domingo, 31 de maio de 2015

Ensaio sobre a cegueira

Saí do cinema após a sessão de Entre abelhas com a certeza de que a situação vivida por Bruno (Fábio Porchat) – depois de se separar da esposa, aos poucos ele passa a não ver mais quem está à sua volta – não é exclusividade dele: as pessoas estão deixando de enxergar as pessoas. Estão deixando de enxergar o outro. À medida que esse mal avança, passam a enxergar apenas os seus iguais. Apenas a si mesmas.

Não por acaso um exercício de empatia, como o que propus na última semana, tenha provocado tanto desconforto em certos leitores. É muito mais fácil – pelo menos para aqueles cuja paisagem diária é a Lagoa Rodrigo de Freitas ou afins – olhar pela janela do “podia ser eu” quando a vítima é o médico que podia ser seu pai, seu vizinho, seu amigo; que podia ser, enfim, você mesmo.

Difícil, compreensivelmente difícil, é olhar com as córneas (os cornos?) do outro; é se colocar no lugar de um sujeito que vive noutro planeta, apesar de viver na mesma cidade; um indigente que podia ser, com sorte megassênica, o porteiro do seu prédio ou a caixa da padaria onde você compra seus amanteigados – aquelas criaturas para as quais tantas vezes não sobra um bom-dia, muito menos um sorriso.

Há quem diga por aí, do alto de sua miopia, que recuperar a história de um menino capaz de matar por causa de uma bicicleta é defender bandido, é colaborar com a impunidade. Não é. Resgatar tragédias – como a família desestruturada ou a ausência do Estado – que podem levar a outras tragédias não significa impedir ou não querer uma punição justa; significa tão somente investigar as possíveis causas desses atos bárbaros.

Só entendendo por que eles acontecem será viável combatê-los de fato.

Reduzir a discussão a um mero desejo de vingança – tantas vezes confundida com justiça –, ao caquético clichê do bem contra o mal – quantas vezes difundido por manchetes sensacionalistas –, ao senso supercomum de que bandido já nasce pronto, de que toda crueldade está nos genes ou (pior) na alma, não resolve a questão. Ao contrário. Só contribui para que se perca mais uma oportunidade de enfrentá-la.

Continuar achando que, por um golpe de azar, atravessamos um surto de psicopatia (o que explicaria os casos diários de violência extrema) e tentar curá-lo apenas com os analgésicos da repressão policial aprofundará ainda mais o abismo existente em nossa sociedade; um abismo que, se tem seu prólogo no drama estrelado por Fábio Porchat, pode ter seu desfecho noutro filme, de horizonte bem mais árido – o novo Mad Max.

Nele, o protagonista – um dos poucos sobreviventes de um mundo em que as areias da barbárie há muito cegaram a humanidade – já não sabe dizer quem é mais louco: se ele ou todos os outros.

domingo, 24 de maio de 2015

Exercício de empatia

Passei os últimos dias imaginando o que teria acontecido comigo se eu não fosse filho da dona Angela e do seu José – à época da minha concepção, dois adultos que já ganhavam o próprio dinheiro e estavam casados havia três anos. E se eu não tivesse sido tão desejado, tão planejado, tão amado mesmo antes de vir à luz?

Se minha mãe não pudesse ter largado o emprego para ficar em casa trocando minhas fraldas? Se eu não tivesse morado num apê com quarto só para mim e meu irmão? Se meus pais não tivessem feito festinha com bolo e brigadeiro nos meus aniversários? Se não tivessem encomendado ao Papai Noel (quase) todos os brinquedos que sempre quis? Se não tivessem me levado ao cinema para ver os Trapalhões e depois ao Bob’s para tomar um sundae? Se não tivessem me dado a chance de conhecer a Disney ainda tão jovem? Se eu não tivesse estudado num colégio particular? Se eu fosse obrigado a faltar à escola para cuidar do meu irmão mais novo? Se meus pais não tivessem me ajudado com o dever de casa? Se não tivessem pagado o curso de inglês e o de informática? Se não tivessem permitido que eu cursasse a universidade inteirinha sem precisar trabalhar?

O que teria sido de mim se por acaso eu tivesse nascido de um mero desencontro, como tantos por aí, entre dois jovens ainda nos hormônios da adolescência? Se meu pai – quem sabe um aviãozinho do tráfico, ou um desses pivetes que batem carteira nas grandes cidades – tivesse abandonado minha mãe ainda grávida? Se ela – tão imatura – não me quisesse de verdade? Se só tivesse me aguentado nove meses porque não pôde pagar um bom médico para fazer o serviço?

A imaginação persistiu: e se, por uma fatalidade geográfica, eu não tivesse sido criado num bairro com saneamento básico, água encanada, ruas asfaltadas, luz e relativa segurança, mas sim numa favela onde todo dia (como lembra o sociólogo Antonio Engelke) traficante matasse traficante, traficante matasse morador, polícia matasse traficante, polícia matasse morador, polícia torturasse morador para saber de traficante, traficante torturasse morador para saber de polícia, polícia extorquisse traficante – um lugar, enfim, onde a vida não tivesse o menor valor?

