E de repente riscamos a terceira margem de um rio que só nós conhecemos.

Exagero ultrarromântico? Nananinanão. Apenas um haicai que, a despeito de sua extensão, é sempre infinito enquanto dura.