domingo, 30 de setembro de 2012

Mundinho de pelúcia

Meia-noite. Canal fechado. A cena dos três seios censurada no filme do Schwarzenegger. Mas ninguém me impediu de ver a Sharon Stone levando uma bala no meio da cara. Nem de rabiscar o palavrão que é o nome do ator vingador exterminador governador. Onde está São Protógenes nessas horas inadequadas a menores de duzentos anos? Onde está o guardião da Sagrada Tarja Preta e da Santa Imagem Embaçada?

Talvez na cozinha da Tia Nastácia, sob as bênçãos da moreninha do Sítio, lambendo os beiços com as mariolas, cocadas, canjicas e narizinhos da festa animada dos irmãos Cosme e Damião. Lambuzando as calças de tostões açucarados, moedas de amendoim e bolinhos de bufunfa com goiabada de marmelo. Provando os docinhos dos ibejis enquanto aprova a féria da balada – os brigadeiros albinos e suspiros afrodescendentes que vão para o caixa dois.

Quem foi ao banquete gostou. Comeu. Dos quitutes e outras farras jamais esqueceu.

O santinho do pica-pau oco só parece ter se esquecido de uma coisa: de onde veio. Da origem do mundo e da espécie. Da verdade cabeluda. Da Perereca da Vizinha que escapou do quadro do Courbet para caminhar contra o vento, sem lenço, sem documento, sem um tapa-vergonhas. Uma v****a que guarda apenas a alegria-alegria original – o desejo faminto de devorar dentes, pernas, bandeiras, espaçonaves, guerrilhas, cardinales e brigittes.

Que não está aí nem aqui para o que ursinhos de pelúcia fazem ou deixam de fazer no escurinho do cinema. Ah, os fofos meliantes fumam um cigarrinho de sacanagem? Transam uma ervinha de safadeza? Cheiram uma pastinha de vadiagem? Tomam um porre de felicidade? É mesmo? Não sei, não quero saber e tenho pena de quem acha que sabe.

O que sei é que a vida anda policiada demais, cheia de sirenes tocando o terror na bandidagem. E que o mundo se arrasta – São Protógenes não nos escute – cacete, cacete.

domingo, 23 de setembro de 2012

Liberdade, liberdade

Tensão no Oriente Médio. O âncora do telejornal faz cara de paisagem nublada ao ler a mesma notícia todos os dias. Se fosse tesão, talvez seu rosto ensolarasse. A burca queimasse. Mas não. É tensão. Com ene – de energia. Que não cessa nem com as últimas cinzas da bandeira virando pó. Com as estrelas apagando o céu. Com o vermelho escorrendo nas paredes.

Os manifestantes deixam as ruas nuas.

Dá vontade de importar essa gente. Essa massa. Essa paixão. Essa loucura. Essa religião. Essa ideologia. Essa revolução. Essa primavera. Essa tsunami. Essa força estranha que vem, sei lá, do enriquecimento de urânio, das barbas do profeta, do cuscuz marroquino, do quibe cru, das mil e uma noites, das xerazades, dos alibabás e seus quarenta ladrões, do gênio da lâmpada, do que não há sob o turbante do sultão.

Dá vontade de importar essa tropa de elite osso duro de roer para agir nos intervalos da novela. Para pegar um pegar geral pegar também você. Para berrar no funeral dos honestos. Sacudir os esqueletos da nossa festa pobre. Pisar a grama verde-loura da esperança. Decapitar as estátuas de isopor. Sujar o fairplay do dicionário de boas maneiras. Fazer um minuto de silêncio quando o volume da hipocrisia estiver no máximo.

Quando nossos tímpanos finalmente sangrarem uma coca bem gelada.

Aí talvez a tensão e o tesão aterrissem kamikazes por estas bandas  que mais parecem bundas. O âncora do telejornal faça cara de quem bebeu e não gostou do coquetel molotov. A paisagem nublada ensolare. A burca queime. O pó revire as últimas cinzas da bandeira. O céu desapague as estrelas. As paredes desescorram o vermelho.

E a liberdade abra as asas  solte suas feras sobre nós.

domingo, 16 de setembro de 2012

Paraíso

Deu vontade de falar da Vó. Deu saudade daqueles domingos na casa dela, onde a única regra era brincar sem relógios tiquetaqueando: correr descalço o dia inteiro no quintal, sujar as mãos na terra do jardim, não sair de lá sem levar na mochila sacolés, chocolates e os pastéis de queijo mais gostosos de toda a infância.

Saudade também da hora do almoço, da cozinha de azulejos azuis, da mesa em que não cabiam todas as travessas e travessuras, da Dona Mari carinhosamente nos intimando a provar e repetir umas duzentas vezes cada prato, do bolinho de bacalhau à salada de frutas. Afinal, neto nenhum seu podia ser magrinho. O que as vós da vizinhança iam pensar?

Saudade até da cara (quase) feia que ela fazia quando nos esquecíamos de pedir sua bênção ou um beijinho de tchau. Do seu olhar levemente preocupado quando iniciávamos a Vigésima Sexta Guerra Mundial das Almofadas e usávamos como trampolim o enorme sofá da sala – que fazia a curva do outro lado da rua.

Saudade do zelo com que cuidava das camisas do Vô Maneco, do capricho com que pregava cada botão que tentasse escapar.

