domingo, 26 de fevereiro de 2012

Que las hay, las hay

Eu não acredito em Deus nem Zeus. Não boto a menor fé em duendes e fadas. Menos ainda no monstro do Lago Ness, no Papai Noel e no prefeitinho da minha cidade. Mas há quem diga que existem mais mistérios entre o céu, a crosta terrestre e o metrô carioca na hora do rush do que imagina nossa vã teledramaturgia. É. Quem sabe. Pode to be.

Vejam meu caso: eu queria porque queria casar no último 10 de dezembro, mesmo dia em que casaram meus pais, felizes para sempre. Superstiçãozinha básica. Não deu. Algum noivo mais neurótico do que este cético de carteirinha já tinha reservado a data. Resultado: acabei dizendo o famigerado sim duas semanas antes, num 26 de novembro qualquer.

Qualquer? Eu mal podia supor que esse número sem eira nem beira fosse invadir meu calendário e etcéteras com (quase) a mesma insistência que o 13 do Zagallo.

A primeira vez foi na lua de mel e canela em Gramado, chocolatíssimo paraíso da Serra Gaúcha, que comemorava com desfiles, fogos e jingle bells seu vigésimo-sexto Natal Luz.

A segunda e a terceira, no escurinho do cinema: na comédia francesa Românticos anônimos, Angélique e Jean-René, tímidos a vida inteira, estrelam sua primeira noite de amour num quarto de hotel número 26; em As aventuras de Tintim  o segredo do Licorne, o jovem repórter e seu cão Milu moram na rua do Labrador, 26.

A quarta vez foi na volta ao trabalho, na escola em que dou aulas de Português. Meus adoráveis gremlins − mais conhecidos no meio como alunos − me aguardavam mui ansiosos diante da sala que ocuparei o ano todo. O número dela? Preciso mesmo dizer?

E nem vou comentar o fato incrível, fantástico e extraordinário de o Dia de São Madruga − meu santo de devoção − cair em pleno 26 de janeiro.

Sei não. Este mundo anda tão estranho. Meu mundo anda tão estranho. Mágico até. Com muito pó de pirlimpimpim. Com excesso daquelas coincidências que acontecem em qualquer parte da novela das oito. Eu, que continuo firmemente não acreditando em Deus, Zeus, duendes e fadas, estou começando a botar fé nas bruxas.

Pelo sim, pelo não, já acendi 26 velas pra Cuca.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Atrás do Submarino Amarelo

Já fiz rafting, arvorismo, tirolesa. Já encarei Maraca lotado. Engenhão lotado. Morumba lotado. Metrô lotado. Sala de aula lotada (é, sou professor). Esportes radicais são comigo mesmo. Mas nada disso se compara − pensava eu − a me arriscar no meio de um bloco de carnaval. Cair na folia ao som de "Mamãe eu quero" jamais esteve na minha listinha de mil e uma loucuras a serem realizadas antes de morrer.

Isso, claro, até certo Sargento Pimenta deixar a rainha Elizabeth lá com seu molho inglês, vir pra January River e transformar os clássicos dos Beatles em marchinhas, maracatus e micaretas. Por Paul, Ringo, George e John, resolvi abrir o paraquedas e me jogar no céu de diamantes da festa momesca pela primeira vez. Help, get my feet back on the ground!

E foi bom. Segunda-feira, duas da tarde, o sol parecia menos ensolarado. Os cariocas pareciam menos cariocas. Os mijões pareciam menos apertados − ou descobriram os banheiros químicos. O Aterro e seu gramado pareciam, de repente, um Woodstock tupiniquim. Paz, amor, alegorias e adereços. Muita fantasia. Love, love, love.

Bungee jumping nossos corações solitários ou bem-acompanhados na balada de "All you need is love", escalamos incansáveis a montanha de nanananãs do Jude, mergulhamos no ritmo de um "Yellow Submarine" à moda arretada de um trio elétrico. Os soldados sambamos, funkeamos, xoteamos, twistamos, shouteamos. Tudo come together. Sem medo de misturar.

Viva a antropofagia!

