domingo, 20 de setembro de 2015

Espanando a relação

Um filme que abre as janelas de uma casa grande (daquelas com várias suítes, piscina, dependências) e tira das sombras o convívio aparentemente pacífico entre uma família de classe média alta e a empregada que lá trabalha. Uma história de encontros e desencontros entre mães e filhos. Um retrato – com o filtro do otimismo – de um país em transformação.

Dirigido e roteirizado por Anna Muylaert, Que horas ela volta? narra o cotidiano arrumadinho de Val (Regina Casé), doméstica como tantas outras (ainda) espalhadas por mausoléus Brasil afora. Só que, de repente, essa vidinha com cada coisa em seu lugar é desarrumada por Jéssica (Camila Márdila), a filha que deixa o Nordeste para prestar vestibular em São Paulo e termina se hospedando no local de serviço da mãe. Bem informada e com a autoestima de quem não se considera inferior a ninguém, a jovem começa a questionar o comportamento submisso de Val diante dos patrões, o que acaba expondo o apartheid ali existente.

Por contar uma história infelizmente brasileiríssima – sem varrer para debaixo do tapete o que ainda resta do legado escravagista em nosso dia a dia –, o longa escolhido para ser o representante brasileiro no Oscar é capaz de servir de espelho para públicos tão distintos (e distantes?) quanto o do Morumbi e o da Zona Leste, só para ficar na geografia social paulistana. Improvável a plateia não enxergar a si mesma nos andares daquela pirâmide de muros quase inescaláveis há alguns anos.

Quantas senhoras de bem não se identificarão com “dona” Bárbara (Karine Teles acertadamente contida, sem as afetações das madrastas dos contos de fada), a patroa que, de tão “generosa”, trata sua criada de tantos e tantos anos como um membro “praticamente da família”? Quantas marias não se reconhecerão na Val, a empregada que, de tão competente, já “nasceu sabendo sua posição”?

Aqui um paninho rápido na atuação de Regina Casé: notável sua capacidade de migrar das cenas bem-humoradas – como a que a traz tentando decifrar o jogo de xícaras e garrafa térmica com o qual presenteia a dona da casa – para as mais dramáticas – como a que acompanha a discussão dela com a filha em sua cela, ops, quartinho, pouco antes de a menina deixar a mansão em meio a uma chuvarada.

Igualmente notável é a sutileza do roteiro – que não só se destaca por passagens escancarada e lindamente simbólicas, como quando Val enfim entra na piscina, mas também por tomadas tão silenciosas quanto expressivas, como aquela em que a personagem, depois de estender as roupas no varal, resolve sentar-se, fechar os olhos e descansar brevemente sob o sol.

Outra sequência que não deve passar entre nuvens – e que só ratifica o cuidado do roteiro com os detalhes – é a que mostra Val e Jéssica tomando café juntas, nos minutos finais da projeção: o espectador atento vai reparar que xícaras e pires não descombinam mais. Discreta metáfora para aquilo que por tanto tempo esteve fora do lugar (mãe e filha) e agora está onde sempre deveria ter estado. Uma ao lado da outra.

É bem possível que alguns – os que não querem enxergar a faxina pela qual o país começou a passar na última década, e/ou não se conformam que a roupa suja da senzala esteja sendo finalmente lavada – acusem o filme de apostar ingenuamente na esperança, ainda mais num momento em que as manchetes só ecoam caos e crise. Pois eu apostaria também. Especialmente depois de ver, nos classificados, que os novos imóveis não vêm mais com aquele velho quartinho virado apenas para a cozinha.

Agora ele é reversível.

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