quinta-feira, 28 de junho de 2012

Day tripper

Eu não podia deixar junho chegar ao fim sem escrever meia dúzia de palavras sobre um de seus aniversariantes mais ilustres: Paul McCartney. Sir Paul McCartney. Ainda esbanjando a energia de uma queima de fogos à moda de “Live and let die”, o eterno beatle completou inacreditáveis setenta anos no último dia 18.

Inacreditáveis porque Macca continua explodindo feito menino no palco. Transpirando o garoto de Liverpool a cada canção. Vestindo o comportadíssimo terninho sessentista-romântico de “All my loving” com a mesma elegância dos tempos do The Ed Sullivan Show. Pilotando a histérica montanha-russa de “Helter skelter” com a mesma vitalidade das noites no Cavern Club.

Tive a sorte de ver o cara – ele é o – em ação duas vezes: uma em São Paulo, outra no Rio. E em ambas ficou a certeza de haver experimentado a day in the life.

Pois não é todo dia, infelizmente, que a gente assiste ao vivo a um dos maiores poetas do século 20 saudando seus fãs com a simpática “Hello, goodbye”, berrando despudoradamente o refrão de “Ob-la-di, ob-la-da”, rezando os versos de “Let it be”, atravessando uma vez mais a longa e sinuosa estrada de saudades de “Yesterday”.

Também não é todo dia que a gente abraça nossa gatinha e sopra em seu ouvido “My love”; que a gente bolera aos passos de “And I love her”; que a gente ergue o punho e grita mil vezes “Jet”; que a gente ganha asas ao escutar o primeiro acorde de “Band on the run”; que a gente voa in the dead of night; que a gente vive “Something”.

Que a gente se torna um dos milhares de nanananãs de “Hey, Jude”.

Só espero chegar a esses mesmos setenta aninhos – ainda distantes como Vênus e Marte – com um centésimo do vigor, do entusiasmo, da vivacidade, da juventude que o Fireman transborda em cada nota, seja tocando baixo, guitarra, violão, piano, ukelelê, e mesmo na voz, talhada por décadas e décadas de carreira.

(Ok, Paul, sixty four já está valendo.)

domingo, 24 de junho de 2012

Que a Força esteja conosco

Não está acontecendo numa galáxia tão, tão distante. Está acontecendo aqui mesmo, na cidade do Rio de Janeiro. No olímpico reduto fluminense. Alunos do primeiro ao terceiro ano do ensino fundamental de oitenta escolas – cujos (ir)responsáveis derem autorização – passarão a ter aula de religião uma vez por semana. Para os outros, haverá uma chamada "educação para valores", que tratará de temas ligados à ética e à cidadania.

Professores católicos, evangélicos, espíritas, entre outros, serão contratados pela prefeitura para atender à incomensurável demanda por desenvolvimento espiritual dos cidadãos cariocas.

E aí me pergunto, Pai nosso que estais no céu: até que ponto o Estado tem o direito de utilizar o dinheiro de seus contribuintes – inclusive de ateus e agnósticos – para financiar a catequese de nossas criancinhas? Não existirão prioridades menos etéreas e celestiais, levemente mais chãs e urgentes, nesta terra adorada? Não terão um uso mais útil e necessário os impostos recolhidos do que o investimento nas almas dos filhos deste solo?

Talvez o saneamento básico daquela comunidade abandonada por Deus; o tratamento daqueles dependentes de crack esquecidos por todos os santos e beatos; o asfaltamento daquela rodovia ignorada pelo espírito de luz mais evoluído; a reforma daquele hospital desprezado pelos orixás mais poderosos; a despoluição daquele córrego deixado à própria sorte pelas entidades do mais alto escalão divino.

Cá entre nós, se a esta altura do século 21 ainda se permite o emprego de recursos públicos no maravilhoso mundo da Carochinha ou, levando um pouquinho de fé, no fantástico território dos seres invisíveis, por que afinal não se cogita logo a admissão de docentes com especialização em midi-chlorians, mestrado em filosofia sith e doutorado em sabedoria jedi?

