domingo, 18 de dezembro de 2016

Canção do exílio

“Espécie rara de colecionador, pouco liga para o que o objeto é em sua origem e sim o que se torna ao ganhar outra vida, estraçalhado, em seguida ressuscitado.”

O trecho se refere a certa personagem do romance Rio-Paris-Rio dada a provocar acidentes com qualquer bibelô apenas para, em seguida, juntar seus cacos e reconstruí-lo. Mas bem que poderia se referir à sua autora, Luciana Hidalgo, que oferece ao leitor uma passagem em primeira classe até o mundo de Maria, cuja vidinha pretensamente quadrada e simétrica – tal qual o quarto em que se refugia na capital francesa – derrete de vez em meio às manifestações estudantis de maio de 1968.

À maneira de uma restauradora singular – nem um pouco dedicada a recuperar a forma original da peça fraturada, mas a realçar o que deriva da fratura –, Luciana esculpe em doze capítulos a odisseia de renascimento da jovem que deixa o Brasil dos militares para estudar filosofia na Sorbonne e, ao mesmo tempo, ordenar o caos dos últimos anos, marcados não só pelo golpe que instaurou uma ditadura no país, mas também pela morte do irmão em circunstâncias trágicas.

Como seu ancestral literário (o herói Ulisses), Maria conta com uma Ítaca a lhe servir de bússola nessa travessia. Não uma Ítaca fixa, porto seguro, xis previsível no mapa, como a da epopeia. Uma Ítaca, ao contrário, móvel, ambulante, flutuante: o também jovem Arthur. Um poeta, um artista de rua, um brasileiro igualmente foragido – que ocupa o quartel-general da moça com versos jogados por baixo da porta.

Viajar é sentir, diz um deles (extraído de Fernando Pessoa). Sentir tudo de todas as formas, excessivamente – aí está o passaporte para se aproveitar ao máximo o roteiro planejado por Luciana. Não deve o turista que enveredar pelo bulevar de papel e tinta da autora esperar uma narrativa cheia de peripécias, feito um poema homérico ou aquela excursão que corre os mil pontos turísticos da Cidade-Luz em apenas um fim de semana.

A viagem aqui é flanar entre personagens das mais sortidas nacionalidades que, direta ou indiretamente, foram atingidos pela truculência da História (como Maria, Arthur e tantos outros); é se deixar (co)mover por corpos e mentes que, de repente, se viram jogados na sarjeta de um período histórico e tiveram de aprender a cuspir fogo no autoritarismo ou fazer uns malabarismos para sobreviver a ele.

É sobretudo compreender que qualquer revolução – inclusive a que atravessa a protagonista e a concilia com as assimetrias ao seu redor – é um ato de violência.

A violência, aliás, extrapola o enredo e (numa decisão estética que ecoa a temática tratada) invade a linguagem: a poesia frequentemente rompe a sequência de parágrafos, inquietando a prosa; e os fragmentos de cartas que trazem notícias das mortes e prisões e lutas no Brasil, com letras em caixa-alta e texto que desrespeita a mancha gráfica, soam como um grito que não se submete mais aos limites da página – assim como as infinitudes vivenciadas por Maria, que aos poucos vencem os contornos (até então) bem definidos de seu esconderijo na rua Cujas.

Em tempos de tantas agressões à democracia – nos quais os interesses de poucos delineiam, com a régua da tirania, um horizonte nada promissor para a maioria dos brasileiros –, não poderia ser mais atual, infelizmente, esse retorno a uma época em que as liberdades individuais e coletivas experimentaram um exílio tão profundo.

É um alento, no entanto, que o itinerário proposto por Luciana acompanhe justamente aqueles personagens que não se deixam imobilizar pela barbárie e continuam caminhando contra o vento – heróis anônimos que, como cactos no deserto, se destacam na aridez da realidade e nos mostram o quanto é importante resistir. Sempre.

P.S.: Vou me exilar do blog um tempinho e volto no próximo ano. Boas Festas!

domingo, 11 de dezembro de 2016

Traduções possíveis

Se A chegada fosse um verbete de dicionário, certamente ocuparia várias páginas – tantas são as definições para o mais novo filme de Denis Villeneuve.

Uma das primeiras e mais óbvias seria ficção científica, dada a sinopse tão cara ao gênero: depois que naves alienígenas pousam em diversas partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos, a linguista Louise Banks (Amy Adams) e o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner) são convocados pelo governo americano para decifrar a língua e os planos dos visitantes.

O mote aparentemente surrado, no entanto, não serve à enésima destruição em massa de cartões-postais. Desta vez, o novo endereço de Donald Trump não vai pelos ares (o que não deixa de ser uma decepção). A pirotecnia tipicamente hollywoodiana cede espaço ao que a ficção científica faz de melhor: usar o fantástico como pretexto para discutir o real e o humano – o tal demasiadamente humano.

Importa ao diretor dos ótimos Incêndios e Os suspeitos observar, por exemplo, a reação apavorada de alguns de nós diante do desconhecido, do diferente: somos capazes de – incitados por discursos xenófobos – quase iniciar um conflito armado mesmo não entendendo o idioma e as intenções do outro, como mostram os soldados que põem uma bomba numa das naves depois de tanto assistirem a um Datena na tevê.

Outro comentário proposto pelo cineasta (spoiler! spoiler!) está na mensagem dos aliens aos humanos, intencionalmente dividida entre os dozes discos espalhados pelo planeta. Traduzi-la integralmente só será possível se houver colaboração entre as nações. O fato de os ETs não fazerem isso porque têm o dedinho iluminado e desejam promover a paz – mas porque esperam uma contrapartida num futuro distante – afasta qualquer possibilidade de abdução por pieguice.

Se aprofundados, esses temas sem dúvida levariam o longa a ser interpretado como ensaio sociológico ou político; eles empalidecem, todavia, frente à definição que mais se aproxima da essência do filme: história de amor. Não uma história de amor (contada) como as outras. Mas uma história de amor que se vale do roteiro de Eric Heisserer (baseado no conto “História da sua vida”, de Ted Chiang) e da montagem de Joe Walker para estilhaçar a linearidade do tempo e expor a incoerência poética de um sentimento que insistimos viver mesmo sabendo que, cedo ou tarde, acabará em morte e dor – mesmo sabendo que só é infinito enquanto dura.

Não por acaso, a certa altura, Louise confessa a Ian sentir que tudo aquilo que está acontecendo parece ter a ver apenas com os dois. Só tem. Uma aliança de casamento – vista em plano-detalhe nos primeiros minutos de projeção – reverbera em outras formas circulares que povoam a narrativa, como a linguagem dos alienígenas, o nome em palíndromo de certa personagem e a própria estrutura do roteiro.

O fim (ou o começo) faz o espectador voltar ao início (ou ao desfecho) e se perguntar se o título do longa se refere somente à chegada dos extraterrestres.

São tantas as leituras suscitadas por esse scifi villeneuveano que, em última análise, é possível compreendê-lo também como um tributo ao cinema. É isso ou o design de produção não faria do interior da nave frequentada pelos protagonistas um corredor escuro, que leva a uma sala igualmente escura, onde só existe uma fonte de luz: um imenso retângulo branco em posição horizontal, no lugar de uma parede, como uma vitrine – a janela usada pelos aliens para se comunicar com os cientistas.

Assim como acontece com Louise, redefinimos nossa relação com o tempo – quiçá redicionarizamos a própria vida – ao entrar em contato imediato com o que está do outro lado da tela.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Escombros

A ideia era enxergar o verde em meio aos destroços.

Era escolher as palavras possíveis para resgatar – da tragédia que vitimou quase o time inteiro da Chapecoense, além de jornalistas e tripulantes – a esperança ainda com vida.

O texto que parecia improvável começou a ganhar forma quando clubes espalhados pelo país substituíram seus escudos nas redes sociais pelo brasão da Chape. Depois, num gesto que transbordou a mera solidariedade virtual, ainda se comprometeram a emprestar jogadores sem custo ao time catarinense e a defender seu não rebaixamento pelos próximos três anos, numa tentativa de ajudar em sua recuperação.
"Brasília em ruínas", Oscar Niemeyer

A comoção foi tão forte, que até o inimaginável aconteceu: o Corinthians pintou de verde sua página na internet.

