domingo, 31 de agosto de 2014

Tinha que ser o Chaves

Pois é, pois é, pois é. Foi só eu topar com uma enquetezinha boba – dessas que levam do nada a algum barril da memória – que me escapuliu aquela vontade nhonha de evitar a fadiga e esquecer a louça na pia. A pergunta do dia: é de groselha, limão ou tamarindo? Brincadeira. Ainda bem que o leitor tem paciência comigo; não tem? Sério agora. Queriam saber qual tinha sido o melhor episódio de todos os tempos da série criada por Roberto Gomes Bolaños.

Sem querer querendo, o site oferecia mais que uma xícara de reminiscências, e recordava pérolas (ou seriam carambolas?) que iam da viagem a Acapulco – com seu entardecer ninado pelos versos de “Boa noite, vizinhança” – ao cineminha com toda a turma da vila – episódio que popularizou o bordão “Teria sido melhor ver o filme do Pelé” –, passando por inúmeros outros clássicos.

Mas, como qualquer lista, essa também tinha ausências dignas de um ai-que-burro-dá-zero-pra-ele, ainda que citasse duas dezenas de histórias inesquecíveis. O povo dos comentários – em geral a gentalha da rede – dessa vez prestou um serviço do tamanho do Sr. Barriga ao lembrar, entre vários tesouros e loterias inacreditavelmente ignorados pela pesquisa, os espíritos zombeteiros, o julgamento do Chaves e os “higiênicos churros da Dona Florinda”.

Como esquecer a Bruxa do 71, digo, a Dona Clotilde incorporando a médium enquanto o Chaves puxava a toalha da mesa e o Quico batia a cabeça na porta, fazendo com que todos acreditassem que os mortos estavam de fato se manifestando? Ou o Chaves (olha ele, olha ele!) perguntando ao Professor Girafales pela enésima vez se este se referia ao gato ou ao Quico? Ou, ainda, o Seu Madruga com chapéu e avental de chef?

Cada um deles deixou um gostinho de sanduíche de presunto na lembrança de quem os degustou. A ponto de até hoje os fãs rirem de falas – quando não as usam no cotidiano – como “Já chegou o disco voador”, “A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena” e “Não tem biscoito”. Entre tantas linhas memoráveis, guardo especialmente a sabedoria macunaímica de Don Ramón, Madruguinha para os íntimos: “Não existe trabalho ruim. O ruim é ter que trabalhar”.

A louça na pia que o diga.

domingo, 24 de agosto de 2014

Notícias de uma guerra nada particular

Da série onde vamos parar: acabo de baixar um aplicativo no meu smartphone para receber mensagens do futuro. É o Time Machine Messenger. Ou TMM (lê-se com a pronúncia inglesa, como Ene Bi Ei para NBA). Só não vou dizer a marca para não parecer merchan. Mas garanto que funciona. Tanto é que já estou com a caixa de entrada cheia – sinal de que nossos netos não serão menos desocupados que a gente.

O primeiro recado vem de dois mil e flash gordon. É de um tal @realsteverogers compartilhando com o mundo inteiro que o conflito em Buenos Aires está bombadaço. Que os drones venezuelanos são mais perigosos que os brasileiros. Que os aborígines bolivianos são mais kamikazes que os muçulmanos. Curioso é que o sujeito anexou uma selfie dele com uma mesquita explodindo ao fundo. #partiufront

Próxima: essa é do @bonnerneto, anunciando que o conflito no Oriente Médio já chegou à Europa – via russos filhos do Putin e franceses membros de uma seita conhecida como Esquerda Croissant. Ainda segundo o apresentador do Jornal Internacional, estilistas comunas, interessados em lançar sua nova coleção de caças e mísseis, estariam liquidando a anterior. Metralhadoras nucleares a partir de 9,99 euros.

Outra do @bonnerneto: um #ff para o perfil do @galvãobuenoimortal. Entre diversas mensagens de parabéns à Seleção pela classificação para a Copa após quase meio século de hiato, o locutor comemora o aniversário de duzentos anos e a compra dos direitos exclusivos de transmissão da First Fifa World War (as outras duas guerras mundiais foram desconsideradas por não terem sido patrocinadas pela entidade).

(Quase desinstalando esse negócio.)

