domingo, 29 de novembro de 2015

Menos muros, mais pontes

Estados Unidos, 1957. As bruxas da Guerra Fria todas soltas. Enquanto os americanos temem um ataque nuclear no quintal de casa e a possibilidade de suas crianças virarem comida de comunista, o advogado especializado em seguros James B. Donovan (Tom Hanks) é convocado por Washington para defender – pró-forma – o espião russo recém-capturado Rudolf Abel (Mark Rylance).

Essa é a história real que Steven Spielberg resgata em Ponte dos espiões – um filme em que o cineasta expõe não só a hipocrisia de uma nação que se diz democrática (e é capaz de promover um julgamento apenas para manter as aparências), mas também a estupidez de um governo que não percebe que executar seu prisioneiro significa desperdiçar uma valiosa moeda de troca.

Pena que a coragem temática do diretor resvale na sua eventual falta de sutileza: o momento em que Donovan discursa na Suprema Corte não carecia de tanta música e montagem – a interpolação entre a fala do advogado e a decolagem do piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell) rumo à sua missão na União Soviética é usada tão somente para reiterar aos berros o heroísmo do primeiro.

Pa-ra-quê? Pa-ra-quem? Que espectador ainda não tinha reparado o quão capitão-américa era aquele homem comum que enfrentava o Sistema?

Sutileza, porém, não falta à atuação de Rylance. O ator interpreta Abel ciente de que a discrição deve ser o principal talento de qualquer espião. É especialmente simbólica a sequência, ainda no início do longa, em que ele desvia a atenção dos agentes do FBI – para uma dentadura inclusive – enquanto literalmente apaga um arquivo importante. Certeza de que outro James (não o Donovan) o aplaudiria de pé.

Merece aplausos também o humor com que os irmãos Coen adoçam o roteiro: o Nescafé com dois torrões de açúcar e creme, oferecido ao personagem de Hanks assim que o advogado põe as digitais na CIA, é uma forma divertida e elegante de mostrar que a agência sabe tudo sobre ele. Outra piada bastante eficaz é a que brinca com os nomes enooooormes das nações socialistas.

Mais do que eficazes – inspiradíssimas – são algumas transições entre cenas, como a passagem que começa no tribunal (com o juiz pedindo que o público fique de pé) e termina na escola (com as crianças levantando para um juramento à pátria), ou a que se inicia no hangar onde os pilotos conhecem certo avião e acaba na mesa onde estão os objetos apreendidos no apartamento de Abel.

Esses links (os raccords, como me ensinou Pablo Villaça) reverberam ainda mais numa história em que pontes superam muros, seja o de Berlim – que Donovan é obrigado a atravessar para negociar a troca entre Abel e Powers, detido pelos russos –, seja o do ódio – erguido pelos americanos ao constatarem que o advogado faria o que estivesse ao alcance da lei para defender seu cliente.

Um dos raros seres pensantes do lado ianque (justamente por se manter imune à paranoia inoculada em seus compatriotas), o protagonista se converte na ponte a que o título se refere. Tal metáfora ganha forma na última tela que Abel pinta e com a qual presenteia Donovan – uma tela que rima à perfeição com a da ponte do Brooklyn, retocada pelo espião ainda nos primeiros minutos do filme.

Em tempos de fronteiras ainda mais fechadas – e não falo apenas das cercas construídas por aqueles países avessos a refugiados ou imigrantes, mas em especial dos tapumes que tantos têm colocado nas próprias mentes –, nada mais oportuno do que recuperar a aventura de um sujeito que usou a inteligência e o diálogo como as únicas armas possíveis contra a ignorância e o medo.

domingo, 22 de novembro de 2015

Às armas, cidadãos?