Enquanto isso, fora das quatro linhas, um famoso site perdia leitores (e os tão disputados cliques) ao pular a catraca do bom senso e publicar matérias tipicamente oportunistas, como um artigo que ensinava a lidar com o medo de voar e – pasmem – um vídeo com passageiros em pânico num avião. Já uma loja de artigos esportivos virou alvo da ira pública ao aumentar o preço da camisa da Chape poucas horas após o acidente. Mais tarde, a empresa se pronunciaria: o valor havia sido reduzido por causa da Black Friday e o preço original tinha sido apenas restabelecido. Verdade ou não, a antipropaganda já estava feita.

Até a área de comentários de grandes portais como G1 e UOL parecia ter sofrido um saneamento básico: paz e amor no lugar do usual chorume.

Não bastassem todas essas demonstrações de empatia, o Atlético Nacional pediu à Conmebol que declarasse campeão o time brasileiro, seu adversário na final da Copa Sul-Americana. A atitude dos colombianos – surpreendente num mundo onde costuma prevalecer a máxima “farinha pouca, meu pirão primeiro” – repercutiu tão bem do lado de cá da fronteira, que imaginei que ela pudesse servir de inspiração aos brasileiros, em especial aos nossos parlamentares, habituados a sempre sacrificar os mais vulneráveis em momentos de turbulência econômica.

Ingênuo, eu.

Eles aproveitaram o luto que tomou conta do país – e a indiferença cúmplice da grande mídia, dedicada quase exclusivamente ao desastre aéreo – para aprovar cortes em investimentos sociais pelas próximas duas décadas (a despeito das manifestações contrárias ao ajuste que aconteciam a poucos metros, violentamente reprimidas pela polícia) e alterar alguns projetos de lei que poderiam contribuir no combate à corrupção; tudo isso entre uma noite de dor e uma madrugada de tristeza, o que deixou no ar uma hedionda fragrância de autopreservação e oportunismo.

A ideia, eu já disse, era enxergar o verde em meio aos destroços.

Só que atos como esses – que desnudam não só os verdadeiros vândalos da nação, como o nível de obscenidade a que chegamos – insistem em levar as palavras até os destroços. Tais atos fazem jus, inclusive, à tirada de gosto muit(íssim)o duvidoso, mas de conteúdo infelizmente realista, que ouvi esses dias e ouso repetir antes do ponto final:

A tragédia em Medellín, para alguns, parece ter caído do céu.

domingo, 27 de novembro de 2016

Herói

Eu não tenho nada a esconder, diz Lindsay (Shailene Woodley) a certa altura de Snowden, o mais recente filme de Oliver Stone.

Usado por muita gente para defender a vigilância em massa praticada por potências como os Estados Unidos, o argumento esfarela quando Snowden (Edward Snow..., digo, Joseph Gordon-Levitt) conta para a namorada que sabe que ela bisbilhota os perfis de outros caras nas redes sociais. De repente, uma ruga de indignação risca o rostinho bonito da moça, desenhando nele a palavra privacidade.

Podemos não ter nada a esconder – mas temos hábitos, manias, segredos que jamais revelaríamos se nos fosse dada a chance de guardá-los apenas conosco.

Foi justamente o direito de escolher o que tornar público sobre a própria vida que acabou deletado quando a Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana – em nome da... segurança – passou a monitorar o mundo inteiro. O mundo inteiro mesmo: incluindo você, seu vizinho paneleiro, sua ex-presidenta e até aquela famosa empresa brasileira do ramo do petróleo. Ingenuidade sua achar que o alvo era só o barbudinho com nome árabe que vende quibe perto da sua casa.

Ninguém escapa desse Big Brother de que todos nós participamos, à nossa revelia, e em que não recebemos cachê, muito menos corremos o risco de ficar milionários.

Mas e o combate ao terrorismo? Mera desculpa para o controle econômico e social, sublinha o ex-funcionário da NSA e da CIA (a Agência Central de Inteligência) em sequência-chave do longa-metragem – longa que acompanha sua trajetória desde a saída das Forças Armadas por problemas de saúde (e posterior admissão naqueles órgãos) até o momento em que ele resolve compartilhar o que sabia com o jornalista Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e a cineasta Laura Poitras (Melissa Leo).

Não custa lembrar que essa vocação do Tio Sam para meter o bedelho – e escutas – na soberania alheia é antiga. Isso fica evidente, por exemplo, no documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Tavares, que daria uma ótima sessão dupla com o filme de Stone e é altamente recomendável para os brasileiros, especialmente os patrioteiros, que carregam no peito e no gogó muito orgulho, muito amor.

De volta ao thriller stoneano, é importante observar como o diretor desmonta a imagem de judas que Snowden tem para muitos conterrâneos (e para quem subtitulou a fita, aqui no Brasil, com aquele cafona “herói ou traidor”). O rapaz é retratado como um sujeito que sempre quis servir seu país: ele sofre por ter de abandonar o Exército em razão das lesões causadas pelos exercícios militares; ele afirma que os Estados Unidos são a maior nação do mundo, num teste a que é submetido para entrar na CIA; ele se incomoda quando Lindsay critica Bush, o commander-in-chief na época em que a conhece.

Snowden delata a espionagem não porque seja contra a América ou seus valores, mas porque deseja preservar alguns dos pilares que a sustentam: de um lado, o óbvio direito à privacidade; do outro, o de qualquer cidadão questionar as atitudes do governo. Ao defender essas premissas, ele entende estar, mais uma vez, a serviço de seu país. Essa coerência – que permeia o arco dramático do personagem – só fortalece a simpatia e a admiração que o espectador desenvolve por ele.

Nem precisava o roteiro recorrer ao clichê da cena-em-que-a-plateia-levanta-e-aplaude-de-pé-o-herói para salientar a relevância de seu protagonista.

Só o fato de Snowden ter deixado para trás família, namorada, amigos, carreira promissora, bom salário, a liberdade de andar por onde quisesse (inclusive sua terra natal), somado ao tamanho do inimigo que ele enfrentava – o que se materializa na sequência em que Corbin O’Brian (Rhys Ifans) surge imenso e ameaçador na tela, à la Chanceler Sutler em V de vingança –, já seria motivo suficiente para não duvidarmos da força daquele moço, franzino apenas por fora.

Espiando a aventura vivida por ele e pensando na realidade brasileira – sufocada por um “governo” que exige os nomes de alunos que ocupam escolas em protesto contra medidas autoritárias, ou que perde tempo tentando bloquear os emojis de vômito em notícias relacionadas ao seu “presidente” no Facebook, numa demonstração clara de que não consegue conviver com a democracia –, me pergunto como cada um de nós gostaria de enxergar a si mesmo daqui a alguns anos...

... como alguém feito Snowden – que se rebelou contra um sistema opressor e já tem seu lugar entre os heróis de nosso tempo – ou alguém feito o engenheiro interpretado por Nicolas Cage (Hank Forrester), que se resignou diante de uma injustiça e acabou exilado dentro do próprio país, numa sala cheia de bugigangas sem serventia (ele entre elas), esquecido numa espécie de almoxarifado da História?

Responder a essa pergunta não deveria ser tão difícil quanto solucionar o cubo mágico que o jovem programador carrega como amuleto.

domingo, 20 de novembro de 2016

WhatsApp

Caiu na minha mão o celular de Seu Fulano e eu não resisti: bisbilhotei mesmo o WhatsApp. Como não uso o aplicativo – ainda que dez entre nove amigos insistam que eu não sei o que estou perdendo –, bateu aquela vontade de saber o que faz um ser humano abrir mão da sessão de cinema pela qual pagou ingresso (caro) para ficar checando recados a cada meio segundo. No escuro.

A mensagem mais recente trazia a “““notícia””” (um símbolo para aspas infinitas, por favor) de que cientistas brasileiros tinham descoberto uma barata assassina. Dona de veneno tão mortal quanto o do escorpião, a monstra não só era capaz de matar um adulto com apenas uma picada, como já havia se espalhado por todo o país. Pobres de nós: à mercê da dengue, da zika, do temer e, agora, de um serial killer com anteninhas.

O texto não tinha fonte, nem identificava os tais cientistas brasileiros. Mas o que são reles indícios de fraude perto do horror causado por criatura tão repugnante?

Só uma fobia severa para explicar a paralisia cerebral diante de um fake desses. A moluscofobia, por exemplo. Dessa moléstia, sofria uma das amigas de Seu Fulano. Cinco ou seis links enviados por dia com A VERDADE sobre as propinas recebidas por certo ex-presidente da República. Um deles continha uma foto do político tomando sol numa praia da Bahia – prova cabal, segundo a tal amiga, de que a Odebrecht (com sede em Salvador) reformara o Oceano Atlântico inteiro só para ele.

