domingo, 26 de outubro de 2014

Dó ré mi

Sabe aquele filme que te deixa com vontade de puxar uns transeuntes no meio da rua e improvisar uma coreô à GreaseÉ o caso da fofice musical a que assisti recentemente no Festival do Rio: God help the girl, escrita e dirigida por Stuart Murdoch, fundador da banda escocesa Belle & Sebastian. O longa acompanha as desventuras de Eve (Emily Browning), James (Olly Alexander) e Cassie (Hannah Murray), amigos em meio à travessia entre a adolescência e a vida adulta.

Embalada pelas canções que Eve rabisca enquanto dribla a anorexia, essa travessia tem seu refrão quando o trio embarca numa canoa para explorar um rio nos arredores de Glasgow, onde vivem. Graças à delicadeza da sequência (delicadeza essa que se espalha por toda a fita), o que poderia soar como metáfora-de-uma-nota-só se revela uma suíte perfeita das vozes que compõem a sinfonia da juventude: sonhos, inseguranças e descobertas.

Sonhos como o de formar um conjunto – o que àquela altura parece rimar com a realidade, especialmente quando a só aparentemente distraída Cassie observa que, se eles remam juntos, já são uma banda. Somos mesmo? Ou somos apenas três pessoas num barco? É o que de repente se pergunta o tímido e inseguro James, que ao fim do passeio é surpreendido por um beijo de Eve. Doce descoberta.

Tão doces quanto divertidos são os acordes de humor que se misturam aos agudos e graves da mocidade. Impossível não rir da "destreza" de James à beira da piscina, em seu trabalho de salva-vidas; ou do comentário de Cassie relacionando os finais felizes de filmes e livros à possibilidade de Eve e James não terminarem juntos; ou, o melhor, da referência hilária ao clássico A noviça rebelde – concluída nos créditos finais, que citam uma tal personagem Julie Andrews.

Finalmente, se não bastassem um roteiro que em geral não desafina (a não ser, talvez, pela aparição de um deus ex machina que banca a cabelereira nas horas de folga) e a trilha que ecoa a suavidade indie-pop de Belle & Sebastian, o fotógrafo Giles Nuttgens ainda nos encanta com enquadramentos cheios de cor e significado, como o que mostra os três companheiros numa praça, cada qual num aparelho de exercício, discutindo música; ou o que traz Anton, líder bonitão da banda Wobbly-Legged Rat, ao lado de um manequim que guarda com ele semelhança que não é mera coincidência.

(Coincidência mesmo – só que não – é eu estar diante da Fernanda ensaiando uma dancinha à John Travolta e cantarolando “Summer nights”: tell me more, tell me more.)

domingo, 19 de outubro de 2014

Armação ilimitada

Façamos um breve exercício de ficção: se de repente a Globo resolvesse produzir um seriado levemente inspirado nas eleições presidenciais, certamente chamaria o Bruno Gagliasso para viver o Aécio e a Valéria do Zorra para interpretar a Dilma. Chamaria também a Fernanda Montenegro para uma participação especialíssima, no papel de Fernando Henrique Cardoso.

O Lula talvez acabasse nas mãos do Tom Cavalcante, que ressuscitaria seu célebre João Canabrava. Apareceria sempre no mesmo boteco suburbano-estilizado, tipo a pastelaria do Beiçola da Grande Família, rodeado de seus cumpanheiro de cachaça e biriba – devidamente uniformizados pelos figurinistas com camisetas do Curíntia e aquelas máscaras dos Irmãos Metralha.

Do outro lado do Projac, uma mansão paulistamente quatrocentona, já usada em alguma novela do Silvio de Abreu, serviria de cenário para os coadjuvantes alvos, héteros e de moral ilibada do heroíno tucano. Cumprindo a cota de atores negros no núcleo rico, a empregadinha Marina de Fátima, que não mediria esforços para engravidar do filho do patrão e diminuir a desigualdade social entre sua família e a dele.

A direção de arte se inspiraria em filmes-catástrofe e distópicos: pobres e mais pobres enchendo de iogurte os carrinhos nos supermercados; pobres e mais pobres invadindo os aeroportos para visitar familiares em Campina Grande e Caruaru; pobres e mais pobres (inclusive as primas de Marina) cursando as mesmas universidades dos sobrinhos da família Neves.

Um autêntico apocalipse classecê – hordas e mais hordas de novos consumidores.

Quanto à trilha sonora, não poderia soar mais óbvia: Tina Turner e seu clássico “The best” para cada olhar 45 do netinho de Tancredo; Rita Lee e sua venenosa “Erva” para cada como-eu-tô-bandida da atual presidente; Cazuza e sua panfletária “Brasil” para a abertura. Qual é o teu negócio? O nome do teu sócio? Não sei e não sei; só sei que ele pagou propina ao PT, revelaria um figurante sem se identificar.

Nos últimos episódios, para alavancar ainda mais a audiência, o tradicional quem-matou: a vítima, um famoso jornalista de oposição que, inadvertida e neoliberalmente, denunciou as sessões de degustação de caviar no pé-sujo frequentado por Luís Inácio e seus red caps. O corpo do sujeito seria encontrado ao lado de uma foice, um martelo e o Corão – o que tornaria Dona Rousseff a principal suspeita do homicídio.

Afinal, as provas achadas na cena do crime só reforçariam os boatos de que a anti-heroína teria estreitado relações com o Estado Islâmico para instaurar – em caso de vitória nas eleições – uma ditadura comunista-bolivariana-com-viés-árabe-kamikaze, cujas primeiras medidas seriam o fechamento imediato de todos os McDonald’s e o cancelamento sumário de todas as viagens com destino a Miami, Orlando e Nova York.