Eram quase seis horas quando o surdo e o tamborim começaram a surfar mais baixo. Hora de ir embora. Guardar o obladi-abadá para a próxima hard day's night. Here comes the end, darling. O Submarino já submergiu, my little. O Sargento partiu. Mas deixou uma certeza neste nowhere man − Pimenta, como qualquer esporte radical, faz arrepiar, dá um medinho, arde, arde bastante até, mas é bom. Yeah yeah yeah.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Como estamos bandidos

A matéria especial do Superfantástico do último domingo chamou minha atenção: manobristas portadores da raríssima síndrome de Metralha foram flagrados por câmeras escondidas e pra lá de abelhudas roubando doces e moedas dos carros que guardavam. E eu que achava que essas criaturas não existiam de se pegar...

Pois chamou ainda mais minha atenção um amigo (cujo nome não vou revelar) indignado com os faustões e gugus que arquitetaram tal armadilha − digna de pegadinha do Malandro − só para, segundo ele, expor os rostos de profissionais que tinham apenas tomado emprestado chocolates e trocados quase oferecidos a eles. Que puxa. Oh vida, oh azar. Criaram um cenário de novela mexicana para induzir os pobres coitados ao erro e denegrir a imagem de uma categoria inteira. Um abuso da imprensa sensacionalista.

Subi nas tamancas: abuso é alguém tomar o que é seu, ainda que sejam doces ou moedas. Aqui em Sucupira City a desonestidade parece brotar com mais facilidade que o respeito ao próximo, que a cidadania: é o manobrista que rouba um brigadeiro, é o dono do posto que surrupia dois litros de gasolina por automóvel, é o prefeito Odorico que aumenta o próprio salário em 126%. Os flagrantes, mesmo os sensacionalistas, talvez sejam um mal necessário. Antes eles, antes até uma democracia sucupirense, que leis de imprensa, mordaças, vendas, silêncio.

Meu amigo, claro, não se conformou: quer dizer então que a mídia não precisa de limites, de um Big Brother Boninho a vigiá-la?

Não troque de canal, Juvenal (ops! me escapuliu!). O fato é que alguns manobristas − felizmente a minoria − se apropriaram de algo que não lhes pertencia. Aqueles doces e moedas não foram oferecidos a eles. Esses "profissionais" não são coitadinhos nem vítimas, muito menos ministros da Dilma. Ou será coitadinha, vítima a Edileuza, faxineira lá de casa que não resistiu à tentação de pegar uns biscoitinhos, umas carambolas e até umas joinhas de mamãe "oferecidas" a ela?

Ok, ok, é importante dizer que o problema existe. Mas por que tanta pirotecnia? Isto aqui, ôô, não é um filme de Michael Bay, iáiá. Não estamos em Hollywood. Será mesmo imprescindível estigmatizar publicamente um reles pai de família cujo maior crime talvez tenha sido esse, roubar docinhos e moedinhas? Não seria suficiente o patrão dele ou o Bope repreendê-lo com o saco? Por que partir logo para o cabo de vassoura?

Um dos nossos grandes males é justamente esse, Ju: achar que atitudes como "roubar docinhos" ou "aceitar propinazinhas" sejam um problema menor e, portanto, não mereçam estar no palco do Caldeirão ou no sofá da Hebe. O tamanho ou a quantidade do roubo não importa; importa, sim, o prazer, digo, o ato de roubar. A honestidade não é quantificável.

Então o Dick Manobrista merece a mesmíssima punição do Sr. Mutley − que desvia malas de dinheiro público destinado à nossa falta de educação. Como não há medidas de honestidade ou desonestidade, coloquemos mamãe, papai, vovó, cachorro, papagaio mais a barata da vizinha no mesmo reality show e arranquemos as mãos de todos. Não vai sobrar unzinho no paredão.

De fato, o princípio da honestidade − e aqui estou falando em termos morais, filosóficos, diogo-mainárdicos até − não é quantificável, o que não significa que o ato desonesto, em termos legais, não seja. É evidente que a punição deve ser proporcional ao crime. Um docinho roubado pode custar uma unha, quiçá um dedo; malas de dinheiro, talvez um braço.