Dê um desconto à moça: até o experiente Alexandre Garcia já caiu na rede. Recentemente, o jornalista global se deixou levar pelo papo de um guia turístico (“O palácio à minha esquerda pertence a Julio Iglesias, a chácara à direita foi comprada pela Beyoncé”) e espalhou por aí, sem verificar a informação, que o mesmo ex-presidente era proprietário de uma mansão em Punta del Este, no Uruguai; depois, ao ser alertado sobre a natureza boática do furo, corrigiu-se.

Essa moluscofobia ainda acaba com o Brasil. (Com o jornalismo, já acabou.)

Outra mensagem que arrepiou meus neurônios mostrava um vídeo com óvnis sobrevoando uns arranha-céus. O registro teria sido feito em Hong Kong. Um especialista em ufos – de nome impronunciável e do qual não havia uma linha no Google – alertava sobre o perigo iminente de uma invasão alienígena e recomendava que as pessoas estocassem água e comida. Curioso é que outros coleguinhas tinham compartilhado a mesma mensagem, com o mesmo vídeo e os mesmos arranha-céus. Só a legenda variava: Nova York, Londres, Tóquio, Cidade do México...

Corri até a despensa de Seu Fulano e fiquei bem preocupado com a quantidade de galões d’água e alimentos não perecíveis armazenados. Detalhe: ele morava sozinho.

Corri mais alguns contatos no aplicativo. Quase verti uma lágrima ao ver o cadáver de fada encontrado numa cidadezinha inglesa (afinal, I do believe in fairies). Rolou uma vontade de provar a melancia azul cultivada no Japão, ainda que eu tenha restrições ao sabor meio amargo do Photoshop. Bem que eu queria acreditar no informe segundo o qual a eleição de Trump não passava de uma infeliz campanha publicitária para divulgar um novo bronzeador, e o milionário não assumiria de fato a presidência dos Estados Unidos. Por pouco não levei fé, entretanto, na manchete que dizia que o Planalto cogitava privatizar o ar nas grandes cidades e permitir a cobrança de tarifas – medida plausível se vinda dos nossos atuais (des)governantes, ainda mais num momento de escassez de oxigênio em tantas mentes.

Celular de volta às mãos do dono, restou a certeza de que não era eu quem estava perdendo alguma coisa, como os amigos insistiam. Eram eles. A noção. Da realidade.

domingo, 13 de novembro de 2016

A diferença é a gaiola

Era uma vez um ratinho muito fofo que vivia sozinho numa gaiola enoooorme e praticamente vazia. Suas únicas companheiras eram duas garrafas de plástico sem graça. A primeira só tinha água; a segunda, água e heroína. Um belo dia, o ratinho bebeu a mistura. E bebeu de novo. E bebeu mais. E se viciou. Noutro dia (não tão belo), o ratinho morreu.

Era uma outra vez um ratinho igualmente fofo que vivia numa gaiola igualmente enoooorme, só que cercado de queijo, de bolas, túneis e escorregadores coloridos, de outros ratinhos (e ratinhas). Praticamente a Disneylândia. Ah, aquelas duas garrafas de plástico sem graça também estavam lá. Uma com água, a outra com água e heroína. Um belo dia, os ratinhos beberam a mistura. Mas não beberam de novo. Não beberam mais. Não se viciaram. E viveram felizes todos os belos dias de suas vidas.

Não, não são histórias da carochinha, queridos leitores. São apenas um resumo de dois experimentos realizados em laboratório já há algumas décadas. Mais detalhes sobre ambos podem ser encontrados no livro do jornalista britânico Johann Hari Chasing the scream: the first and last days of the war on drugs.

Outra história também interessante sobre vício vem da Guerra do Vietnã, durante a qual um em cada cinco soldados americanos consumia heroína. A revelação, feita pela imprensa na época, gerou o temor nos Estados Unidos de que, terminado o conflito, o país tivesse de conviver com milhares de drogados. Não foi o que aconteceu: nove em cada dez soldados “viciados” largaram a heroína assim que voltaram para casa.

Convenhamos: se você fosse enviado a uma selva distante, coagido a lutar por uma causa que não a sua, obrigado a matar; se você corresse o risco de perder a vida a qualquer momento, visse de perto a morte de companheiros, lidasse com corpos mutilados diariamente – injetar uns mililitros de heroína na veia para fugir desse cenário não seria uma ideia tão mirabolante assim. Uma ideia que dificilmente passaria por sua cabeça se você estivesse em seu lar doce lar, ao lado de sua família e de seus amigos – se você estivesse, em outras palavras, na sua Disneylândia.

Ainda em outras palavras: quando botamos o ser humano na primeira gaiola – estimulando seu isolamento em relação ao que está ao redor –, aumentamos muito as chances de ele buscar uma fuga ou pelo menos um alívio. Uns procuram essa anestesia contra a realidade nas redes sociais, outros na pornografia, no álcool ou no jogo. E há ainda aqueles que a procuram nas drogas ilícitas.

Posso estar enganado, mas, se o que aproxima as pessoas dos entorpecentes e as torna dependentes é menos a composição química deles e mais a relação delas com o mundo (o fato de se conectarem ou não com ele e com os seres que o habitam), não ajuda nem um pouco no combate às drogas a mais recente tentativa da União e de alguns estados, como o Rio de Janeiro, de desmantelar nosso ainda fragilíssimo Estado de bem-estar social – nossa ainda megaprecária Disneylândia.

Ou alguém acha que o que ajuda a construir aquela segunda gaiola é investir menos em saúde e educação e tornar ainda mais difícil a vida de quem precisa de escolas e hospitais públicos? é impor um ajuste fiscal que protege os ricos e castiga os pobres? é aumentar a jornada de trabalho e diminuir ainda mais o convívio entre pais e filhos? é fechar restaurantes populares e colocar em risco a única refeição diária de moradores de rua e desempregados? é suspender o aluguel social e despejar de suas moradias temporárias as vítimas de desastres naturais (como o da Região Serrana e o do Morro do Bumba, em Niterói)? é acabar com programas de complemento de renda e devolver à miséria milhares de pessoas? é confiscar trinta por cento do salário de servidores públicos (inclusive aposentados) e prejudicar ainda mais quem já não tem recebido seu pagamento em dia?

Nem vou citar o caso dos que estão do lado de lá da gaiola (os presidiários), aos quais já é imposta uma rotina de maus-tratos e sem perspectiva de reintegração à sociedade.

Moral da história: talvez tudo isso explique, em parte, a recente ascensão política de tantos pastores; enquanto deixamos nossos ratinhos cada vez mais abandonados à própria sorte, crivellas e malafaias fazem culto na cadeia e levam conforto espiritual às comunidades ignoradas pelo Estado – distribuem lá, entre os mais vulneráveis, suas garrafas plásticas cheias de uma água aparentemente pura.

Uma água certamente batizada.

domingo, 6 de novembro de 2016

Aos estudantes, com carinho

Jovens vão a uma igreja para ter suas canetas abençoadas antes do Enem (o Exame Nacional do Ensino Médio). O fato é registrado numa entrada ao vivo no jornal da hora do almoço, na emissora campeã de ibope no país. Uma ajudinha do céu nunca é de mais, diz o apresentador. Bênção é sempre importante, completa a repórter, que termina a matéria informando o horário das próximas missas do dia.

A mesma imprensa que critica um prefeito ou um deputado por misturar política e religião mistura, sem o menor pudor, jornalismo e religião. Cinismo deveria ser pecado.

Mais tarde, no jornal da noite, líder de audiência há séculos, é exibida uma reportagem com adolescentes acampados na fila do show de Justin Bieber, que só vai acontecer (pasmem) em março do ano que vem – daqui a CINCO MESES. A repórter surge dentro da barraca dos fãs e anuncia, toda pimpona, a razão de estarem ali, no meio da rua, em plena madrugada. Explica que meninas e meninos se revezam, cumprem uma escala. Eles têm que estudar, ela adverte, certamente receosa da possibilidade de a notícia dar a impressão de que são irresponsáveis ou desocupados. Diz ainda que, para fazer a hora passar mais rápido, a turma apela para jogos (a câmera foca uma adedanha), troca ideias sobre o novo crush (a paixonite do momento) e canta músicas do ídolo.