Não consultei a lista da Billboard, mas aposto que a Marselhesa esteve entre as mais pedidas da semana. O hino francês bombou – sem trocadilho macabro – nos últimos dias. Gente à beça tirou o biquinho do armário para bradar seus famosos versos: “Aux armes, citoyens,/ Formez vos bataillons,/ Marchons, marchons!” (“Às armas, cidadãos,/ Formai vossos batalhões,/ Marchemos, marchemos!”).

Até aí nada de mais. Aqueles acordes bélicos mexem com o Robespierre que existe em cada um de nós.

Para quem guilhotinou essa aula de História, Rob foi um personagem importante da Revolução Francesa. Líder dos jacobinos – facção política radical que representava a pequena burguesia contra a monarquia absolutista –, ajudou a implantar o regime do terror, responsável por decapitar nobres, clérigos e até militantes moderados, acusados de não defenderem a causa com o devido vigor.

De volta aos dias de hoje – em que o terror também não poupa cabeças –, esse mesmo espírito beligerante parece ter deixado os versos da Marselhesa para baixar em certos corpos e degolar seu bom senso. Os possuídos passaram a disparar por aí a certeza de que, se houvesse acesso irrestrito a armas de fogo na França, os próprios cidadãos poderiam ter se defendido dos atentados daquela trágica sexta-feira e, portanto, preservado algumas dezenas de vidas.

Fazendo de conta que eu estivesse igualmente oco do pescoço para cima, quem sabe não comprasse essa e outras certezas: a certeza de que todas as pessoas que foram ao Bataclan teriam saído de casa para assistir a um show armadas; a certeza de que seus revólveres seriam páreo para os rifles dos terroristas; a certeza, enfim, de que mais tiros sendo disparados num lugar fechado, apertado e escuro salvariam mais vidas.

A certeza – aqui retrucam os descabeçados – de que os extremistas pensariam duas vezes antes de atacar. Porque as armas asseguram a paz; elas dissuadem.

Como assim as armas asseguram a paz? Como assim elas dissuadem? Um Google rápido e a gente descobre o quanto: conforme aponta o Institute for Economics and Peace, ações de grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico cresceram consideravelmente desde o início da chamada guerra ao terror – que se seguiu ao colapso das Torres Gêmeas, em 2001. Hoje há cinco vezes mais mortes por ataques terroristas do que naquela época. Em 14 anos, foram registrados 48 mil atentados em 123 países, com 107 mil vítimas fatais.

Enquanto isso, estimativas do Bureau of Investigative Journalism mostram que, a cada tentativa de executar um líder terrorista, os drones norte-americanos matam pelo menos 28 civis inocentes. Nos últimos dez anos, verificou-se essa proporção no Afeganistão, no Iêmen, no Paquistão e na Somália – países que, infelizmente, não têm uma Torre Eiffel para pintar com as cores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, nem um mundo inteiro para chorar seus mortos.

Eu poderia terminar este texto com a lucidez de Noam Chomsky, renomado pensador segundo o qual “um modo fácil de combater o terrorismo é parar de participar dele”. Ou mesmo com os versos surrados de um hit pacifista, contraponto óbvio mas necessário ao hino francês. Só que não. Vou preferir a simplicidade de quatro palavritas com as quais encerrei a discussão real que deu origem a estas linhas.

As armas dissuadem. Ahã.

domingo, 15 de novembro de 2015

De portas abertas

Quantas vezes não vimos chefes de Estado virem a público, depois de um atentado como o que ocorreu na última sexta-feira em Paris, para anunciar fechamento de fronteiras, controle mais rígido da imigração, aumento de gastos militares, ataques preventivos a possíveis células terroristas nos confins do mundo, restrição de direitos civis (como à privacidade) – tudo em nome da tal guerra contra o terror?

O presidente francês François Hollande não fugiu à regra e prometeu uma resposta implacável aos extremistas da vez. Ponto para ele, segundo os analistas políticos. Diz o manual de boas maneiras do grande estadista que o representante-mor da nação – mais do que demonstrar equilíbrio e firmeza diante do caos – deve assegurar aos seus compatriotas uma reação à altura.