E se minha mãe fosse obrigada a me deixar sozinho nesse ambiente porque precisava passar o dia catando latinha? Se à noite, enquanto eu chorava, ela bebesse para não me escutar? Se, exausta da rotina sem perspectivas, não olhasse o caderno que eu trazia da escola? Se eu começasse a matar aula para chamar sua atenção e ela não percebesse? Se eu passasse a ter mais e mais dificuldades de entender o que a professora escrevia no quadro (por ir à escola raramente)? Se aquelas letras – e o mundo que elas representam – me fossem cada vez mais incompreensíveis? Se eu tivesse que abandonar de vez os estudos para olhar meus irmãos? Se de repente eu visse naqueles caras cheios de ouro e minas uma chance de ter o que jamais tive, e talvez nunca tivesse? Se eu conseguisse ao menos uns trocados pro pó que me faria esquecer, ainda que por pouco tempo, a merda de buraco em que vivia? Se a patrulha me pegasse roubando celular e me levasse pro mato só para me encher de porrada? Se o prefeito da minha cidade dissesse que sou apenas mais um caso de polícia? Se os playboys que moram nos prédios do outro lado da rua apontassem para mim e vissem ali só um moleque com o demônio no corpo, um pedaço de pau que ia morrer torto, uma criatura de índole má, que já havia nascido ruim, que tinha deliberadamente escolhido ser cruel com a sociedade?

Quer saber? Se essa história fosse a minha, aquele menor – apreendido pela suspeita de ter matado a facadas um ciclista na Lagoa – podia ser eu.

domingo, 17 de maio de 2015

Viva o cinema brasileiro

Ao contrário do que o título possa insinuar, não tenho a menor intenção de vestir a amarelinha e tomar as ruas de frigideira em riste. O cinema brasileiro não precisa de interjeições fáticas. Precisa sim, e cada vez mais, de espectadores que se aproximem dele sem preconceito, que o conheçam além do último filme do Hassum ou da Ingrid Guimarães, que o vivam especialmente em sua pluralidade.

O que tenho visto, no entanto, é gente em princípio bem informada – ou com todas as condições de ser – regurgitando por aí os mantras típicos de quem jura que o cinema nacional se resume aos lançamentos cujo merchan aparece na novela das nove: filme brasileiro é tudo ruim, cada produção mais tosca do que a outra, os roteiros são fraquíssimos, só tem comédia fácil, a maior apelação.

(Suspiro.)

Diante de tais espasmos de desinformação, só me resta receitar alguns filmes a esses incautos devoradores de pipoca; filmes sobre os mais variados temas, dos mais diversos gêneros, realizados nos quatro cantos do país. Quem sabe após umas dezenas de sessões os desavisados não consigam se livrar do vírus do vira-latismo – é costume deles citar o cinema argentino e o americano como modelos a serem seguidos.

Como se ambos só produzissem obras-primas. Como se o primeiro se restringisse aos ricardos daríns e o segundo não despejasse por aqui seus crepúsculos e transformers.

De início, para abrir os caminhos e as cacholas, sugiro aos deformadores de opinião uma jornada à la Bye, bye, Brasil: que tal acompanhar as operações de um grupo de policias nas favelas cariocas (Tropa de elite, 2007)? o dia a dia de um operador de xerox em Porto Alegre (O homem que copiava, 2003)? as relações entre os moradores de um bairro de classe média na capital pernambucana (O som ao redor, 2012)? a trajetória de uma dupla sertaneja no interior de Goiás (2 filhos de Francisco, 2005)?

Se não bastar essa viagem no espaço, há a possibilidade de um passeio no tempo: por que não arriscar um retorno aos primórdios dos anos noventa com O homem do futuro (2011)? por que não dar um stop nos setenta para lembrar O ano em que meus pais saíram de férias (2006)? por que não recuar ainda mais – até os quarenta – para reverenciar o craque Heleno (2011) e o mito Madame Satã (2002)?

De volta ao presente, recomendo os bons, quando não ótimos (cada um no seu gênero), Bicho de sete cabeças (2001), Cidade de Deus (2002), Edifício Master (2002), Houve uma vez dois verões (2002), O homem do ano (2003), Separações (2003), Meu tio matou um cara (2004), Nina (2004), Redentor (2004), A máquina (2005), O maior amor do mundo (2006), O cheiro do ralo (2007), Mutum (2007), Saneamento básico, o filme (2007), Romance (2008), Tropa de elite 2 (2010), 2 coelhos (2012), Hoje eu quero voltar sozinho (2014), Cássia (2015) e Entre abelhas (2015) – só para ficar em alguns dos pouquíssimos longas nacionais a que assisti na telona neste comecinho de século.