A mesma imprensa que não tem tempo para ouvir os jovens acampados nas escolas tem tempo para ouvir os jovens acampados na fila do show. Hashtag prioridades.

Agora imagine que louco seria se o mesmo jornal da hora do almoço – que tantas vezes nos fez sentir os piores da classe, diante daqueles japinhas fofos passando pano no chão e servindo merenda nas “exemplares” escolas nipônicas – entrasse ao vivo num desses colégios ocupados por “baderneiros” e flagrasse alunos varrendo o pátio, lavando os banheiros, fazendo pequenos consertos, cozinhando a própria refeição.

Que doido seria se o mesmo jornal da noite – que tantas vezes entrevistou aquele especialista em educação que é diretor-executivo de um banco (oi?) – entrevistasse os voluntários que oferecem atividades extracurriculares (de plantio de horta a oficinas de grafite e teatro) nas unidades ocupadas, entre os quais professores que doam sua garganta não só para debater temas como ditadura, racismo, feminismo e identidade de gênero, mas também para promover aulões para vestibulandos.

Que insano seria se o principal âncora do mesmo jornal da noite – que certa vez leu em tom dramalhático uma transcrição de áudio da ex-primeira-dama mandando que os vizinhos “enfiassem as panelas no...” – lesse com voz solene a nota na qual os alunos do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, se comprometiam a não interferir no Enem por prezarem o “direito de todos e todas as estudantes de realizarem o exame”.

Segunda época já! para quem não aprova os secundaristas que cabulam a inércia do resto da população e metem a caneta vermelha em retrocessos – como a reforma do ensino médio via medida provisória e a PEC 241 (agora 55, no Senado), que congela investimentos sociais por vinte anos. Segunda época já! para quem não aprova a aluna paranaense que tem dado aula de consciência política a parlamentares Brasil afora. Segunda época já! para quem não aprova o aluno-problema que, de repente, tira dez em solidariedade ao ser o primeiro a se oferecer para limpar os banheiros do colégio. Segunda época já! para quem não aprova os pais que, em razão das ocupações, se (re)aproximaram da escola e ajudaram a ressignificar a expressão “comunidade escolar”.

Não posso deixar o sinal bater sem lembrar a sequência final do já clássico Sociedade dos poetas mortos, na qual o mestre John Keating (Robin Williams) é homenageado por seus alunos. Só que aqui somos nós – professores, pais, cidadãos lúcidos de todo o país – que subimos nas carteiras em respeito e reverência a vocês, estudantes.

Oh captains, my captains.

domingo, 30 de outubro de 2016

Monstros S. A.

Já encheu de teias de aranha aquele fla-flu que ressurge feito Jason todo Halloween e – em vez de doces ou travessuras – exige que a gente escolha o Saci ou o Drácula, a Iara ou a Malévola, o Boitatá ou o Freddy. Ô bate-boca mais trouxa. Prefiro mil vezes a turma do arrepio inteirinha no caldeirão da Cuca dançando “Thriller”. (Leva uma mordida de zumbi quem errar a coreografia.)

A antropofagia me encanta: mas essa que devora a exclusão e fortalece a inclusão, não aquela que devora cérebros e dementa o senso crítico. Não aquela que devora as bruxas gringas e expele as cópias mais paraguaias de Bellatrix Lestrange ou Elvira a Rainha das Trevas – como certa jurista que vê, na instalação de uma base militar russa na Venezuela, uma iminente invasão comunista no Brasil.

Nunca antes na história fez tanto sentido a máxima que diz mais ou menos assim: quanto mais o país reza (e paga dízimo), mais assombração aparece.

De repente, uma horda de múmias invadiu ruas e redes. É incrível como tais criaturas se deixam enrolar dos pés à cabeça por (1) manchetes sensacionalistas (sempre à procura de um sarcófago quentinho, as preguiçosas não leem as respectivas matérias, que em geral mostram uma realidade bem mais complexa do que os títulos fazem parecer), (2) notícias falsas (por causa da retirada de massa cinzenta durante a mumificação, as ingênuas jamais suspeitam delas, nem quando a fonte é anônima e nenhum jornal de grande circulação ou megaportal da internet as publicou) e (3) memes toscos (pela mesma razão do item 2, as bobas acreditam que uma frase entre aspas, sobreposta à fotografia de uma pessoa, é prova cabal de que a primeira saiu da boca da segunda).

Piores ainda são os frankensteins: múmias que ficam muito tempo longe de seus túmulos e passam a ser compostas não só de gaze, mas também de remendos de manchetes sensacionalistas, pedaços de notícias falsas, fragmentos de memes toscos e demais restos de desinformação. Maçarocas ambulantes, os franks têm como principal característica a incoerência. São capazes de levantar a faixa “Somos milhões de cunhas” e ao mesmo tempo gritar “Fora, corruptos”; são capazes de ocupar avenidas para reivindicar mais saúde e educação e, meses depois, apoiar uma lei que congela investimentos nessas áreas por vinte anos; são capazes até de compartilhar oração de São Francisco e – com diferença de segundos – dar like na página do Bolsonaro.

Outra figura assustadora que tem se reproduzido feito gremlin após a meia-noite são os lobisomens. Seres acima de qualquer suspeita e dóceis quando em sua forma humana (sua vó pode ser um deles), transformam-se em animais ferozes quando veem suas convicções – normalmente baseadas no senso comum – questionadas. Basta alguém evocar os direitos humanos de um presidiário vítima de tortura, ou de um assaltante prestes a ser linchado, para a besta uivar “Bandido bom é bandido morto”, “Tá com pena? Leva pra casa!”. Basta alguém defender o debate sobre gênero nas escolas para o bicharoco rugir “Você é viado”, “Quer ensinar as crianças a serem gays”. Basta alguém lembrar a importância de um programa de transferência de renda no combate à pobreza para o lobão grunhir “Não vou pagar imposto pra sustentar vagabundo”.

Um trem-fantasma como esse, claro, não funcionaria sem um bom maquinista. E é aí que surge o vampiro. Intelectualmente superior, ele tira proveito de sua imortalidade para se eternizar no poder. Entra século, sai século, o dentuço continua se alimentando do sangue de suas vítimas, aparentemente enfeitiçadas pelos caninos sorridentes que renascem a cada quatro anos. Convém desfazer dois mitos sobre esse ente do mal: não tem medo de crucifixos – às vezes até os usa para se aproximar de alguns pescoços – nem de luz – prova disso é que muitos exemplares da espécie construíram seus castelos no ensolarado Planalto Central, e lá permanecem desde a inauguração de Brasília.

Eu cá com meus cachimbos e abóboras: quando essa hora do pesadelo vai passar? quando essa aparentemente eterna sexta-feira 13 vai virar sábado? quando essa festa onde só os fantasmas do retrocesso se divertem vai acabar? quando vamos enfim deixar de bancar os curupiras às avessas, que têm os pés virados para frente mas teimam em andar para trás?

“No dia em que as mulas sem cabeça não procriarem mais” – subitamente me sussurra uma voz do aquém do além, adonde que veve os mortos.

domingo, 23 de outubro de 2016

Antes do pôr do sol

Deu vontade de fugir para Lisboa. Voltar à estação Santa Apolônia. Entrar naquele trem rumo ao Porto. Encontrar novamente Amel e Francisco.

Explico: quiseram os deuses do acaso que uma jovem francesa de nome árabe e um rapaz português de nome... português mesmo – que jamais tinham se visto – sentassem nas duas poltronas à minha frente e não se contentassem com um celular ou uma soneca; quiseram ainda aqueles deuses, mancomunados com os do cinema, que eu assistisse a um Linklater em tempo real, ao vivo e na primeiríssima fila.

Para quem não entendeu a referência, estou falando do diretor e roteirista Richard Linklater, famoso pela trilogia do Antesdo amanhecer, do pôr do sol e da meia-noite –, cujos filmes acompanham três dias de paquera e DR, não necessariamente nessa ordem, na vida de Celine (Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke), que se conhecem também na Europa, também numa viagem sobre trilhos.

O remake com Amel e Francisco não tinha legendas nem tradução simultânea. Então, precisei me virar com meu inglês miojo mesmo, um nível abaixo do macarrônico. Aliás, sorte minha os dois conversarem a maior parte do tempo no idioma dos Beatles; o gajo até arriscava umas frases em francês de vez em quando, mas logo desistia – reconhecia não ter talento para Alain Delon.