Tentando mais uma. Last. Not least. @jotahuck. Megaorgulhoso do Home Sweet Home desta semana, galera. Viajamos milhares de quilômetros até a Favela Palestina – último reduto de não cristãos no planeta, localizado na periferia de Tel Aviv – para reconstruir o abrigo antiaéreo de um muçulma supergentefina, viúvo, pai de doze arabezinhos ultrafofos. #nãopercam #próximosábado #caldeiraço

Não preciso repetir que essa foi mesmo a última mensagem. Medo de que a próxima revelasse que, graças a uma parceria inédita entre a Globo, a Unesco, a Igreja Universal e o governo brasileiro (todos sob a coordenação da Fifa), o Child Hope tinha enfim chegado a Gaza. Ainda sem dedução no imposto de renda.

domingo, 17 de agosto de 2014

Noite preta

Não consigo imaginar a saga de Anderline, musa do novo romance de Dau Bastos – Mar Negro (Ponteio, 2014) –, sem ouvir ao fundo os versos vampirescos do maior sucesso de Vange Leonel, artivista falecida recentemente: “Eu saio da cidade/ Procuro só a escuridão/ A purificação na calada da noite/ Da noite preta”.

Isso acontece não só porque Line, fruto de um ménage entre “tinta, papel e horror”, prefere o breu da Transilvânia à luminosidade de Maceió, ou tem o hábito de sugar remendos de vida que vão de um faxineiro equatoriano a um adolescente polonês – mas principalmente porque ela é, a seu modo, também uma artivista.

Hors concours do Prêmio Macabéa, “dilacerada entre a natureza de personagem e a aparência de gente”, a desgraçada vai logo além; extrapola os limites de protagonista. Com a ajuda de um ardiloso troca-tintas (vulgo Dau), veste a um só tempo o capuz do artista – a ponto de cogitar publicar seus diários como se escritos por ela mesma – e a capa do ativista – ao assumir o posto de representante máxima de todos os trambolhos da humanidade.

Line é uma black bloc; sua função é desacatar. Com seus coquetéis de pragmatismo e ironia, com suas bombas caseiras feitas à base de “forra, farra e forró”, vandaliza toda a dor de cotovelo de um amor não correspondido. (Cá entre nós, felizmente não correspondido. Porque ninguém merece a parvoíce de um Apolo canalha, canastra e irrecuperavelmente coxinha.)

Só que tal dor de cotovelo não se restringe ao amor não correspondido; para gozo do leitor – certamente seduzido pelo perfume de feromônio da mocreia –, ela transborda para o mundo não correspondido, o planeta fast-food, o McMundo no qual, segundo a própria personagente, “felizes são os que têm traços médios, porque se beneficiam do posicionamento no bololô”.

Tentando encontrar o seu bololô – ironicamente o seu não lugar ao sol, o porto (seguro?) onde o astro rei não a alcance e revele sua face Fera –, a Bela põe a mochila na corcunda e viaja pelos porões da Europa (Cracóvia, Bucareste, Sófia...) rumo a um destino com ares de sina para quem sabe que é gente e, especialmente, literatura: a última página de um romance.

Vale cada pensão de quinta, cada birosca xexelenta, cada beco no meio do nada (e do frio) acompanhar Line em sua jornada pelas beiradas e desvãos da existência, em seu mergulho sem cilindro nas águas do Mar Negro. Uma aventura que, se para os que pouco viajam há de soar inverossímil ou artificial, para os acostumados aos embarques e desembarques da ficção se fará refúgio indispensável.

domingo, 10 de agosto de 2014

When I’m sixty-four

Dia dos Pais + canção dos Beatles + meu velho em plena forma após seis décadas e quatro carnavais = a mistura certa na hora certa. Era como a passagem do cometa Halley, o nosso Vasco novamente na final da Libertadores, Maluf reconhecendo falcatrua em rede nacional, eu ou qualquer criatura no mundo enchendo – por livre, espontâneo e irrefreável desejo – aquela garrafa d’água vazia que não sai da geladeira: eu não podia perder a chance. Escrevia agora ou só na próxima edição de mim mesmo.

Como não acredito em reedição ou em vida após a última página, o negócio era rabiscar uma ou duas palavras para o Seu José (o meu José) hoje. Já. O leitor não se preocupe. Não vou derramar as pieguices de costume, embora ele as mereça em dobro. Nem vou embrulhar gravatas, meias e cuecas. Ele merece mais do que os clichês. Também não vou lhe dar aquele porta-charutos de trocentos reais. Ele não fuma. E vale mais do que os presentes mais caros sugeridos pela Revista dO Globo.