Quem sabe até os trekkers mais ortodoxos não simpatizem com a ideia.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O nono passageiro

Noite dessas tirei duas horinhas para assistir ao Alien de Ridley Scott. Filme visto há muitíssimo tempo. Satélite quase esquecido nos confins da memória. E foi bom – assustadoramente bom – embarcar na Nostromo outra vez, percorrer seus corredores perigosamente quietos, revisitar o planeta LV-426 e explorar seus mistérios.

Melhor ainda – assustadoramente melhor – foi recordar uma história cuja narrativa privilegia o silêncio, em detrimento dos trocentos efeitos sonoros de tantos e tantos blockbusters atuais, que supostamente seriam imprescindíveis para levar o espectador a sentir aquele friozinho básico na espinha e gelar na poltrona.

O roteiro de Dan O’Bannon não tem pressa de apresentar seus personagens e, em especial, sua protagonista, a tenente Ellen Ripley, interpretada com segurança por Sigourney Weaver. Vamos descobrindo quem – e o quão forte – ela é gradualmente, à medida que o medo toma conta da tripulação e o terror se espalha pelas artérias da nave.

Da mesma forma, os segredos guardados pelo cientista Ash, vivido por Ian Holm, são revelados aos poucos, surpreendendo simultaneamente seus companheiros de viagem e o público – como se este também fizesse parte do grupo e estivesse sob o risco iminente de travar contatos mais que imediatos com aquela criatura repleta de ácido nas veias.

Por falar em contatos imediatos (e hi-per-ten-sos), a sequência em que Ripley se acha sozinha – absolutamente vulnerável – com a fera no módulo auxiliar da Nostromo, no ato final do longa, é a síntese perfeita de uma obra que constrói sua atmosfera de pavor progressivamente, que deixa a plateia com a respiração ofegante sem precisar fazer uso de um festival epiléptico de berros.

O que se mostra, enfim, bastante coerente com aquele universo: como bem diz a frase no pôster do filme, no espaço ninguém pode ouvir você gritar.

domingo, 17 de junho de 2012

Sábado em Copacabana

Não sou um Drummond, mas tirei o dia para sentar naquele banquinho, de costas para a praia – que o que mais me encanta ali é olhar a avenida, é ver as pessoas. A vendedora de sanduíche, o craque do futevôlei, o domador de ondas, a senhorinha do tai chi chuan, o campeão de biriba, o malabarista do sinal, o turista de longe.

A menina de saia azul festejando o aniversário no Arab com os amigos, fascinada pelos tabules, kaftas, esfirras, quibes, cuscuzes e outras iguarias saídas da lâmpada maravilhosa de Aladim.

O bando de tijucanos curtindo a tarde chuvosa sob um quiosque, rindo, rindo alto – como se a areia vazia fosse a última piada do mundo –, tomando um porre de água de coco.

O casal japonês tirando mil fotos do calçadão famoso, do hotel famoso, da estátua famosa, da paisagem famosa, do gari famoso, de um famoso famoso, até de mim!, famoso ninguém.

A senhorita de moral insuspeita e inabalável bebendo sua caipirinha, esparramando-se por toda a Atlântica, do Leme ao Posto Seis, sete, oito...

A ganguezinha de meliantes bem-apessoados invadindo a Trattoria e, de repente, correndo de lá com um carregamento de tortas alemãs. Os guardas-municipais os deixando escapar por duas, três míseras fatias. Os donos da cantina chorando no meio-fio o creme de leite derramado. As ratazanas atravessando a rua até o bueiro da esquina.

Os recém-casados, namoradinhos, singin’ in the rain, pulando poças, dividindo um guarda-chuva de haste quebrada que o vento quase, quase levava, passeando à beira-mar, dançando num bar à meia-luz como se estivessem a sós com o verso que cantavam – como se pairassem à procura de um bom lugar para amar.

Que eu já encontrei.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Me engana que eu gosto

Não há outro jeito de começar a contar o caso da prisão do pai de santo que prometeu trazer a propina amada em três horas: era uma vez.

Pois então.

Era uma vez o reverendíssimo Pai Carlinhos Cascatinha da Pombagira, vulgo Cachoeira para os que não entenderam a piada, bem-sucedido empresário do ramo das previsões futurológicas e astrais, fabricante de caça-níqueis-e-trouxas que ainda acreditam em conversa para boi dormir, estória (com e mesmo) para inglês ver e denúncia da Veja Varejeira.