Mas talento sobrava ali para horas e horas de papo. Pudera: Amel estudava Cinema, tinha morado uns meses na África e, se minha memória não está hiperidealizando, trazia um Sartre no colo; já Francisco havia se graduado em Física aos dezoito anos, era professor na universidade da capital e, se não estou ficcionalizando demais, mantinha um pôster do Einstein sobre a cama.

Lembro bem dele explicando a ela a formação dos buracos negros num pedacinho de papel. Dela citando o filmaço La vie d’Adèle, depois de ele ter comentado sobre um amigo que escondia ser gay. Dele revelando a alegria que sentia por estar perto de seus alunos. Dela contando que preferia a solidão de quem rabiscava o primeiro roteiro. Dele dizendo que precisava ligar para a mãe e avisar que já estava no trem, antes que bombeiros entrassem pelas janelas para resgatá-lo dos escombros. Dela voltando à formação dos buracos negros ao lamentar a ascensão – mesmo após um século de nazismos e fascismos – de alguém como Donald Trump.

Lembro bem dele (enquanto a ouvia) empurrando os óculos que insistiam em escorregar pelo nariz levemente suado. Lembro bem dela (enquanto o ouvia) acomodando os cabelos sobre o ombro direito. Só não lembro se seus olhares se cruzavam tanto quanto um leitor de Camilo gostaria – mas é certo que marcaram um encontro em algum sobrado esquecido que apenas eles enxergavam.

Ainda hoje interrompo brevemente a respiração para imaginar o que teria acontecido aos dois depois que os perdi de vista no desembarque. Teriam se despedido na estação e nunca mais se falado? Teriam trocado e-mails? Teriam trocado um beijo antes de os créditos subirem? Teriam subido as ladeiras do Porto? Teriam perdido a chance de estrelar um sequel em Paris? Teriam dividido uma garrafa de vinho sob as luzes da Ribeira? Teriam dividido um café da manhã com pastéis de nata?

O que teria acontecido depois do pôr do sol?

Em tempos de diálogo cada vez mais raro, de muito falatório e quase nenhuma audição; de amizades e parentescos desfeitos por causa de uma bandeira política, uma oração a um deus que não o seu, uma preferência estética; de cordões umbilicais conectados apenas aos próprios smart-egos, foi um alívio topar com aqueles dois seres de origens tão diferentes – há um segundo completamente estranhos entre si – que de repente se permitiram uma conversa numa língua que não a deles, sem julgamentos ou cobranças, ainda que talvez esperassem um like (ninguém é só de ferro).

Foi mais que um alívio até: foi uma luz no fim do estúdio.

Por pelo menos umas poucas linhas, uma reles crônica, deixem este cinéfilo acreditar que, apesar do esforço de inúmeros vilões, a humanidade caminha inescapavelmente para um happy end. E que o significado daquele nome árabe – esperança – é um easter egg óbvio do futuro menos surdo que nos aguarda.

domingo, 16 de outubro de 2016

Eta, mundo bom

Quem conta a história é o professor Clóvis de Barros Filho. Tinha levado a família para almoçar fora. Comemorava a aprovação num concurso. Terminada a refeição, ele comentou com o garçom que achara a conta alta. Ouviu em troca: é mais do que eu tiro no mês. Provocado pela revelação, lançou então uma pergunta ao jovem: te parece justo que alguém gaste no almoço mais do que você tira no mês?

O funcionário respondeu que sim. Afinal, quem tinha estudado muito e se preparado tanto merecia ganhar mais do que alguém como ele, que não tinha podido frequentar uma escola. Clóvis não se satisfez: e te parece justo que uns possam frequentar uma escola e outros não? O rapaz devolveu: sim, eu vim do Nordeste para trabalhar, tinha que ajudar meus pais. O mestre insistiu: e te parece justo que alguns tenham que se deslocar de onde nasceram para conseguir trabalho?

Sim. E sim. E mais um sim. E assim foram trezentos te-parece-justos e trezentos sins. Até o sujeito levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus o fato de o patrão dividir com ele e os outros empregados a carne que sobrava (quando sobrava) para que pudessem fazer um churrasquinho ao final do expediente.

Impressiona a resignação.

Como impressiona o sumiço das multidões que, há apenas alguns meses, saíam às ruas com a camisa amarela exigindo mais saúde e educação. Como impressiona o silêncio dos vizinhos que, há apenas alguns meses, iam às janelas bater panelas exigindo o fim da corrupção. Como impressiona – talvez o que mais impressiona – a aparente indiferença (aprovação?) das pessoas em relação ao presente e ao futuro do país.

A aparente cadeia de sins em que a maioria se acorrenta – como aquele garçom – sem oferecer resistência.

Há quem diga que eu ando pessimista demais. Que o momento é de esperança, já que a sociedade, ao afastar “aquele partido” de centenas de prefeituras e não reeleger vereador o filho do “comandante máximo da organização criminosa”, deu mostras de que não tolera mais corrupção e mau uso do dinheiro público.

Será? Não vejo essa intolerância toda (nem consigo ser otimista) quando constato que os dois partidos recordistas de barrados pela Lei da Ficha Limpa saíram ainda mais fortes das urnas. O PMDB – sócio com cadeira cativa na roubalheira nacional desde que meu tataravô batia ponto na porta da Colombo – continua a ser a legenda com mais prefeitos; já o PSDB – que pretende revolucionar a educação brasileira fechando escolas e superfaturando merenda – foi a que mais cresceu.

Há quem diga também que, agora que o impeachment passou e o período eleitoral está terminando, o presidente temerário poderá fazer as reformas de que o país tanto precisa, a começar pela lei que fixa um teto para os gastos públicos. Pasmem: tem gente toda alegrinha porque testemunhou deputados trabalhando em plena segunda-feira, até altas horas, a fim de aprovar a tal PEC 241. Estaria aí a prova de que, pelo bem do Brasil, Congresso e Planalto voltaram a se entender.

Posso lhes contar uma coisa, fofildos? Voltaram a se entender (leia-se: negociar cargos e vantagens) para congelar investimentos em saúde e educação por vinte anos, causando um baita prejuízo aos que mais carecem dos serviços públicos. Querem repassar a conta da crise apenas para a parcela mais vulnerável da população. Enquanto isso, nossos trumps e suas megafortunas – que proporcionalmente sempre foram menos taxados por estas bandas – se safam mais uma vez, protegidos pelos legisladores que eles mesmos ajudaram a eleger com suas doações de campanha.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, amiguitos chegam a corroborar o neopentecostalismo de coalização que paira sobre nossa titubeante democracia ao rogarem a Deus que o pai do Michelzinho conclua, até o fim de seu mandato, a reforma da Previdência e a trabalhista. Dizem que só com a modernização de nossas leis – antigas e tão fascistas quanto um Mussolini, segundo eles – os empresários retomarão a confiança, a economia voltará a crescer e os pais de família recuperarão seus empregos.

Cá entre nós, estou tentando entender não só de onde vem tanta compaixão pelos senhores de engenho, essas vítimas da ditadura do proletariado, como também de que maneira cortar direitos – no lugar de investir em infraestrutura, qualificar a mão de obra e estimular o consumo – vai transformar recessão em retomada.

No caso das reformas, de novo são os mais pobres e a classe média – só eles, amores – os escolhidos para o abate. O que se planeja é um cenário que rivaliza com a mais cruel distopia: homens e mulheres trabalhando até a última idade, CLT “flexibilizada” (com a terceirização das atividades-fim e a prevalência do negociado sobre o legislado) e saúde ainda mais deficiente. Tudo isso justamente quando os estudos demográficos apontam para o envelhecimento dos brasileiros, contexto em que a demanda por médicos, remédios e hospitais só tende a aumentar. É a antecipação do Apocalipse (para usar um termo bíblico, tão caro a uma parcela cada vez maior do eleitorado).

Sério: o olhar encantado diante do engajamento decorativo da primeira-dama ou a expressão apática frente aos jornais pendurados nas bancas alimenta minhas melhores teorias da conspiração; entre elas, a de que uma novela das seis cujo protagonista (Candinho) tinha como lema “Tudo que acontece de ruim na vida da gente é pra meiorá” – e cuja exibição se deu nos meses imediatamente anteriores a essas PECs e picas no povo – não pode ter sido mera coincidência.