Saudade do banho de mangueira no verão, do cheiro do café no frio, do barulho da máquina de costura, da cor da tinta com que pintava o cabelo, do sorriso que teimava em não aparecer nas fotografias, do jeitinho delicadamente severo de convencer Mãe a nos perdoar... pela Vigésima Sétima Guerra Mundial das Almofadas.

Saudade da saudade que Vó irradiava quando nos via abrindo o portão felizes da vida – prestes a provar mais um pedacinho do céu.

domingo, 9 de setembro de 2012

O grande ditador

O príncipe Hugo, Huguinho para as netas da Vovó Donalda, não sossegou enquanto não sentou no trono de pau-brasil deixado pelo pai, o temido Adolfão I, II e III – que sempre teve o pódio todinho só pra ele. Bastou o rei de roma comer rúcula real pela raiz, e o menino tratou de capar, moer e servir numa bandeja de ouro os irmãos mais velhos: Zezinho e Luisinho. Sem direito a farofa ou molho vinagrete.

A cerimônia de coroação do novo número um do pedaço e adjacências foi um luxo só. De fazer muita inveja à família surreal britânica e aos milksheiks árabes unidos. A comilança foi oferecida pelo poderoso chef(ão) Clô de Troisgros. A decoração, assinada pelo gênio da beleza interior e exterior Tok Stok Rosenbaum. A música, os fogos copacabânicos e os efeitos cafonálicos, uma gentileza da André Rieu Big Band & Surround Sounds.

Até a comunidade do Chapéu Projac desceu o morro para ir à festa. Que teve direito a Amaury Sandy Junior entrevistando as celebridades mais instantâneas de Wonderland, aquelas cuja fama não ultrapassava quinze segundos – as que excediam o tempo regulamentar tinham suas cabeças cortadas a pedido do rei, que não admitia concorrência no horário nobre e no plebeu.

Entretanto, contudo, todavia, apesar de tantíssima pompa, as circunstâncias ainda impediam que o monarca fosse inteiramente feliz. O regime do país era tão, tão rigoroso, que não só proibia o consumo de Big Macs, como também vetava a adoração de ídolos estrangeiros. E quiseram as fadas-madrinhas da Segunda Estrela à Direita que Hugo nutrisse uma paixão incontrolável pelo Mickey Mouse, o garoto-propaganda de seu maior rival, o Tio Patinhas Sam.

Nada que um passaporte falso, uma viagem clandestina e bastante maquiagem não resolvessem. E lá foi o rapaz brincar duas semanas nos parques do rato mais famoso do planeta. Tudo ia bem até o soberano sair encharcado de um passeio na Splash Mountain. O banho que tomou desfez o disfarce. Sua foto  com orelhinhas no lugar da coroa – logo se espalhou pelas redes sociais.

“Ôôôô, o imperador voltou... O imperador voltou... a ser criança!”, berravam as manchetes dos tabloides e demais jornalecos de oposição.

Para encurtar a estória e não cansar os eleitores: ao contrário das previsões de Míriam Porcão e Mãe Dinada (os maiores oráculos da nação), o rei desembarcou na Casa Branca de Neve, sede do governo, ovacionado por conselheiros, secretários, funcionários e, especialmente, pelo povo, que passou a exigir direitos iguais; em outras palavras, a livre circulação de chapéus e acessórios do Mickey, da Minnie, do Pateta, do Pluto, além, claro, de permissão para férias na Disney.

Reivindicações justas que Hugo o Generoso e Magnânimo, orientado pelos sábios marqueteiros de seu partido e pressionado pelos donos das agências de turismo, acabou aceitando. Mesmo a doses majestádicas de contragosto. Afinal, passaria a dividir sua idolatria pelo camundongo com os queridos súditos – aqueles roedores que, infelizmente, não cabiam em sua bandeja de ouro nem capados e moídos.

domingo, 2 de setembro de 2012

Cinquenta tons de cinza

O cinza das horas derretendo os sonhos. O cinza da manhã riscando o céu. O cinza dos óculos embaçados. O cinza do romance na página de sempre. O cinza da cama desarrumada. O cinza da água escorrendo pelo ralo. O cinza da fumaça na chaleira. O cinza da manchete do jornal. O cinza do jeans. O cinza do retrato. O cinza da chave na fechadura. O cinza da porta aberta.

O cinza do mundo no bom-dia do porteiro.

No menino marchando pra escola. No mendigo devorando o maizena. Nas senhorinhas fazendo musculação. No rapaz pegando o táxi. Na mulher subindo o ônibus. No homem abrindo a loja. No operário tocando a britadeira. Nos aposentados jogando biriba. Nas babás passeando com os bebês. Nos guardinhas ocupando as esquinas da praça. Na praça.

O cinza do iPod. Da canção dos Beatles. Dos passageiros invadindo o metrô. Do prédio mais alto da cidade. Da cidade vista da janela. Da papelada sobre a mesa. Do monitor. Do Face. Do chocolate velho na gaveta. Dos relógios parados. Da secretária gostosa. Dos colegas contando a mesma piada. Do chefe tendo um infarto. Da sirene da ambulância. Do fim do expediente.

Da volta pra casa pela estrada de tijolos decadentes. Da prateleira colorida do supermercado. Dos trocados na carteira. Da noite que assobia fresca. Da novela favorita. Do futebolzinho zero a zero. Da tevê desligada, muda. Das luzes apagadas. Do silêncio dos travesseiros. Da saudade ancestral que não desbota. Dos sonhos.

Que o cinza das horas logo há de derreter.