Juvenal arregalou os olhos, escondeu as mãos nos bolsos e não saiu de fininho. Fugiu de jatinho. Nunca mais ouvi falar dele.

E eu fiquei (quase) sozinho. Só me restaram as pombas arrulhando, a praça vazia e duas ou três dúvidas: em que mundo da lua meu amigo vivia? Brasília? Ou em algum outro planetinha, de uma galáxia muito, muito distante, onde todo cidadão de bem tinha o sagrado direito ao seu quinhão de roubo, grande ou pequeno, proporcional à distância que o braço conseguisse alcançar?

Honestamente? O velho Juve andava muito bandido.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Cinéfilos

Não sou cinéfilo.

Cinéfilo é o indivíduo que vai ao cinema sem saber o filme a que vai assistir e faz do bilheteiro o novo Rubens Ewald Filho ou Pablo Villaça. Aquele camarada que acredita estar diante da Ana Maria Bahiana ou do Bonequinho Viu. Tá passando o quê? Esse é bom? É muito grande? Tem ação? Não é dramalhão nem comediazinha romântica, né? Musical? Nem pensar! E esse outro? É dublado, não? Teve quantas indicações ao Oscar? Você aplaudiria de pé?

Cinéfila é a adolescente que encontra as amiguinhas fofas na sessão das 17h para botar a fofoca em dia. O papinho começa nos trailers, não se intimida com a fanfarra da Fox, continua lépido e fagueiro mesmo com o Titanic indo a pique e só termina − termina? − nos créditos. O máximo de interação entre o que se passa na tela e as moçoilas são os gritinhos pro DiCaprio. Que, claro, pode ouvi-los...

Cinéfilo é o herói que defende como bom alemão as cópias dubladas  o Schindler das pobres fitas mutiladas. Afinal, os analfabetos não têm direito de ir ao cinema? Os deficientes visuais não podem se divertir num multiplex? E os coitados dos dubladores? Vão ter que vender pipoca se todos os filmes forem legendados? Ah, o mais importante: a idolatrada-salve-salve língua pátria. Valorizemo-la, filhos deste solo!

Cinéfilos são o papai que não desliga o celular e a mamãe que não desliga o filhote curioso, em plena idade dos porquês. Manhê, por que o Superman pode voar e eu não? Por que veste uma cueca vermelha por cima da calça? Por que a kryptonita é verde? Por que o Lex Luthor usa peruca? Por que criadora e criatura têm que discutir essas questões fundamentais para o futuro da humanidade bem no meio do filme?

Disse e repito: não sou cinéfilo. Sou só aquele chato sentado na poltrona da frente − que pede silêncio e uma dose de boa educação.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Iaiá e Ioiô

Saudade enorme das minhas priminhas Iaiá e Ioiô. Partiram cedo, cedo  tão jovens, tão puras. Mal tiveram tempo de plantar um bonsai na sacada, ter um filhote de joaninha, escrever um livro de autoajuda, experimentar sushi, fazer tirolesa, sair no Cordão do Bola Preta, cantar todos os sucessos do Wando no caraoquê lá de casa.

Pois é. As duas eram as fãs número um e dois do cantor. Só não me perguntem quem era a um, quem era a dois. Dava empate técnico.

E dava muita briga também. De sujar de carmim a vila inteirinha. De um lado, Iaiá – nozinho que só desmanchava com sua voz, passarinho na gaiola de suas cantadas, espinho que doía quando ele descia do palco. De outro, Ioiô  luzinha que acendia quando ele subia no palco, raio, estrela e luar que viravam manhã de sol com suas cantadas, louca de amor por sua voz.

Uma era fogo, a outra paixão.

Tanto fogo, tanta paixão só podiam terminar em incêndio. Toda véspera de show elas cumpriam o mesmo ritual: se trancavam no quarto para escolher as melhores calcinhas. As mais transadas eram oferecidas ao ídolo. Mas aquele não seria um show qualquer − seria o último. Wando tinha acabado de morrer e faria sua derradeira aparição no velório.