É nessas horas que me lembro do romance A casa das sete torres, de Nathaniel Hawthorne. Lá pelas tantas, um personagem afirma que “o mundo deve todo o seu progresso a homens infelizes, enquanto os felizes se confinam em moldes antigos”. A frase completa à perfeição o sentido de um meme que tem circulado nas redes sociais, segundo o qual PEC é a sigla para “Pobres, Enganados e Contentes”.

Não é difícil fazer o link entre esses textos e o conformismo daquele garçom – convencido de que só ele é responsável pela própria condição e de que o perfume da carne assando é sinal de que tudo cheira bem ao seu redor.

domingo, 9 de outubro de 2016

Né brinquedo não

Faltou leite materno na dieta dos nossos ancestrais.

Só isso para explicar tanto marmanjo – e marmanja – crente, crente de que saia justa e decote são convites para o estupro. Só isso para explicar tanta milícia maior de idade incomodadinha com casais gays que trocam bitocas em público. Só isso para explicar tanto tio e tanta vó saudosos de um tempo em que racismo existia apenas na fazenda do Leôncio, e golpe era só o nome feio que se dava à Revolução.

Papais e mamães: o Dia das Crianças está quase aí e é preciso tomar mil cuidados para que os bebezuscos de hoje não se tornem os bolsonarinhos de amanhã.

É por isso que peço aos senhores e às senhoras, en-ca-re-ci-da-men-te, que pensem muito bem nos presentes que vão dar a seus filhotes na próxima quarta-feira. Melhor ainda: pensem nos presentes que vocês têm dado a eles diariamente. Porque a raça humana não merece conviver, daqui a duas ou três décadas, com outra geração que faz de um Trump o seu John Lennon.

Uma primeira dica? Nada de cair na tentação de botar um smartphone nas mãos de seu recém-nascido e correr para o Netflix. O pimpolho mal chegou ao mundo; ele precisa é de carinho, cheiro, cócegas – conexões que nem o mais poderoso wi-fi vai proporcionar. Contato físico, já diziam até os manuais de chocadeira, ajuda a estabelecer e fortalecer vínculos, além de contribuir para o desenvolvimento dos neurônios.

Esses que andam quase tão empoeirados quanto aqueles livros na estante.

Já passou da hora de apresentar a seu rebento a Dona Benta, o Cebolinha, a Miss Marple, o Harry, a Mafalda, o Frodo, a Alice, o Pan. Lembro até hoje de mâmi me apresentando o Zezé – menino que conversava com um pé de laranja lima. Desde então, sei que é possível escutar não só as pessoas, mas também as árvores, os ventos, as chuvas, os travesseiros, as janelas, os abraços, as saudades, os diferentes e as diferenças.

Falando em diferentes e diferenças, que tal aproveitar o feriado e levar o pequeno príncipe e a cinderelinha até aquela praça, aquela praia frequentada por amiguitos que não moram no mesmo condomínio encantado? que não foram à Disney dezesseis vezes? que nunca ouviram falar em aula de jazz e cheesecake de morango? Sair da bolha oxigena os conceitos e asfixia os preconceitos.

Outro ótimo passeio é a boa e velha loja de brinquedos. Mas nem pensar em levantar um muro entre o corredor das bolas e o das bonecas, entre a seção dos carrinhos e a das cozinhas. Ninguém aqui vai querer que a Nanda deixe de virar a nova Marta ou o novo Senna – e o Fabinho, um pai-pra-toda-obra ou o novo Masterchef Brasil – só porque alguém etiquetou os passatempos infantis.

Um dos mais adequados a crianças de zero e cem anos – diz estudo – é a dança das cadeiras. Não aquela em que eu continuava o balé mesmo após a música parar. Mas aquela em que o guri se coloca no lugar da colega excluída pela turma porque é gordinha; do vô que entra no busão e não encontra assento vazio; do garoto que mora na rua e não tem nem uma cama para dormir; da professora que tenta falar, perde a voz e ainda assim não é ouvida pelos alunos. O Ministério da Saúde adverte: olhar com os olhos do outro reduz a incidência de cataratas.

E amamentar as crias com uma dose diária de empatia aumenta as chances de um futuro habitado por adultos de verdade – que não só cultivem o respeito pelo outro (e pela outra) ou ignorem com quem a vizinhança troca saliva, mas, principalmente, sejam sensíveis ao que acontece além do próprio cercadinho.

domingo, 2 de outubro de 2016

Massacres

O sonho de Reginaldo era morrer na sua Maranguape. Pelo menos era o que dizia. Talvez se a fome não fosse um de seus parentes mais desavexados, daqueles que aparecem sempre na hora da refeição, o cabra dissesse que o sonho dele era viver na sua Maranguape. Mas para quem tinha quase nada – morrer já estava bom.

Às vezes, quando o sol ardia de esfumaçar sonho em nuvem, Luiz aventava uma fuga para o sul. Mas o vento logo se tornava brisa. Era só ele se lembrar do conterrâneo mais famoso, o professor Raimundo; mesmo com gravata, diploma e televisão, acabava a aula desfazendo do próprio ordenado: e o salário, ó.

Que chance então tinha um João que mal chegava à segunda letra do sobrenome?

Um dia, porém, a fome apertou demais o nó que ele cultivava na garganta. Ah, se as batatas crescessem como aquele nó! Chico pediu licença ao professor, desligou a tevê, botou a família numa trouxa e rumou na esperança. Avisou ao vizinho que fizesse o mesmo, antes que cercassem o sertão com um muro, e ele não pudesse mais sair de lá.

Não falta doutor por aí achando que uma parede vai impedir a cozinha de achar a sala. Impede nada. Continua todo mundo sob o mesmo teto.

Antônio e os seus não ficaram mais que uma semana enfeando a ponte – o pedaço de concreto mais bem protegido da capital, depois do palácio do governador. Uma fulana indicada por um compadre os apresentou à sua casa nova: um barraco no meio de um matagal onde, anos atrás, funcionara uma fábrica de piscinas de fibra.

Aluguel adiantado.

Adiantando a história também: era madrugada ainda quando a polícia surgiu para desocupar o terreno da antiga fábrica, em cumprimento a um mandado de reintegração de posse. Não sobrou casa em pé, mas sobrou para o Zé, preso por tentativa de homicídio. Com os quatro dentes que lhe restavam, por uma lasca não arrancou o nariz inteiro do soldado que conduzira, coercitivamente, sua mulher até o chão.

A manchete afirmando que um sem-teto (desarmado) tinha praticamente esquartejado um policial (do batalhão de choque) foi meu primeiro contato com o Beto. Sorte minha não ter parado nela. Só assim pude conhecer um pouco a odisseia que levou o homem ao seu dia de chacrete do Datena. E, infelizmente, a um lugar chamado Carandiru.

Dado o título desta semifábula, não é difícil imaginar o resto. O sujeito que tanto sonhou virar pó na cidade natal virou estatística, um dos fins mais indignos para qualquer ser humano. Geraldo não havia sido julgado e, ainda assim, foi condenado a uma pena não prevista na lei. Acabou como um dos cento e onze detentos mortos em meia hora, a maioria com tiros na cabeça e no pescoço, na chacina que, segundo a mais recente decisão da justiça (sic), não existiu.

E, como a ironia não tem limites, quem esmiuçou o noticiário na última semana descobriu que aquele mesmo terreno, o da antiga fábrica de piscinas de fibra, voltou a ser invadido: agora por um senador de cabelos e passado grisalhos, que o incorporou ilegalmente à área de seu shopping center, a fim de ampliar o estacionamento.

Só que, desta vez, não há previsão de uma nova reintegração de posse, nem policiais de prontidão para reestabelecer a ordem. Há apenas uma nota no rodapé do jornal.

P.S.: Hoje é dia de escolher prefeitos e vereadores país afora. Procurem saber quem de fato representa os reginaldos, luízes, joões, chicos, antônios, zés, betos, geraldos; quem de fato representa as marias, claras, anas, gabrielas, vitórias, saras, heloísas, rosas. E, não menos importante, quem representa somente os próprios interesses. Um bom voto a todos vocês.

domingo, 25 de setembro de 2016

A era de

Parafraseando a canção de Taiguara que abre e fecha o filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius traz no corpo as marcas de seu tempo.

Hoje a mulher diz não.