O Macumbeiro das Estrelas acabou detido por policiais da primeira e única delegacia de crimes contra a boa-fé dos brasileiros-que-não-desistem-nunca-de-levar-vantagem após o depoimento emocionado de uma vítima à ilibada revista durante um vernissage promovido pela high society carioca na Ilha de Caras e Bocas.

Segundo a pobre criatura – que já foi funcionário do pai de santo e jura ter visto duendes, fadas e políticos honestos –, Cascatinha lhe prometeu um punhado de dólares caso ele não jogasse no ventilador sua folha corrida de vigarices, charlatanices e outros trabalhos feitos à base de farofa, cachaça e galinha morta. Aliás, um punhado de dólares na cueca.

De quem, não me perguntem. O horário não permite detalhes tão sórdidos.

O fato é que o Embusteiro do Caboclo Louro prometeu o dindim em três horas e não cumpriu o combinado nem em três dias. Em tempo algum, para falar a verdade. Ainda passou a ameaçar o ex-empregado de invocar antigos espíritos do mal – os perversos mumm-rás – e amarrar seus caminhos vida eterna afora.

Que meda.

Agora quem vai ficar amarrado – num xilindró bem apertado – é esse Herculano Quintanilha de novela mexicana, esse David Copperfield do subúrbio, esse Mister M dos truques baratos, esse ilusionista de meia tigela de vinagre na encruzilhada do fim do mundo. É o que espera cada uma de suas vítimas. Cada pessoa que confiou em seu papo de era-uma-vez.

(Que viveram-felizes-para-sempre não vem embrulhado em bola de cristal.)

domingo, 10 de junho de 2012

Caixa preta

Um acidente de avião deixou mais de 150 mortos na Nigéria. A queda e explosão da aeronave, num bairro pobre e populoso de Lagos, não apenas mataram todos os tripulantes e passageiros, como também vitimaram pessoas que estavam em suas casas no momento da catástrofe. Esse já é o pior desastre aéreo do país nas últimas duas décadas.

E a notícia surge em nossos fantásticos jornais nacionais entre uma visita à humilde residência de Michel Teló e os gols da rodada. Entre os festejos pelos sessenta anos de reinado de Elizabeth II e a entrevista ex-clu-si-va de Ronaldinho Gaúcho. Entre a chegada de baleias da Antártida a Abrolhos e o anúncio de que o Lanterna Verde é gay.

Imaginemos agora que o mesmíssimo avião – com seus mais de 150 tripulantes e passageiros – caísse nos subúrbios de Nova York, Londres, Paris.

Logo ouviríamos o inconfundível tema do plantão global. Logo toparíamos com William Bonner, ao vivo e em high-definition, direto dos escombros. Logo daríamos com Miriam Leitão falando sobre os impactos da tragédia na economia local e nas bolsas asiáticas. Logo nos depararíamos com Alexandre Garcia analisando as misteriosas causas do acidente.

Logo o acontecimento teria um Globo repórter para chamar só de seu.

E eu, cá com minhas letrinhas, sem mais o que fazer, passei a semana me perguntando por quê. Por quê. Mil vezes por quê. Uma crônica inteira de porquês. Um Manhattan connection – de cabo a rabo, de Lucas Mendes a Diogo Mainardi – de porquês. Porque há fatos e fatos, lugares e lugares, histórias e histórias, pessoas e pessoas?

Porque, infelizmente, há vidas e vidas.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

A festa da boa vizinhança

Faz uns cinco minutos que meu queixo caiu. Acabei de saber, graças ao sempre bem informado Jaimito Porteiro, que Seu Ramon e Dona Florinda, vizinhos meus de porta e tantas datas, estão se divorciando. Vinte e seis anos de união, quatro filhos, bodas de prata comemoradas no salão nobre do Tijuca Tênis Clube, fotos felizes sobre aquele bufê cafona da sala de jantar.

