domingo, 25 de outubro de 2015

Bergmans e bays

Homem invade escola e mata dois.

É ler a manchete aí em cima e perguntar as mesmices: de novo, Tio Sam? onde o assassino comprou os rifles? na padaria ou na farmácia? quantas columbines ainda serão necessárias para que os americanos entendam de uma vez por todas que incentivar uma cultura bélica só é bom negócio para os fabricantes de armas?
 
Mas o crime – segurem o queixo – não aconteceu nos Estados Unidos, e sim a sete mil e tantos quilômetros de lá; na Suécia, para ser exato. Aquele país mais conhecido pelos chicles explosivos do ABBA e os tiros certeiros do Ibrahimovic. O criminoso, por sua vez, não usou pistola, espingarda, nem bazuca. Preferiu uma espada.

O cenário e a arma inusitados foram o estopim para que atiradores de bobagem espalhados pela internet – a cada dia um campo mais minado – começassem a disparar as costumeiras ironias de baixo calibre. O alvo? Qualquer um que veja no belicismo ianque uma das causas da violência que frequentemente assalta high-schools e universidades daquele país.

– Agora quero ver culparem os americanos ou os revólveres por essa tragédia – metralharam sem piedade os snipers de neurônios, variedade de homicida que sempre põe à prova meu discurso pacifista. É nessas horas que agradeço a céus e infernos o fato de o arsenal disponível aqui em casa se restringir a palavras.

Seria difícil ignorar o gatilho diante de seres incapazes de admitir que: se os americanos não tivessem acesso tão fácil a armas de fogo e “precisassem” de uma espada toda vez que sua loucura bélica os impelisse a ocupar uma sala de aula, isso certamente desencorajaria esse tipo de atitude ou, no mínimo, pouparia muitas vidas. Comparar o número de vezes em que ocorre um crime desses na Suécia e nos Estados Unidos é até piada.

– Piada é o Brasil não ter acesso (legal) a armas de fogo e bater os americanos em mortes – contra-atacaram os bolsonaros de sinapses.

Estava demorando para a discussão chegar ao lado de cá do Equador. Infelizmente, no entanto, não me surpreende que tais criaturas finjam não perceber o desatino de usar o que aconteceu na terra de Ingmar Bergman – ou o que acontece a todo momento na de Michael Bay – para falar da violência no Brasil. Que eu saiba, aqui (em geral) não temos gente invadindo escolas ou universidades para promover chacinas. Nossa violência é de outra natureza, tem outras origens – intrinsecamente ligadas a desigualdades sociais históricas.

É lamentável que tantos exemplares da espécie dita sapiens insistam em não reconhecer nem essa diferença. E sigam alvejando o mundo com seus projéteis de cinismo.

domingo, 18 de outubro de 2015

Ficções e facções

Rompi com a novela do João Emanuel Carneiro. Sério. Desde que Romero Rômulo (Alexandre Nero) e Zé Maria (Tony Ramos) se encontraram à luz de um dia ensolarado – bem em frente à fundação do ex-vereador – e ainda trocaram um aperto de mão, perdi o encanto pela Regra do jogo. E nem adianta a Alcione cantar que o amor será eterno novamente. Sem chance, Marrom.

O poeta já dizia: a diferença entre a verdade e a mentira é que a primeira não precisa fazer sentido. Não por acaso, a regra principal de qualquer jogo de ficção é a verossimilhança. Também conhecida como coerência (ou lógica) interna, a “vero” é o temperinho que permite ao espectador engolir a história que lhe é contada sem se engasgar com os fatos narrados – sem duvidar que estes realmente possam acontecer, uma vez que eles respeitam as leis do universo proposto pelo autor.

Pois essa regrita foi triturada em mais pedaços que aquele xadrez da abertura, quando os dois chapas de facção promoveram o tal tête-à-tête a céu aberto. Em que mundo um sujeito como o Romero – que vive da imagem de bom moço, de defensor dos direitos humanos, de criador de uma instituição que reabilita ex-presidiários – arriscaria a própria reputação só para levar cinco dedos de prosa com um foragido da polícia acusado de participar de uma célebre chacina?

Ou: que organização criminosa tão poderosa é essa (à qual a dupla pertence) que autoriza um encontro, ou melhor, um furo desses – maior que o provocado pelos fuzis que ela trafica?

Alguém dirá: ah! isso é novela, novela é assim mesmo. Ao que este aqui retrucará: não, amigo, não é assim mesmo. Justamente por ser novela, por ser faz de conta, a conta tem que fechar muito direitinho. Não pode haver fração que escape à contabilidade do verossímil. Sob pena de o espectador minimamente atento não acreditar mais na trama e desistir dela. Como ocorreu comigo.

Já basta que da novela da vida real a gente não possa desistir tão facilmente. Não tem controle-remoto para isso.