Clara (Sonia Braga em modo musa) se recusa a vender para a construtora Bonfim o último apartamento do edifício Aquarius – onde mora há décadas, onde seus filhos cresceram e onde discos e livros e lembranças contrastam com a assepsia das cidades erguidas cada vez menos por pessoas, cada vez mais por criaturas que se formam em business schools e trocam sonhos por metas, a exemplo do jovem Diego (Humberto Carrão, excelente como o tubarão em pele de golfinho).

Certeza de que doeu ali, entre as pernas dele e do avô, escutar a dona do imóvel repetir “Eu não vou vender, seu Geraldo. O senhor já sabe disso”. Duas frases que ela profere sem elevar a voz; com a suavidade quase blasé de quem está “puta mas não estressada”, como revela mais tarde, numa conversa dura com as crias, especialmente com Ana Paula (Maeve Jinkings, amarga sem ser azeda).

Se dependesse da filha, Clara já tinha aceitado a oferta “generosa” da Bonfim e se mudado para um desses condomínios de segurança máxima e alma mínima, os estrangula-céus de nossas metrópoles. Mas quem perdeu o marido e até uma parte do corpo (o seio direito) não aceita novas perdas tão facilmente; ela aprendeu a valorizar cada conquista. Não por acaso conserva os cabelos longos – símbolo óbvio, mas não menos poderoso, de sua vitória sobre o câncer.

Símbolos, aliás, não faltam no álbum de metáforas montado pelo diretor e roteirista pernambucano. Um dos mais emblemáticos – porque rima à perfeição com o apê de Clara, que também guarda mais que objetos pessoais e, por isso, transcende o tal “valor de mercado” – é a cômoda que guarda mais que as camisolas de tia Lúcia (Thaia Perez). Aqui é particularmente interessante o efeito que causa no público a descoberta do que representa aquele simples móvel para uma senhora de setenta anos.

Kleber gosta de provocar. E faz isso em diversos momentos, como na sequência angustiante em que mulheres e homens surgem na praia gargalhando, numa espécie de ginástica do riso, e de repente o treinador que os orienta – contrariando a expectativa gerada pelo preconceito da plateia – convida a participar do exercício os “estranhos” que se aproximam.

Passagens como essa ajudam a retratar o país que a lente crítica do diretor vê. E se espalham nas mais de duas horas de projeção. É a parede do bistrô que ostenta fotos em preto e branco de homens brancos-ricos-velhos, numa alusão aos donos do poder local – e, por que não, nacional, se lembrarmos o ministério machocrata do atual “governo”. É o rapaz de “boa aparência” que vende drogas na orla. É a louça na pia em dia sem Ladjane (Zoraide Coleto, brilhante nas menores falas), numa referência aos direitos recentemente conquistados pelas domésticas. É a manchete do jornal (“Eu gosto de mp3”) que resume a manipulação midiática.

Nenhuma delas se compara, no entanto, à que denuncia uma colônia de insetos infestando certo lugar e comprometendo sua estrutura. A cena põe para formigar a mente do espectador sessão afora. É inevitável relacionar o ninho à oligarquia de parasitas que, ao envenenar o frágil alicerce da democracia brasileira, mostrou ser possível expulsar uma personagem incômoda – de um apartamento ou de um palácio presidencial – sem usar a força bruta. Afinal, como observou Zuenir Ventura em artigo sobre o filme, “há meios mais eficientes que os tratores ou os tanques”.

Por apresentar um forte teor político, explicitar sua visão ideológica e se entregar a um desfecho catártico, há quem acuse Aquarius de dispensar a sutileza e se render a maniqueísmos. É evidente que Kleber recorre a um cinema mais tradicional, no qual heroína e vilão são rapidamente identificados. Mas ele não cria, a partir desses elementos, uma realidade menos verossímil. Longe disso. Na verdade, ultimamente tem sido até fácil encontrar claras dando aulas em nossas universidades e diegos dando entrevistas em programas de economia da Globonews.

O que o cineasta faz é apenas fotografar a velha flor que fura o asfalto – que resiste à fossa e à fome causadas pelo tumor da ganância. Esse que ainda vai acabar nos levando ao fim do mundo.

domingo, 18 de setembro de 2016

Guerra contra a estrela

Muitas coisas chamaram a atenção na coletiva de imprensa de Darth Dallagnol e seus stormtroopers. Uma delas foi a apresentação no PowerPoint, que lembrou aquelas palestras motivacionais inspiradas nas lições dadas a Luke Skywalker pelo mestre Yoda. Difícil acreditar que alguém aumente os níveis de midichlorians ou maneje um sabre de luz com mais tesão ao ouvir “Comandante máximo de sua vida, você é”, “De suas convicções, seu sucesso depende” e por aí vai.

Também causou perplexidade, pelo menos aos simpatizantes da Resistência, a acusação de que o ex-presidente Lula seria o Supremo Líder Snoke, chefe maior da organização criminosa conhecida como Primeira Ordem. A “prova” oferecida pelo Ministério Público Galático para ratificar a denúncia foi a reforma (em tese, feita com dinheiro de propina) de uma cabana triplex na distante lua de Endor, famosa por ser o lar dos ewoks. Detalhe: não há qualquer documento que ateste a ligação do acusado com a referida propriedade.

Ademais, como levar a sério uma narrativa segundo a qual o cabeça de um grupo tão poderoso, mesmo depois de anos saqueando o universo, só tenha auferido uma quitinete num planetinha mequetrefe? Ou ele é um cabeça-oca – ou as viúvas do Império são.

Deixando por ora as metáforas deste humilde padawan das letras, o que mais me incomodou no episódio, porém, foi uma intrigante lacuna: se, de um lado, rotulou-se Lula como o “comandante máximo” da corrupção que reuniu o “consórcio” PT-PMDB-PP – com a justificativa de que, como número-um do governo por oito anos e nome mais importante do Partido dos Trabalhadores, “ele não tinha como não saber” –, de outro, não se fez qualquer menção aos presidentes das duas legendas restantes.

Ué, por onde andava o mundialmente afamado Mr. Fora Temer, presidente do PMDB há mais de uma década? Estaria ele tão dedicado assim aos concursos de miss que não percebeu o quanto seu partido desfilava na passarela da roubalheira? E o atual governador do Rio de Janeiro, Francisco “Calamidade Pública” Dornelles, que entre 2007 e 2013 foi o dirigente-mor do PP e ainda hoje é seu presidente de honra? Em que sarcófago hibernava que não viu seus correligionários evacuando fora da pirâmide?

Para o bem da Lava-Jato e, consequentemente, do país, ou o raciocínio que incrimina Lula – o célebre “domínio do fato” – vale para todos ou não vale para ninguém. Caso contrário, a operação corre o risco de acabar na UTI da História como mais uma vítima da síndrome da seletividade, e de servir tão somente como fonte infinita de memes.

O retorno do jedi: eu adoraria ter convicção de que a Força(-tarefa) está conosco, de que seu despertar está enfim passando o Brasil a limpo; mas a parcialidade das investigações, a fragilidade dos argumentos e a espetacularização das denúncias me parecem provas tão cabais de que testemunhamos apenas uma vingança dos sith contra seus inimigos, que prefiro declinar da ideia de que tal saga “contra a corrupção” represente, de verdade, uma nova esperança para a República.

domingo, 11 de setembro de 2016

Fuso luso

Tenho encontrado o sono às oito da noite e perdido o gajo às seis da manhã. Efeito ainda das férias em Portugal, quatro horas à frente do Brasil.

É a primeira vez que um fuso me pega desse jeito. E olha que já enfrentei piores. Será a idade? A aproximação dos temidos entas? Ou uma sequela deixada pela ingestão simultânea de pastéis de Belém e ovos moles d’Aveiro? Até considerei essas hipóteses, mas logo as descartei ao desembarcar no Galeão e presenciar uma senhora comemorando o impeachment da Dilma com um poeirento “fora, comunista”.

De repente, a diferença entre o cá e o lá do Atlântico não eram mais aquelas quatro horas. Eram quatro... décadas.

Que uma nação que venera Fernando Pessoa – a ponto de estampá-lo em latas de sardinha – é mais adiantada que a Via Láctea e arredores, todo mundo sabe. Ainda assim, jamais imaginei que fôssemos capazes de nos distanciar tanto, e em tão poucos meses, dos nossos irmãos lusos. (“Tanto mar” a nos separar, só na canção homônima do Chico, que saudava a Revolução dos Cravos.)

