domingo, 29 de setembro de 2013

O poderoso chefão

Já faz uma semana que Bruce Springsteen devorou a Cidade do Rock. Que sua voz rascante tragou os tímpanos de uma plateia a um verso do êxtase. Que sua guitarra ensandecida engoliu uma multidão de corações a uma nota da catarse. Que sua banda raspou o prato de um festival até então carente de uma estrela maior.

“Exagerado. Você é mesmo exagerado. Adora um sessentão azeitado.”
  
É o que hão de cantar as bibas invejosas, que never ever serão tão divas quanto a Beyoncé; as balzacas adormecidas, ainda sonhando com o dia em que ganharão um selinho do príncipe Bon Jovi; os dedicadíssimos musers, que, por motivos óbvios (além dos numéricos), jamais farão de seu power trio um fab four; as lolitas sabor tutifrúti, sempre mascadas – e mascáveis – pelo primeiro Justin que lhes cruza o palco, seja Bieber ou Timber; e até os metaleiros mais cabeludos e tatuados, que juram identificar música onde eu só decodifico grunhidos no volume máximo.

Mas contra fatos – e o inoxidável rock’n’roll – não há argumentos nem pirotecnias: The Boss, como é conhecido Springsteen, não precisou trocar de fantasia a cada duas ou três canções (e nos fazer esperar pelo número seguinte com aqueles clipes chatérrimos, saídos de algum pesadelo de Dalí); não precisou suar a cabeleira loira, os olhos azuis e o peito descamisado; não precisou solar – exibida e infinitamente – a guitarra até o chão; não precisou coreografar feito cheerleader de série B; não precisou de máscara de caveira, nariz de palhaço ou bandeira do Brasil.

A ele bastaram a sensibilidade e, por que não, a esperteza de abrir o show evocando Raul Seixas e sua “Sociedade alternativa”; a simpatia e a coragem de ir pra galera mais do que qualquer outro artista (para desespero dos seguranças e alegria dos fãs); o fôlego de cantar e tocar e pular e correr quase ininterruptamente por mais de duas horas e meia; a entrega de corpo, alma e carisma a cada faixa do repertório; o clímax apoteoticamente arrebatador, ao som de “Twist and shout” e fogos de artifício.

A ele bastou uma apresentação sem frufrus, um espetáculo sem rapapés, um concerto sem rococós – a guitarra só lâmina.

O único senão: eu não estava lá para pedir bis.

domingo, 22 de setembro de 2013

Feliz ano velho

Sábado à noite e eu trocando ideia com o controle remoto só podiam dar em filme repetido, humorístico sem graça ou sono profundo. Não deram. Acabei tropeçando nos dedos e caindo no Viva, em mais uma reprise do Globo de ouroMas não numa edição qualquer: a derradeira de 1988, com direito a Cláudia Abreu e César Filho estourando champanhe e desejando feliz ano novo.

De bônus, Xuxa encerrando a parada musical ao som de ilari-ilariê-ô-ô-ô.

Foi o gole de nostalgia que faltava para eu desligar a tevê, beijinhar a Fernanda (já no sétimo sonho), fechar os olhos e, como num episódio de Além da imaginação, amanhecer com a voz da mamãe me desninando baixinhamente: tá na hora, tá na hora... tá na hora de acordar... pula, pula da caminha, que o café vai esfriar...

Levantei as pestanas ainda no modo sonâmbulo, sem entender lhufas do que estava acontecendo. O rádio-relógio piscava números vermelhos: cinco e quarenta e um. No quarenta e dois, Freddy (o Krueger) surgiu na porta do quarto e avisou que o ônibus não ia me esperar, que eu ia perder a aula, que eu ia levar falta, que eu ia...

Antes que ele fizesse do meu sonho a hora do pesadelo, tratei de largar o travesseiro e me teletransportar para o último banco do busão espacial da Tia Esther e Seu João. De uniforme azul, kichute, lancheira do Jaspion e meias; aquelas meias – que, de tão infinitas, quase cobriam minhas pernas do Oiapoque ao Chuí.

Só não eram tão infinitas quanto o caderno de caligrafia, que a cada lição deixava mais inchados meus as, bês, cês, dedos. Sorte que o recreio chegou logo. O pobre do lápis já não aguentava mais peregrinar tanta estrada pontilhada; bastou o sinal tocar – ándale, ándale! – para ele se pique-esconder no estojo com a rapidez de um Ligeirinho.