(Fonte segura acaba de me informar que essa sinopse existe e já recebeu a bênção de um dos cardeais da emissora: é Ibope garantido, teria dito o chefão. Sem margem de erro.)

domingo, 12 de outubro de 2014

Aquarela

Não sei vocês, mas sempre que invento de arrumar aquela estante que suporta mais livros do que a física acredita, encontro motivo para adiar a faxina. Desta vez, foi um livrão de capa colorida e rostos conhecidos: Charlie Brown, Manda-Chuva, os Flintstones, os Jetsons, Tom & Jerry e outros tantos superamigos. Saudade deles. Saudade que me fez garimpar um cantinho de tempo para folhear página por página do Animaq: almanaque dos desenhos animados (Matrix, 2010), de Paulo Gustavo Pereira.

Quem um dia se divertiu com as travessuras do Pica-Pau, acompanhou Scooby e sua turma desmascarando fantasmas nada sobrenaturais ou já se imaginou pilotando o Mach 5 certamente vai adorar essa antologia, que reúne zilhares de madeleines do mundo da animação. Uma verdadeira corrida maluca, que começa nos anos 1930, com o charme da provocante Betty Boop, e vai até o melhor desenho de todos os tempos da última semana, que pode ser o Ben 10 ou qualquer outro animê legitimamente norte-americano.

Uma delícia reencontrar Eric, Hank, Diana, Sheila, Presto e Bobby (ainda) perdidos na Caverna do Dragão; o lalalalá dos Smurfs azucrinando Gargamel; Zé Colmeia e Catatau surrupiando cestas de piquenique em Jellystone; o (nada) bom e (muitíssimo) velho Mum-Rá evocando antigos espíritos do mal a transformar aquela forma decadente no ser de vida eterna.

(Tudo isso enquanto o He-Man dançava um rock gravado por Tom Jobim e a She-Ra namorava o Esqueleto no jardim.)

Tempos bons que invariavelmente voltam quando a gente resolve embarcar numa aventura à Ducktales (uh-uh!) e desenterrar aquelas moedinhas que ficam mais valiosas com o passar dos anos, tesouros como o timing cômico da dupla Papa-Léguas/Coiote; a ironia de cada “que que há, velhinho?” do Pernalonga; e as altas viagens que os Muppet Babies faziam – sem sair do quarto – até que a Babá (só as pernas dela, é verdade) aparecesse e perguntasse “Is everything all right in here?”. Yes, Nanny.

E, se o leitor pensa que that’s all, folks, está ligeirinhamente enganado. O Animaq é um universo de mais de trezentas páginas, e nele habitam ainda o reino de Dar-Shan, o humor de Springfield, os dentões da Mônica, a lendária Flor das Sete Cores e um carregamento vitalício de latinhas de espinafre – além de mil e uma histórias de um lugar que não cabe numa folha qualquer, que não se faz apenas com cinco ou seis retas.

Um lugar que, contrariando a famosa letra de Toquinho, jamais descolorirá.

domingo, 5 de outubro de 2014

Vai rolar a festa

Hoje vota o amigo que não discute política porque é inútil. Também vota o tio que não abre a boca de urna porque não ganha um centavo pra isso. Vota ainda a madame que não liga pro fato de o Brasil ter deixado o mapa mundial da fome; o que a preocupa realmente, e a faz clamar por mudanças já, é a inflação dos últimos meses, que elevou a níveis indigestos o preço do brie na Lidador.

Fico me perguntando, com direito a réplica e tréplica, a quem interessa esse papo-zumbi de que discutir política – algo que nos afeta diretamente – não leva a lugar algum. Talvez interesse a quem lucra dividendos no Ibope; a quem capitaliza os mortos-vivos que desperdiçam o horário nobre de suas vidas analisando que candidato a Tarcisão tem mais chances de ser eleito no coração da Glorinha.

Quem não lucra, não capitaliza, não tira um bolsa-família nem de meio debate entre odoricos e paraguaçus é o tio. Por isso ele não se mete em propaganda gratuita. Aliás, não se mete em nada que não renda ao menos uma comissão (a cervejinha ele dispensa, já que é evangélico praticante). Em outras bravatas: o tio só sobe no palanque para discursar seus entretantos e finalmentes se rolar aquele mensalinho básico.

Bem diferente da madame, que gosta tanto de subir – no salto – que o faz até de graça. Desde, claro, que o calçado seja Chanel ou Louis Vuitton, de preferência garimpado num outlet em Miami. Pois é ela vestir seus pezinhos de Cinderela da Barra da Tijuca que começa a protestar: especialmente contra o fato de ter que dividir a fila do check-in no aeroporto com a própria empregada.

Não bastasse receber vale-transporte, hora extra e décimo terceiro, agora ela quer viajar de avião – e sentar na janela. Vê se pode.

Pode. Yes, they can. Podem tanto quanto o amigo que só quer saber de novela: das seis, das sete, das nove, do Viva. Podem tanto quanto o tio que só quer saber de cachê: não importa de que propinoduto ele venha. Podem tanto quanto a madame que só quer saber do próprio umbigo, recauchutado em doze vezes: onde talvez só caiba o condomínio de classe média no qual sobrevive a duras plumas.

Neste domingo de eleições, da chamada festa da democracia, todo mundo pode. Inclusive esses três – que, espero, sejam minoria no salão.