Eles precisariam disso para se sentir de fato protegidos.

Uma reação à altura. Uma reação à altura. Repito para mim mesmo a sentença e só consigo enxergar nela uma sentença: de morte. Quem realmente precisa de mais um soldado, de mais um fuzil, de mais um tanque, de mais um caça, de mais um míssil, de mais um drone a milhares de quilômetros matando ora terroristas, ora inocentes – ora outros inocentes – para se sentir mais protegido?

Até agora a chamada cruzada antiterror – da qual ouço falar desde os tempos em que o Rambo fuzilava figurantes em nome da liberdade – não trouxe a paz tão prometida; trouxe, sim, periódicos onzes de setembro para a humanidade. Do atentado em Nova York para cá, cidades como Beirute, Londres, Madri, Mumbai, Tel Aviv, entre tantas outras, já tiveram seus quinze minutos de sangue.

Sem contar as que convivem diariamente com a violência de grupos extremistas, em geral africanas e asiáticas, e que não despertam a mesma comoção mundial.

Um episódio que sempre lembro nessas horas é a reação de Israel – uma reação à altura, registre-se – ao assassinato de atletas seus por terroristas árabes durante os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. O governo israelense convocou seu serviço secreto (o Mossad) e deu a ele a missão de matar os responsáveis pelo crime. Desnecessário dizer que a retaliação promovida há quase meio século não resolveu os conflitos gravíssimos que ainda vitimam palestinos e judeus.

Por isso, o discurso protocolar de Hollande – provavelmente a ser seguido por uma contraofensiva bélica que só há de interessar aos fabricantes de armas – não me faz sentir nem um pouco protegido, e menos ainda esperançoso de que essa espiral aparentemente infinita de violência acabe um dia. Ele tão somente mantém as portas abertas para novas explosões de barbárie.

Quem dera o presidente francês fechasse de uma vez aquele manual e se inspirasse no exemplo de seus concidadãos, que (numa iniciativa que ficou conhecida nas redes sociais como #PorteOuverte) abriram suas casas para abrigar as pessoas que estavam nas ruas durante os atentados e precisavam de um lugar seguro. Uma atitude não só simpática dos parisienses – mas sobretudo corajosa.

Especialmente por ter sido tomada numa noite em que o medo recomendava o contrário – e o terror mais do que flanava por seus queridos bulevares.

domingo, 8 de novembro de 2015

Zapear é preciso

Entreouvido no elevador: nunca troco de canal. Trocar pra quê, se só vejo o jornal e a novela? Eu também não. A tevê está sempre no quatro.

Direito de cada um poupar o próprio controle-remoto. Mas não consigo entender quem tem mais de cem canais à disposição e se contenta com um só. Não sabe o que está perdendo: aquela receita de bolo caseiro com calda de frutas vermelhas; aquela viagem de trem pelo interior da Europa; aquele documentário sobre John Lennon; aquela entrevista com a Martha Medeiros; aquela série dos zumbis; aquele filmaço com a Julie Delpy; aquele show com Gil e Caetano.

Só para ficar no pacote básico da minha tevê a cabo.

Agora um off no lado de lá da telinha e um power no lado de cá – que conta com uma grade mil vezes mais variada do que qualquer emissora. Já notaram que é cada vez maior o número de criaturas como aquelas duas no elevador, impermeáveis a qualquer programinha que escape às mesmices de todos os dias?

Não é à toa que esses tipos, ao toparem com uma Simone de Beauvoir nos vestibulares da vida, esbugalhem os olhos como se encarassem um alien fazendo topless.

Surreal a gente habitar um mundo onde a cada segundo novas estações são sintonizadas, onde informação e opinião jorram das mais diversas mídias, onde a alta definição populariza cores que nem imaginávamos existir – e ainda assim aqueles marmanjos arregalem as vísceras por causa de um simples outubro rosa; ou porque um ator negro empunha um sabre de luz no trailer do mais recente Guerra nas estrelas.