Ele vai levar as minhas pro céu. As minhas. As-mi-nhas. Só as minhas têm gosto de maçã. Não sei quem começou a disputaria. Nem quem rabiscou o ponto, digo, a exclamação final. Só sei que, depois de muita gritaria, arranhões e cabelos arrancados, Iaiá ou Ioiô pegou as calcinhas de Ioiô ou Iaiá e as atirou com gosto e fúria no micro-ondas. Bum.

Apagaram. As duas. Mas logo acenderam. Com aquela ingênua safadice nos olhos. Nisso eram iguaizinhas. Iaiá e Ioiô se embrenharam na mata até achar a cascata de água cristalina, a relva, a rede. Nela, esparramado feito um Adão, Wando as esperava cafajeste, pronto para pegá-las no colo, deitá-las no solo e fazê-las suas Evas.

Só não me perguntem quem foi a primeira, quem foi a segunda.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Fina estampa

Um BBB sem prova da comida, do líder, do anjo ou de resistência; sem combinação de votos; sem votos; sem paredão; sem os queridinhos anônimos que venderiam até a chocadeira de onde vieram para faturar um milhão de reais e uns trocados de fama; um reality show sem o gênio do Boninho; sem a poesia do Pedro Bial. Salve, salve, macacada!

Uma novela do Manoel Carlos só com o top top top do Leblon; uma trama do Gilberto Braga só com a nata do high society de Copacabana; um enredo do Aguinaldo Silva só com Terezas Cristinas; um folhetim do Silvio de Abreu só com as senhoras quatrocentonas de São Paulo; ah, e nada de classe média ou núcleo pobre! A não ser faxineiras, copeiros e motoristas...

Um programa do Amaury Jr. sem Amaury Jr. Só as festanças regadas a champanhe; as viagens de primeira classe regadas a champanhe; as comprinhas básicas na Daslu regadas a champanhe; os cartões de crédito sem limite e pudor regados a champanhe; as milionárias socialites regadas a champanhe − e a uma tacinha de botox.

Com tantos predicados que são puro luxo, como não dar aquela espiadinha básica na novelinha estrelada por Barbie Brunete, Débora Truck, Lydia Xerife, Narcisa a Louca e Val Cana-Brava, as Mulheres podres de ricas da Band? Como resistir aos encantos mil das divas desse Sex and the city absurdamente tupiniquim, com auriverde padrão de qualidade?

Simplesmente não resista, bebê. Espie à vontade e brinde feliz a Dom Pérignon − mesmo com a sidra nossa de cada dia. Cheers!

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Sessão aventura

Os créditos e a trilha sonora de John Williams tomavam conta da sala, o público saía apressado, celulares a postos, luzes acesas, e eu continuava na minha poltrona. Tranquilo, tranquilo. Nem a turma da limpeza e suas vassouras frenéticas me fizeram sair do lugar antes das últimas letrinhas na tela. Como é bom quando um filme nos tira a urgência de voltar à realidade...

Este é o caso do primeiro longa da dupla Steven Dupont Spielberg e Peter Dupont Jackson, As aventuras de Tintim − o segredo do Licorne, que traz o jovem e topetudo repórter criado por Hergé na pista de um tesouro perdido. A ação começa quando Tintim se encanta pela miniatura de um velho galeão, o tal Licorne, e decide comprá-la. Mal sabe ele a história fantástica em que está prestes a se meter, desenhada com uma espécie de tinta-adrenalina à beira da extinção, que dava um colorido divertidamente ingênuo às antigas matinês.

De fato, a primeira cruzada de Tintim na Hollywood do século 21  do motion capture, do 3D, da pipoca pasteurizada − reúne traços de um cinema ainda sem cinismo, cujos tons transpiravam certa inocência. Não por acaso, ela marca o retorno aos good old times de um de seus maiores ícones, o cineasta-aventureiro Spielberg Jones, incansável caçador de arcas e pedras sagradas, que nos últimos tempos parecia condenado ao monótono free shop de O terminal ou soterrado nas trincheiras melodramaticamente burocráticas de Cavalo de guerra.