Vou só aproveitar o alinhamento de planetas e ideias para dizer que, ao chegar ao famigerado sixty-four (se eu chegar lá), espero ter a mesma disposição que lhe sobra para bater os parques de Orlando, a ponto de deixar o próprio Mickey nocauteado. (Olha eu de novo viajando para as férias na Disney. Me desculpem, mas é mais forte do que minha desvontade de encher aquela garrafa vazia. Que, aliás, continua na geladeira.

Foco, Fábio; foco: Dia dos Pais + canção dos Beatles + meu velho em plena forma após seis décadas e quatro carnavais.)

Vamos tentar outra vez: ao soprar a sexagésima quarta velinha, pai, desejo ter o mesmo fôlego que você esbanja ao ir e vir da feira em sua bicicleta; a mesma energia que você transpira ao torcer pela Seleção; a mesma ginga com o imposto de renda que você demonstra ao fazer o seu, o meu, o do mano e até o daquele amigo que adora aparecer na última hora cheio de recibos e dúvidas. Espero, enfim e principalmente, revelar a mesma generosidade que você não poupa ao estar sempre com a chave na ignição, pronto para atender a um chamado urgente de quem quer que seja.

Da esposa que precisa de carona até o shopping; do filho que precisa de carona até o trabalho; do outro filho que precisa de carona até o curso de inglês; da sobrinha que precisa de carona até a festa; do cunhado que precisa de carona até o médico; da sogra que precisa de carona até a rodoviária (essa você dá com um gostinho extra, que eu sei); do amigo que precisa de carona até o aeroporto; de certo pastor alemão que não precisava de carona – e só queria mesmo dar uma voltinha de carro.

Sorte infinita a nossa: que pegamos carona no busão que você leva no peito.

domingo, 3 de agosto de 2014

Difícil acordar

Comigo é sempre a mesma coisa: volto das férias no dia e hora marcados, mas as férias não voltam de mim. Dão um jeito de negociar um nevoeiro com os cambistas da Fifa e não decolam nem por medida provisória. Aí fico eu naquele salão de embarque meio kafkiano, com ares e tapumes de Galeão, à espera do voo que enfim me devolva à realidade.

Mas a culpa não é só das estrelas (ou da falta delas). É minha também. Quem manda um sujeito com fraco por fadas e ficções viajar para um lugar como Orlando? Quem manda fazer amizade com piratas, princesas, ETs, dinossauros e ianques? Quem manda cheirar pó de pirlimpimpim traficado por meliantes feito a Sininho e os Meninos Perdidos?

Agora sério: não é fácil para um aficcionado (com dois cês mesmo) aterrissar no aeroporto dos fatos depois de uns dias na capital mundial do faz de conta – que acontece. Lá um castelo é tão real quanto qualquer padaria. Uma viagem no tempo ou no espaço é tão comum quanto qualquer passeio de metrô. Uma partida de quadribol é tão banal quanto qualquer Fla-Flu.

Naquela cidade sem montanhas nem praias (a não ser as de cloro), pasmem: até a paz galáctica é possível. De repente vejo americanos e árabes, cristãos e muçulmanos, brasileiros e argentinos dividindo a mesma rua, a mesma calçada, a mesma fila, a mesma língua – a da alegria de saborear um mundo onde a palavra terror só aparece no letreiro de um hotel mal-assombrado.

It’s a small world after all? Só se for na velha canção. Orlando é tão vasta quanto suas planícies e tão plural quanto o Epcot, o parque temático que abriga de vikings a marroquinos, além de astronautas, arraias e um dragão lilás. É capaz de abraçar todas as diferenças – de sexo, idade, religião e reticências – e ainda tratá-las como guests, convidados de honra de um baile que jamais vira abóbora depois da meia-noite.

Já sei o que o leitor está pensando: ele passou por uma lavagem cerebral. Verdade. Passei mesmo. Voltei com neurônios e artérias limpinhos. Zerados. Tão zerados que me aflige colocá-los de novo em campo para enfrentar os sete a um com os quais as manchetes nos goleiam diariamente.

Quisera eu viver belo adormecido para sempre.