segunda-feira, 9 de julho de 2018

Reino ameaçado

O novo Jurassic World só não é melhor do que o Park original, clássico de Steven Spielberg que devorou os nervos de plateias inteiras com sequências memoráveis (como a do T-Rex deixando a jaula e a dos raptors na cozinha) e ainda inaugurou A era dos efeitos especiais – os olhos fascinados de Alan Grant e Ellie Sattler ao verem o primeiro dino eram os nossos.

Aliás, uma referência a essa cena é um dos ápices do filme de J. A. Bayona: enquanto o barco se afasta da ilha Nublar e o vulcão a consome, assistimos a um braquiossauro esquecido no píer; em meio à fumaça e ao desespero, ele se apoia sobre as patas traseiras, num movimento que não só lembra o que extasiou Alan e Ellie no longa de 1993, como ainda fecha um ciclo que faz bodas de prata. A rima visual aquece o coração do jurassiquete mais do que qualquer erupção.

O diretor espanhol não poupa o espectador de sequências como essa, que homenageiam em especial o primeiro capítulo da saga: destaque para aquela em que Maisie (Isabella Sermon) se refugia num pequeno elevador do mesmo jeito que Lex (Ariana Richards) num armário de cozinha, e aquela em que Owen (Chris Pratt) e Claire (Bryce Dallas Howard) estão presos e ouvimos os acordes melancólicos da trilha de John Williams.

Responsável pelo fantasmagoricamente bom O orfanato, Bayona também não poupa o espectador de seu gosto pelo terror, em cenas nas quais a escuridão intermitente esconde/mostra o sauro ameaçador da vez, como na sequência de abertura (enquanto a queda de energia impede a vítima de avistar um antigo morador da ilha se aproximando, relâmpagos o revelam para o público) e na que envolve outro dino faminto, dessa vez num túnel eventualmente iluminado pela lava.

Se, de um lado, a direção capricha na interação entre animais e bichos, digo, humanos – graças ao uso apurado de seres digitais e animatrônicos –, de outro, o roteiro capricha na interação entre enredo e temas politicamente relevantes, como a empatia, a busca voraz por lucro e, tangencialmente, o papel do Estado na sociedade.

Num mundo em que o individualismo nos transforma em ilhas cada vez mais afastadas umas das outras, os roteiristas Colin Trevorrow e Derek Connolly transformam a raptor Blue no elo entre o passado e o futuro dos dinossauros, por ser a única da espécie a ter desenvolvido a capacidade de se identificar com um outro diferente dela (Owen, no caso) e de se sensibilizar com a vulnerabilidade alheia.

A empatia ainda se espalha por outra subtrama e é fundamental na decisão de certa personagem sobre o destino dos animais recriados em laboratório – o que torna a resolução no último ato mais consistente e orgânica, porque apoiada num mote que vinha sendo elegantemente desenvolvido desde o início da projeção.

Já a ganância de capitalistas como Eli Mills (Rafe Spall) – que os faz enxergar seres vivos como meros produtos, capazes de encher até as prateleiras da indústria armamentista – é claro sintoma de involução e, aparentemente, pode levar à extinção da meia dúzia que concentra a mesma riqueza de bilhões. O desfecho de determinado leilão deixa no ar essa possibilidade ao mandar pelos ares vários figurantes, provocando uma breve catarse nos espectadores que têm alguma consciência de classe.

A narrativa é permeada ainda pelas discussões no Congresso americano – das quais participa o Dr. Ian Malcolm (Jeff Goldblum), em ponta especialíssima – a respeito da possibilidade de o governo auxiliar ou não no resgate dos dinossauros prestes a morrer na ilha. Os parlamentares acabam decidindo não intervir na crise, já que os animais foram criados pela – e, portanto, são de responsabilidade da – iniciativa privada.

O resultado dessa escolha temerária, felizmente podemos acompanhar na segurança de uma sala escura. Ao acender das luzes e da realidade, porém, espera-se que saiamos do cinema com a lição de que, se a vida não pode ser contida (como ensina o Dr. Malcolm desde o primeiro Jurassic), a ambição selvagem pode – e deve.