E eu reencontrar a passagem secreta para o pátio – bem maior que o que tinha sobrado na memória. Comecei a correr. Corri como toda criança um dia correu: parnasianamente. Mal tive antenas (de vinil?) para captar a presença dos amigos saltitando as figurinhas do Careca e do Maradona, panfletando lulalá e lalalalalabrizoooola, levando cupidamente meu Amar é... até a Garotinha Ruiva.

De repente me vi num furacão tão mas tão Oz que mal consegui sentir o choc-choc-chocolate do lanchinho Mirabel.

Foi o sopro (tufão, vai...) de lembrança que faltava para eu despencar buniiiito da cama. Fiz plunct plact zum como se não houvesse chão e amanhã. Só restaram destroços – escombros de menino, ruínas de saudade. E, claro, as bochechas da Fernanda assustadíssimas com aquele barulho todo: o que foi, o que foi?

Nada não, meu Anjo. Apenas um réveillon inesperado.

domingo, 15 de setembro de 2013

De olhos bem abertos

Não sei se é azaração, paixonite, namorico, compromisso sério, união estável, casamento até que a morte nos separe. Talvez seja amizade colorida – ainda que tenha lá seus momentos em preto e branco, seus incontáveis tons de cinza, suas horas meio sépias. A foto, digo, o fato é que estou pegando a fotografia.

A paquera começou quando um amigo em comum passou a postar seus instantâneos nas redes sociais. Não demorou para eu me encantar com aquelas paisagens bucólicas da Urca, com aqueles bem-te-vis que pareciam posar para um documentário do Discovery, com aquelas flores que poderiam ter crescido num jardim do Monet.

Desde então, vivo de câmera a tiracolo – quase como um japa de férias em Paris –, caçando flagrantes não só da natureza, mas também, e especialmente, das ruas, das calçadas, dos becos, dos rostos, dos gestos, das luzes, dos muros: de qualquer pedra-no-meio-do-caminho que se revele um verso; de qualquer pichação que, sob o melhor ângulo, se desfaça em grafite.

Vale tudo: o arquiteto (do breve) erguendo castelos na areia; o beijo sendo roubado numa esquina à primeira vista segura; o buggy amarelo raiando o asfalto nublado; o balanço repousando numa pracinha descriançada; o vidro estilhaçado dando ares de Picasso ao casario velho; o sorriso afrouxando a multidão de gravatas; o sol descascando entre paredes desbotadas; a lua pingando por uma fresta de céu.

Nem preciso dizer o quanto estou curtindo encher a memória da minha Samsung. A razão de tanto chamego talvez esteja em escolher o que clicar, que se aproxima muito do ato – igualmente prazeroso e arriscado, às vezes tenso – de decidir o que escrever: aquela contagem regressiva (progressiva?) até o flash, segundo-luz em que passamos a enxergar o mundo sem os filtros do senso comum, com o zoom da sensibilidade, quiçá com a resolução da poesia.

Não saio mais por aí como antes, quando parecia usar antolhos, só via o caminho da padaria, do trabalho, do shopping, e não registrava o olhar do menino devorando os doces do balcão, o labirinto de baias soterrando neurônios, a prateleira de sapatos seduzindo corredores de pernas.

Agora só ponho os pés para fora de casa com as janelas – da alma – escancaradas.

domingo, 8 de setembro de 2013

Com que roupa eu vou

De repente a mocinha morria. Bem no meio do casamento. Pra espanto dos convidados, pra tristeza dos amigos, pra alegria da malvada – que só estava de olho na herança e no noivo. Até aí nada demais: apenas mais uma cena cafona da novela, sublinhada, negritada e italicizada pela trilha sonora exibicionista e pelo overacting do elenco.

O demais veio depois, do outro lado, quando a criatura de cabelos ruivíssimos e esvoaçantes – a postos para o próximo merchan da Wella – acordou no céu, no purgatório, no limbo, na laje do inferno, sei lá, com aquele figurino branquinho, cheio de bordados, brilhos e rococós.