Jedi bom é jedi branco, sentenciam os discípulos do Império – e que sith a pluralidade.

Quem sabe a oferta de tantos canais específicos (como o que só fala de ursos-polares veganos no Alasca ou o que só exibe casos de noivas suicidas em Acapulco) esteja guetizando as mentes e tornando-as menos afeitas à diversidade. Penso naquele indivíduo que passa madrugadas diante do Bloomberg e, de repente, é sequestrado pelos amigos para uma tarde no Maraca: em vez de gritar o nome do craque do time, o elemento faz versinho para o CEO do clube.

Sintoma típico de quem está precisando botar os neurônios para zapear com urgência – porque enfiou o mundo inteiro numa (minúscula) bolsa de valores.

domingo, 1 de novembro de 2015

Dava um filme

Imagine a cena: um pai apaixonado por cinema e pelos Beatles decide mostrar ao filho de quinze anos Os reis do iê, iê, iê (A hard day’s night, de Richard Lester). Crente, crente que ele vai adorar a banda e o filme. Que nada. O guri acha tudo horrível e chega a blasfemar que John Lennon era o pior de todos. Eu deserdava.

Sorte de Jesse que seu pai se chama David. Inconformado com a situação, o sujeito revira seus CDs até encontrar “It’s only love”, do álbum Rubber soul. Põe a música para tocar na esperança de que o filho ouça o que ele ouve. “Eles têm boa voz”, o garoto admite. Boa voz? “Mas o que você sentiu ouvindo a música?”, o pai quer saber. “Honestamente? Nada. Sinto muito”, responde o moleque – que ainda tem a pachorra de deitar a mão no ombro do daddy como se o consolasse.

É com sequências como essa, aparentemente banais, que David Gilmour reconstrói um pouco da história real entre ele e seu filho ao escrever O clube do filme (Intrínseca, 2009). Diante do total desinteresse do rebento pela escola, o pai – sem trabalho fixo, com dinheiro curto e tempo ocioso – faz a ele uma proposta fora do comum e, por isso mesmo, arriscada: você pode largar os estudos, desde que assista semanalmente a três filmes escolhidos por mim. Negócio fechado.

Entremeando as desventuras dos dois, que vão amadurecendo juntos, e comentários sobre filmes diversos – do hilário Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder, ao afetadíssimo Showgirls, de Paul Verhoeven, passando por Encurralado, discreta mas preciosa estreia de um jovem cineasta chamado Steven Spielberg –, Gilmour rabisca suas linhas com a simplicidade de quem prepara uma bacia de pipoca antes daquela sessão no sofá.

Exibe ainda os bastidores da própria trajetória – a de um ex-apresentador de tevê cinquentão com dificuldades de arranjar trabalho (“Não consigo arrumar uma porra de emprego nem como entregador”) – e do cinema – como o fato de o diretor Clint Eastwood jamais dizer “Ação!”, mas um elegante “Quando estiverem prontos”.

Sem lançar mão de efeitos especiais, reviravoltas a cada dez minutos ou malabarismos estilísticos, O clube do filme não só registra o relacionamento entre pai e filho com uma fotografia despojada – livre de filtros –, como ainda cativa o leitor com um zoom irresistivelmente agridoce nas chamadas pequenas coisas da vida.

(Arrisco dizer que dava um filmaço do Linklater, cineasta capaz de transformar qualquer conversa – ou retalhos de – em pura poesia cinematográfica. Vide o que ele fez em Boyhood, ao acompanhar a infância e a juventude comuníssimas do menino Mason, ou em Antes da meia-noite, ao seduzir o espectador com um casal que acaba trocando uma noite de amor por uma DR das boas. Sem contar que o longa renderia uma baita homenagem à sétima arte.

Alô, Hollywood: como assim ainda não convidaram o Ethan Hawke para o papel do papai cinéfilo?)