Ou o reino ameaçado a que o título faz alusão certamente não será o dos nossos fósseis favoritos.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Um país na estrada

“Um homem na estrada recomeça sua vida
Sua finalidade: a sua liberdade
Que foi perdida, subtraída
E quer provar a si mesmo que realmente mudou
Que se recuperou e quer viver em paz
Não olhar para trás, dizer ao crime: nunca mais!”

Os versos de Mano Brown que o ex-presidiário Cristiano (Aristides de Sousa) canta a certa altura de Arábia podem até soar como sinopse para o filme. Mas o longa escrito e dirigido por João Dumans e Affonso Uchoa não se resume à história de um homem contada por ele mesmo num caderno velho (descoberto por um adolescente que o lê) – o que vemos na tela é também a história de um povo, é a história de um país.

Um país que não ganha o noticiário e é tão cheio de nuances quanto o tecido que Cristiano manuseia na fábrica em que trabalha. Um país que não estrela a novela e é tão eclético quanto a trilha sonora que reúne – além do já citado rapper – Noel Rosa, Dorival Caymmi, Raul Seixas, Renato Teixeira e até um representante do folk americano (Jackson C. Frank). Um país, portanto, que muito brasileiro desconhece e é povoado por milhões de outros brasileiros que provam diariamente, com trabalho e desilusão, o quão cínico é enaltecer a meritocracia num lugar em que as oportunidades são tão desiguais.

Para quem não sabe, meritocracia é o discurso que coloca toda a responsabilidade do sucesso ou fracasso nas costas do indivíduo, ignorando a estrutura de poder construída e preservada para manter os privilégios de poucos à custa dos direitos – subtraídos – de muitos. De tão fantasiosa, ela parece um conto de Sherazade: se o cabra não enriqueceu, se não conseguiu ser “alguém na vida”, é porque não deu duro, não se esforçou o suficiente, não acordou tão cedo quanto deveria.

Arábia é um tapa na cara de quem acredita nessa fábula das mil e uma noites. Um tapa com luva de operário.

O duro cotidiano do personagem principal não impede, porém, que Dumans e Uchoa vistam luva de pelica ao cuidar dos aspectos estéticos de sua obra.

Planos como o que observa o uniforme de Cristiano e uma garrafa d’água, ou cenas como a do celeiro (na qual o protagonista negocia com o dono de uma fazenda), são tão bem fotografados que só lhes faltam moldura e parede. Como se não bastasse a beleza dos quadros, eles ainda funcionam como sínteses do Brasil extremamente injusto retratado pelos cineastas. A tela de natureza-morta revela que a vida de muitos brasileiros consiste apenas, na melhor hipótese, em trabalho (o uniforme) e sobrevivência (a água). Já a sequência no armazém desvenda o que os “economistas” da mídia hegemônica costumam celebrar como “livre” negociação entre patrões e empregados: de um lado, o proprietário com as máquinas e os frutos sob seus pés; de outro, o funcionário sem nada (nem carteira assinada), em busca de umas caixas de mexerica para vender na estrada; enquanto os dois negociam no interior do galpão (imerso em sombras), a plantação verdeja lá fora tão ensolarada quanto o dia.

É impossível não enxergar os contrastes do país no contraste entre as imensas paredes escuras do depósito e a paisagem iluminada que se vê pelo também imenso vão aberto.

Mais contundente do que as imagens só mesmo a narração em off que conduz o espectador por quase o filme inteiro. Permitir que ouçamos o que Cristiano sente e pensa sobre sua trajetória talvez seja o maior mérito do longa. Raras vezes é dado ao oprimido o lugar da fala – a chance de narrar a própria história. E Arábia não só faz isso, como ainda leva essa experiência ao limite no último ato, ao excluir a música e os sons diegéticos, conferindo à voz de Cristiano todo o protagonismo.

Não deixa de ser significativo que essa passagem – que coincide com o momento de epifania do rapaz, quando ele toma consciência de que sempre viveu “no engano”, de que sempre foi tratado como mais um “cavalo cansado” – aconteça em Ouro Preto, cidade mineira que um dia testemunhou um movimento que se insurgiu contra a exploração e cujo lema era “liberdade ainda que tardia”.

Significativo e tristemente irônico, já que a liberdade para o trabalhador brasileiro – o destino de Cristiano sugere – aparentemente só vem quando a vida se aposenta.