Voltemos, porém, aos segredos do Licorne − que encontra sua síntese na genial perseguição a três pedaços de papel envolvendo mocinhos, vilões, vários figurantes e até um tanque dentro de um hotel. Uma sequência sem cortes e pudores que vale nosso fôlego. Merece ainda lembrança a passagem em que o Capitão Haddock recorda detalhes importantes de sua história familiar. Não bastasse a edição inspiradíssima − que intercala passado e presente com imensa fluidez , a imagem do navio e do oceano invadindo furiosamente o deserto enche nossos olhos e a telona com uma explosão surrealista.

Combinação friamente calculada de luz, câmera e ação, Tintim vai além da mera descoberta de um tesouro; ele redescobre o cinema como movimento e aventura, à maneira de um galeão de velas içadas ou de um avião que faz da bêbada baforada do Capitão Haddock combustível para uma viagem à terra do puro entretenimento.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Dercy de mentira

Minha tia Dercy saiu da gaiola cedo. Sujou a boca de batom bem antes de o Bicho Comeu pôr as ombreiras de fora, cantou mais alto que o coral das meninas de Petrópolis e chamou mais atenção que as Irmãs Cajazeiras, o padre Marcelo e Maria Madalena juntos. A quem atirasse a primeira pedra, ela retribuía com meia dúzia de sinais gráficos: #$%@&!

Ainda na adolescência, titia quebrou uma garrafa de cachaça na cabeça de seu pai, um bebum de língua presa que sonhava ser presidente do Brasil. A porrada foi tão forte que o velho não teve chance de fazer o quatro − no dois, ele morreu. E ela, assassina por acidente, teve de fugir do Arkansas. Tomou o primeiro furacão e aparatou na cidade grande.

Perseguida pelo FBI, pela Liga das Senhoras Católicas e por Willy Coyote, tia Dercy fez uma plástica que a deixou irreconhecível, com a cara daquela atriz, a Tati Périssé. Não satisfeita com a mudança da fuça, mudou o nome também. Passou a se chamar Heloísa Siqueira; Lolô para os íntimos (ou seja, toda a humanidade).

Com apelido tão fofo, não foi difícil Lolô conseguir um emprego de bilheteira no teatro mais sujo da Praça Tiradentes, naquela época "o" endereço nobre do Rio de Janeiro (até a ascensão da Barra e do Leblon, claro). Ela fez tanto sucesso na boca − e na mão − do caixa que a plateia não assistia mais às peças. Ficava ali mesmo, no saguão de entrada, ouvindo suas piadas. Foi aí que Boni Bolacha, dono do estabelecimento, teve a ideia genial: levar tia Dercy para o palco.

Em duas semanas, Lolô virou a estrela da Broadway tupiniquim. Dois meses depois, já brilhava no cinema, contracenando com Grande Oscar, Otelito, Fernanda Montebranco e outros astros do Sistema Solar. O ápice de sua carreira foi a vitória por unanimidade no Troféu Perereca da Vizinha, na categoria melhor atriz que utiliza a língua brasileira de sinais.

Infelizmente, o final de sua estória não foi nada alegre ou apoteótico. Graças à Dona Censura, uma velha invejosa da ditadura alheia, tia Dercy teve de (novamente) fugir; dessa vez, do país. Passou vários anos na França como uma dançarina decadente do Moulin Rouge. Só após o fim do regime totalitário e a lulalização do Brasil, os parisienses puderam finalmente extraditá-la para cá. "Xô, Perereca, xô, Perereca!", comemoravam diante do Arco do Triunfo.

Hoje titia não vê, não escuta, não fala − se comunica apenas por sinais. Sobrevive seus últimos dias numa casinha humilde, toda estropiada (a casinha ou tia Lolô, o adjetivo serve para ambas), na cidade que a pariu, à espera de um reajuste no bolsa-dentadura e de uma improvável visita de Maria Adelaide Amaral, novelista famosa, que lhe prometeu escrever sua biografia.