Pergunta que não quis fechar a boca: ela fez a passagem de véu e grinalda? vai correr dos espíritos de luz, vagar entre nuvens de cromaqui e horizontes de fotoxópi, assombrar os vivos e os telespectadores, curtir a eternidade inteirinha dentro daquele modelito casei-com-o-vestido-da-bisa?

Fiquei preocupado. Mesmo. Imagina se eu desencarno agorinha e apareço diante de São Pedro, nas portas do Paraíso, de pijama velho, meia furada e chinelo gasto. No mínimo, o santo vai achar desfeita. E se ele considerar pecado mortal então? Minha nossa: já estou até me vendo a caminho das masmorras celestiais escoltado por anjinhos do Esquadrão da Moda.

Melhor eu comprar uns ternos, umas gravatas e garantir um traje adequado pra ocasião. Quem sabe até um sobretudo. Vai que lá é frio – caso o meu não seja a praia particular do Coisa Ruim. Pelo sim, pelo não, talvez o mais indicado seja preparar uma bagagem de mão com short de banho e protetor solar. Afinal, não sei a quantas anda meu plano de milhagem com o Divino.

Juro: passei dias e dias pensando no melhor visu pra bater as botas... botas! Como pude esquecê-las? Vão já pra mala. Item de primeiríssima necessidade em caso de ira do Hômi, que nessas horas não poupa nuvens carregadas, dilúvio e inundação na periferia do Éden. Não seria a primeira vez (Noé que o diga).

Chuvas e trovoadas à parte, levei quase um mês refletindo sobre a matéria. Sério. Até a noite em que, sem uma piscadela de sono, liguei a tevê e esbarrei num filme meio experimental, toda pinta de vanguarda, no qual os mortos – as mortas, principalmente – perambulavam pelo Infinito como vieram ao mundo. Ou quase. Descontemos os silicones.

Daquela madrugada em diante, como que por milagre, relaxei com o guarda-roupa. Minha preocupação passou a ser outra: entrar o quanto antes numa academia, achar um personal dos bons e aprimorar a forma pro post-mortem – pra quando enfim chegasse a hora de me despir de vez do paletó de madeira.

domingo, 1 de setembro de 2013

Ponto final

Levei um bom tempo ignorando seu corpinho magro sobre a escrivaninha, meio que se escondendo entre livros e lápis, ingenuamente refugiado sob as contas do mês (logo elas), tentando se passar por mais uma daquelas canetas que insistem em se perder do estojo. Ficamos quase uma semana nesse escreve-e-apaga: nos fingindo de mortos.

Só que ela estava morta de fato já havia alguns dias, desde que expirou sua última ponta de grafite no meu caderno de anotações bobas. 

Foi tudo muito rápido. Estava eu no sofá, a tevê no mute, o note em descanso de tela. Ruminava umas ideias de lá, mastigava umas palavras de cá, quando a coitada engasgou feio e travou do bico à borrachinha. Ainda a sacudi, dei-lhe uns tapinhas, fiz massagem, troquei o zero-sete, mas nada. Não deu mais sinal de vida.

Senti o baque. Tanto é que não tive coragem de enterrá-la na hora, e ela foi parar na minha mesa, em meio a dezenas de alrafábios (é assim que eu chamo os meus alfarrábios). Ganhou a chance de se despedir de seus fiéis companheiros de escritório e até de alguns desafetos, como a Dona Borracha, de quem invariavelmente divergia.

Vou sentir saudade daquela magrelinha azul. Fez tanta lista de supermercado generosa, com direito a Häagen Dazs e Passatempo recheado. Calculou tanto orçamento de viagem que acabou em retratos felizes. Grifou tanta besteira de rir sozinho no metrô cheio. Deu (algum) sentido a tanto parágrafo-maçaroca. Anotou tanta frase que virou crônica. Disputou tanto jogo da velha. Rascunhou tantos sonhos.

Me ajudou a jamais esquecer o e-mail da minha primeira e única namorada.

Pena eu não poder reunir mais todas as folhas pelas quais ela passou um dia, nas quais rabiscou estórias, guardou segredos, deixou pegadas, sublinhou memórias, tracejou mapas, circulou tesouros – estradas de celulose nas quais riscou versos, sílabas, letras, dúvidas, exclamações, não sei quantas vírgulas de vida.

Só eu mesmo pra arrumar melancolia numa hora dessas.