Agora, se mesmo depois desse minifestival aquelas criaturas continuarem batendo panela contra o cinema brasileiro – ignorando sua riqueza e diversidade, ainda mais significativas se considerarmos as dificuldades de produção e distribuição –, aí entrego meus kikitos. É mais um entre os tantos casos de fobia sem cura que têm nos assombrado nos últimos tempos.

domingo, 10 de maio de 2015

Janelas

Que é esse bebê de nariz arregalado, dobrinhas pelo corpo inteiro e bochechas altamente trucidáveis, sensualizando asseio à beira de uma banheira de plástico? Sorte minha não ter nascido com o gene do autocanibalismo. Caso contrário, teria me devorado todinho já nos primeiros meses e não estaria aqui para listar tanta fofice.
 
E o que dizer desse projeto de adulto prestes a subir no ônibus escolar? Expressão quase tão séria quanto a do Cid Moreira noticiando a implantação do cruzado novo, uniforme quase tão impecável quanto a Raquel de Vale tudo e cabelos quase tão alinhados quanto os de uma legítima peruca Lady.

Viro a página e dou de nariz – sempre arregalado – com um Batman customizado para enfrentar menos o Pinguim, mais o verão carioca. Tinha morcego no peito, tinha máscara preta, tinha capa esvoaçante? Tinha. Mas tinha também shortinho duas mãos acima do joelho, regata cavada até as batcostelas e um par de havaianas.

Olha essa festa, superprodução: bolo em forma de Maraca, lembrancinhas com os escudos do Vasco, do Fogo, do Flu e até do Fla (mimo para os primos que vinham de longe), brigadeiro e cajuzinho capazes de adoçar rivalidades e transformar todas as torcidas numa só. Viu o balão recheado de bombons para estourar depois do parabéns?

Menos recheado que aquela árvore de Natal. Um pinheiro de galhos magrinhos, é verdade, mas de deixar balofos de ansiedade os corações daqueles dois irmãos. Já chegou a hora de abrir os presentes? Detalhe nos embrulhos, aparentemente feitos pelos duendes mais competentes de todo o Polo Norte.

Dessa não me lembrava: eu no computador terminando a monografia. Um descabelo só. Mas dá um zoom na estante lá no fundo. Você nunca verá livros mais arrumados.

O dia do casamento. Na igreja. No altar. Fiquei quasímodo nesse close. Olhos tortos de tão marejados. Não sei como o fotógrafo conseguiu me pegar. Sujeito craque. Eu tremia tanto que não sabia o que era gravata, o que era garganta. Só reconhecia o nó – um oferecimento carinhoso da dona Angela, que eu tinha acabado de abraçar.

Impossível abrir um álbum da família e não enxergar minha mãe em cada fotografia, mesmo – ou especialmente – naquelas em que ela não aparece.

domingo, 3 de maio de 2015

Volta, Loki

As marveletes que me desculpem: mas o novo capítulo dos Vingadores – Era de Ultron – não é essa joia do infinito toda.

Tem lá seus momentos? Tem. Dois deles, aliás, garantem os orgasmos prometidos nos trailers: a sequência sem cortes que abre o longa, na qual cada herói apresenta suas supercredenciais; e o clímax em câmera lenta, quando a equipe inteira – inclusive uma turma recém-promovida – se reúne para proteger o núcleo da cidade flutuante.

Outro momento inspirado é a piada envolvendo o martelo do Thor. Começa na festchenha dos Vingadores, no início do filme, e só é concluída no ato final, ao fechar habilmente uma lacuna do roteiro.

Há ainda esse ou aquele diálogo interessante entre Bruce Banner e a Viúva Negra, Tony Stark e o Capitão América, Ultron e qualquer outro personagem – instantes que, no entanto, acabam espremidos por cenas de ação em geral editadas à moda Michael Bay, o que costuma dificultar o entendimento do que está acontecendo na tela.

(Alguém me explica como aquele escudo foi parar ali?)

O que mais incomoda, no entanto, é o vilão da vez. Ainda que James Spader confira alma e personalidade àquela espécie de Pinóquio do Mal – um trabalho de ator que por si só justifica toda a ojeriza às cópias dubladas –, Ultron soa pouco ameaçador. A facilidade (spoiler) com que o todo-poderoso software é desconectado da internet pelo Visão me fez sentir saudades da aparentemente invencível Skynet, até hoje combatida por John Connor na saga O exterminador do futuro.

É tudo tão rápido que fico me perguntando por que era de Ultron. Seu mandato não passa de uma semaninha e olhe lá.

Outro aspecto que enfraquece a trama é o excesso de personagens, o que dilui o fio condutor da história – a relação criador-criatura entre Stark e Ultron – e contribui para que a ambiguidade do primeiro (herdada pelo segundo) não seja suficientemente explorada. Muito mais do que em qualquer filme do Homem de Ferro até aqui, era preciso que o roteiro sublinhasse o quanto o bilionário simboliza ao mesmo tempo esperança e ameaça – esperança de paz por integrar um time de super-heróis; ameaça de guerra por personificar a própria indústria armamentista.

Mesmo que não vingue como poderia no terreno filosófico que tangencia, a Era de Ultron ainda é um bom passatempo. Diverte até a última pipoca, entretém até o último gole de refri. Pena que – a exemplo da cena pós-créditos, já uma tradição em todo filme da Marvel – não surpreenda o espectador mais aprimorado.