E agora fico me perguntando o que teria provocado a separação. Pareciam tão feitos um para o outro. Como Roberto e Erasmo, Lennon e McCartney, Tom e Vinicius, Batman e Robin, Tom e Jerry, Piu-Piu e Frajola, Adão e Eva, Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Tarcísio e Glória, Didi e Dedé, Evo e Chávez, Cabral e Paes.

Quem sabe apareceu uma Clô na vida dele. Ou um Frederico na vida dela. Ou um Frederico na vida dele. Ou uma Clô na vida dela. Ou uma Rosa Rumorosa na vida dos dois. Não, acho que não. São muito tijucanos para admitir uma terceira escova de dentes na suíte. Não topariam um ménage à trois. A não ser à trois croissants – no Café Palheta.

Quem sabe surgiu uma dívida ou uma herança. Dinheiro – ou a falta de – pode quebrar a banca das melhores famílias. Não, também acho que não. Seu Ramon foi funcionário do Tribunal de Contas por décadas; e Dona Florinda, professora de matemática por... por que alguém resolve dar aula? E de matemática? Eu, hein. O fato é que, de números, o casal entendia.

Quem sabe... tocou a campainha. Dona Florinda. Olhos vermelhos, tadinha. Estava vendendo o tal bufê cafona. Sondei a razão que a levava a se desfazer de peça tão singular. E ela contou que o marido, após uma discussãozinha boba, jogou em sua cara ter aturado aquele monumento de mau gosto mais tempo do que devia.

Meu queixo, caído, despencou. Por pouco não fiz uma oferta pelo objeto. Cheguei a cogitar um cantinho para ele na sala. Da casa da minha sogra.

Mas logo desisti. Seu Ramon e Dona Florinda não mereciam uma linha de atenção e fofoca – quanto mais uma crônica só deles. Afinal, há coisa de ano e meio infringiram uma lei fundamental da boa vizinhança: esqueceram-se de convidar o vizinho de porta e tantas datas para suas bodas de prata, comemoradas no salão nobre do Tijuca Tênis Clube.

domingo, 3 de junho de 2012

À francesa

Há dias em que deveríamos acordar em Paris. Croissant no café, Monet na parede, Torre Eiffel na janela. Infelizmente, nem sempre é possível. Quase nunca. No meu caso, nunquinha (ainda!). Paciência. De vez em quando, dou um jeito, fujo do trabalho e me escondo numa sala escura só para ouvir a língua de Toulouse-Lautrec.

Ou para ver os olhos amendoados da Audrey Tautou. Na última escapadela, seu mais recente filme, o briochinho A delicadeza do amor. A história de uma viúva (Nathalie) que se soterra de trabalho para esquecer a tragédia que vitimou seu marido (François). Até a hora mágica em que ela decide beijar um de seus colegas, o tímido Markus. Assim mesmo – do nada.

E é daquele "nada", daquele encontro inesperado (para os dois), que nasce discretamente, sem violinos e clichês, sem circunstâncias estapafúrdias e pompas hollywoodianas, o sentimento que os aproxima, que lhes dá a chance de enxergar o outro de perto e descobrir afinidades até então invisíveis: o tal do amor.

Daí em diante, a câmera da dupla David e Stéphane Foenkinos desenha carinhos e medos do casal com as tintas da suavidade – como num breve passeio pelo jardim da casa da avó dela –, uma pincelada de graça – como no momento em que Markus se perfuma antes de teclar com a amada – e uma edição que salta elegantemente no tempo – como na sequência inicial, na qual espiamos o dia em que Nathalie conheceu François.

Por falar em François (não o marido de Nathalie, mas o outro, François Damiens, que interpreta Markus), nele está a alma do filme. Seu jeitão desajeitado, sua fala mansinha, sua sensibilidade de poeta despretensioso alcançam o espectador mais distante. Cá entre nós, é possível não se apaixonar por um sujeito que, ao ser questionado sobre o que mais gosta em sua namorada, diz que ela lhe permite ser a melhor versão dele mesmo?

Como não é possível deixar a Cidade Luz, digo, o cinema e ir direto para casa ver a novela das nove. Antes, aquela paradinha sem pressa no Café Sorelle para uma fatia de quiche. Alho-poró, rúcula, tomate seco, uma xícara de saudade com canela – e a certeza de que há noites em que deveríamos dormir em Paris. Ulalá!