Mal pus os pés em solo brasileiro e dei de cara com uma passeata cujo slogan era “Diretas já”. Havia ainda cartazes com os dizeres “contra o golpe” e “abaixo a ditadura”. Bateu um medinho de ligar a tevê e ver o Bonner explicando que as pessoas tinham tomado praças e avenidas país afora para comemorar a queda do preço do tomate – daí tantos vestidos de vermelho.

Uma das coisas mais divertidas que fiz na Pessoalândia foi o passeio de elétrico pelas ruas de Lisboa – uma volta ao passado que, no entanto, não lembra nem de longe a viagem em nosso vêeletê do tempo. Custou-me acreditar que o mais recente filme estrelado por Sonia Braga (Aquarius) quase estreou aqui com censura dezoito anos por causa de duas ou três cenas de saliência. Baixou maresia anos setenta total.

Mas boquiaberto mesmo eu fiquei ao ler nos jornais – li ou os meus olhos ainda estariam lacrimejando vinho do Porto? – que velhas raposas de gravata pretendem obrigar o povão a trabalhar mais horas por dia, por mais anos, com menos direitos. As criaturas defendem um mantra segundo o qual “o negociado deve valer sobre o legislado”. Oi? Eu ouvi falar em flexibilização da Lei Áurea?

Dias e noites subindo e descendo a pé as ladeiras do Chiado. Dias e noites subindo e descendo a pé as ladeiras da Ribeira. Uma conexão perdida em Madri. Uma voltinha inteira da Terra ao redor de si mesma, até eu conseguir embarcar no voo de dez horas que enfim me devolveria amarrotado – mas são e salvo – à vila de São Sebastião.

Grande coisa, ó pá. Nem um fim de semana completo na classe econômica se compara ao jet lag provocado pelas turbulências que insistem em tirar a nossa nau da rota da democracia.

domingo, 31 de julho de 2016

Distopia

Nem os carros voadores, nem a Rosie (embora uma robô capaz de dobrar lençóis de elástico não fosse de se jogar fora). O que mais me encantava em Orbit City, a cidade onde viviam os Jetsons, era o fato de George trabalhar, graças aos avanços tecnológicos, apenas três horas por dia, três dias por semana; alguns sites registram um expediente ainda menor: uma hora por dia, dois dias por semana.

Utopia.

Com um exterminador do futuro prestes a tomar definitivamente a presidência da República, não dá mais para acreditar num destino como o do simpático personagem da Hanna-Barbera. Viajamos a 88 milhas por horas rumo ao amanhã de outro George, o Miller – criador daquele deserto pós-apocalíptico em que a única esperança era um sujeito tão louco, que só podia se chamar Mad Max.

Já vejo as ações da Umbrella disparando na bolsa depois de aprovada a jornada de trabalho de oitenta horas semanais e trinta minutos para o almoço. Vejo também os trabalhadores braçais pobres – cuja expectativa de vida é inferior à idade mínima a ser imposta para a aposentadoria – saindo das covas para reivindicar seus direitos. Vai ser tanto zumbi tocando o terror, que periga o Estado Islâmico explodir de inveja.

Sorte nossa que a Justiça e a Polícia Federal hão de tomar as providências necessárias para evitar esse Armagedom. Como guardiãs da galáxia, da moral e dos bons tucanos, vão pôr em prática a Operação Minority Report, em que mandados de prisão preventiva expedir-se-ão na calada da noite e os mortos-vivos conduzir-se-ão coercitivamente a presídios de segurança máxima, onde submeter-se-ão ao tratamento Ludovico.

A terapia inclui ouvir mil discursos de célebre orador especializado em mesóclises. Cheguei a escutar meio minuto de um deles e posso garantir: é cyberpunk.

Caso algum defunto escape dos robocops, a lei Bandido Bom é Bandido Morto – aprovada há meio século na Câmara dos Siths – autoriza os cidadãos de bem a usarem seus fuzis de blaster contra ele. Se o cadáver em questão der sinais de feminismo, gayzismo ou quaisquer outros comunismos, é ainda permitido ao atirador o emprego das minipistolas conhecidas como pastores.

Nenhum neuralizador executa uma lavagem cerebral melhor que elas.

Outra lei prestes a completar bodas de ouro neste nada admirável mundo novo é a Fahrenheit – apelidada de Escola sem Livro. É particularmente curioso o artigo 451, que obriga as instituições de ensino a eliminarem suas bibliotecas utilizando imensas fogueiras. Especialistas do Greenwar concluíram que a emissão de gás carbônico é cem vezes menos danosa ao meio ambiente que a de ácaros, fungos e ideias.

Engana-se, porém, quem pensa que o pior já passou. Não sabe o que é ter um vizinho que todo dia abre as janelas de sua caverna e uiva um animado iabadabadu.

P.S.: Como até a Terra um dia parou, vou me dar o direito de entrar em contato imediato com as férias. Volto assim que for devolvido da abdução.

domingo, 24 de julho de 2016

Quem você vai chamar?

Agora não é mais uma mulher que berra ao topar com um fantasma. É um homem que berra – e se borra – ao fazer contato com uma criatura do outro mundo.

Traduzido no país do ministério só-de-machos como Caça-fantasmas (embora o original contasse com o artigo masculino), o novo Ghostbusters não inverte os sinais apenas em sua sequência inicial; ao apostar num quarteto feminino para envergar as célebres mochilas de prótons, vai ao além, digo, vai além – e se estabelece como uma obra sensível a um tema relevante de sua época: a igualdade de gênero.

Reconheço ter ficado ligeiramente decepcionado com o reboot, quando soube que Bill Murray, Dan Aykroyd e Ernie Hudson não reprisariam seus papéis como Peter Venkman, Raymond Stantz e Winston Zeddmore, respectivamente. No entanto, após vê-lo, entendi a decisão: a presença deles interpretando os antigos personagens acabaria forçando os roteiristas a tratá-los como mentores ou inspiração das garotas.

E tudo que AS caça-fantasmas não quer é cair no clichê das mocinhas que, na hora do pesadelo, precisam de uns marmanjos para ajudá-las.

Uma das qualidades do longa dirigido por Paul Feig é justamente incorporar as reações histéricas daqueles seres que, ao descobrirem que a versão nova seria protagonizada por quatro mulheres, passaram a fazer a linda blair e revirar os próprios pescoços. Vide a cena em que Erin (Kristen Wiig) lê comentários sobre um vídeo no Youtube e um deles diz que “vadia nenhuma vai caçar fantasmas”.

Mas o filme não se restringe ao exorcismo dessas almas penadas – que ainda não fizeram a passagem para um plano superior na escala de evolução.

Entre suas virtudes, está o timing cômico do elenco. Kristen Wiig, Melissa McCarthy e Chris Hemsworth são tão precisos, que até piadinhas bobas como a que menciona o bichinho de estimação de Kevin (Hemsworth) arrancam risadas. Igualmente expressiva, Leslie Jones se destaca mesmo nas menores falas: “Ok, sala cheia de pesadelos...”, sussurra Patty com seus botões ao dar de cara com um monte de manequins.

Uma das atrizes, porém, assombra as expectativas. É Kate McKinnon. As passagens em que Holtzmann dança “Rhythm of the night” ou quebra uma guitarra ou se diverte experimentando (e assustando de) chapéu e peruca são só algumas em meio a tantas nas quais ela surge possuída pelo demônio da insanidade – o que me lembrou a performance arriscada mas bem-sucedida de Johnny Depp como Jack Sparrow, o pirata em cujas veias corria rum.

Eu adoraria me espantar com (muitas) aparições de McKinnon na próxima temporada de prêmios.

Tão divertidas quanto as manifestações de sua personagem são as referências aos Ghostbusters originais. Estão lá a eterna canção de Ray Parker Jr. – que baixa em vários momentos –, o famoso logo – que a montagem reverentemente esconde até os últimos segundos da cena que envolve um jovem grafiteiro – e outras citações menos óbvias, como Erin afirmando que “livros não podem voar e bebês também não”.

Já as meninas podem, se quiserem; podem voar para longe daquela encruzilhada onde só lhes restava ser princesas e esperar um príncipe para alcançar a felicidade. Num filme como As caça-fantasmas, mulheres não são mais receptáculo de velhos estereótipos, nem chamam ninguém: são ELAS as chamadas. Contando totalmente umas com as outras, pegam as chaves de seu Ecto 1 e vão à luta.

E ai do espírito (de porco) que ousar impedi-las.