Vejam o caso de certo senador tucano e de certo deputado peemedebista (presidente da Câmara até o fechamento desta edição). Um e outro são filiados a siglas que, em tese, ocupam espaços antagônicos. A primeira é oposição ao governo; a segunda, situação. Só que ambas invariavelmente votam a favor das mesmas coisas: doação de empresas para campanhas eleitorais, flexibilização de leis trabalhistas, diminuição da maioridade penal – entre outros temas dignos de protagonizar qualquer bom (?) folhetim.

De que evidência maior alguns espectadores precisam para perceber que – a despeito de aparentarem estar em lados opostos – os dois personagens pertencem à mesma facção? Àquela facção que defende os interesses das grandes corporações, do capital financeiro, do livre mercado, de tudo que há de mais conservador na sociedade?

Um aperto de mãos em horário nobre? Inverossímil é que isso ainda seja necessário.

domingo, 11 de outubro de 2015

Meninos perdidos

Amanhã é aquele dia em que muitos vão se lembrar de quando corriam descalços na rua, jogavam queimado no play, passavam as manhãs perdidos na Caverna do Dragão, varavam madrugadas devorando fantasminhas com um joystick, viajavam para o outro lado do mundo ao lado de jaspions e gyodais, morriam de vergonha da mamãe e do papai puxando o parabéns da Xuxa, faziam de um tabuleiro o jogo da (sua) vida.

Sorte a minha estar entre esses cuja caixa-forte de memórias felizes é bem maior que a do Tio Patinhas. Uma turma que, apesar de já ter deixado Oz e suas mágicas há algum tempo – de já ter vivido trinta e tantos outubros –, ainda guarda com carinho cada um dos tijolos amarelos que ajudaram a pavimentar sua estrada até aqui.

Pena que nem todas as estradas recebam um acabamento semelhante; algumas colecionam tantos buracos que invariavelmente causam acidentes e fazem vítimas.

É o caso das ruelas percorridas por aqueles jovens que mal dobraram a esquina da infância com a adolescência e já abandonaram a criança que um dia existiu neles. Em seus bolsos não restou um centavo de memória feliz – apenas a lembrança do guri que só corria descalço porque não tinha o que calçar; que jamais brincou num lugar tão seguro quanto um play; que passava as manhãs perdido entre arranha-céus de lixo catando uns trocados; que varava madrugadas no chão esperando os tiros cessarem; que só viajava quando lhe ofereciam um teco (e não era de pirlimpimpim); que morria de vergonha de não saber dizer o paradeiro da mãe e o nome do pai.

Que jogava um War cujo tabuleiro era o próprio cotidiano.

Recentemente, um arrastão de manchetes levou muita gente a demonizar esses adolescentes em razão dos crimes praticados por eles numa famosa praia carioca. Psicopatas, gritaram uns. Não têm caráter, berraram outros. Como se de repente um surto de psicopatia e mau-caratismo tivesse atingido apenas meninos pobres, negros e moradores da periferia – meninos cujo caminho até aquela areia nunca chegou perto do tapete macio por onde um dia deslizamos nossos autoramas.

(Só um parêntese de esclarecimento: tentar entender por que este ou aquele jovem ingressou na tripulação do Capitão Gancho não significa defender a impunidade. Toda pirataria deve ser combatida e castigada. No entanto, mandar para a prancha o pequeno Alma Negra sem compreender a origem de sua vilania seria tão inócuo quanto tratar uma febre sem curar a infecção.)

Enfim, que a data a ser comemorada amanhã vá além de saudades coloridas e álbuns desbotados. Que seja também um cantinho do pensamento para todos nós. Não vai fazer mal nenhum dedicarmos um minuto de silêncio às crianças que – ao tirarem a cartela do revés no Banco Imobiliário da vida – tiveram mais que suas infâncias roubadas.

Perderam a chance de construir a própria Terra do Nunca.

domingo, 4 de outubro de 2015

Asilo

Menino de onze anos é morto durante operação policial em comunidade do subúrbio carioca. Em protesto, moradores do lugar fecham uma das principais avenidas da cidade na hora do rush. Logo surgem as primeiras manifestações de comoção: bando de vagabundos, desocupados, só sabem tumultuar, tinha que meter bala nessa cambada, fechar via pública é uma afronta, e o meu direito de ir e vir?

Eu só queria entender em que mundo uma rua interrompida pode causar mais indignação do que uma vida interrompida.

No mesmo mundo que só se incomoda com assaltos quando eles acontecem naquela praia famosa; que só se preocupa com o apartheid quando ele ocorre do outro lado do Atlântico; que só se escandaliza com o drama dos refugiados quando eles não atravessam a fronteira do seu país; que só se comove com a pobreza quando ela não mendiga na calçada da sua casa.

É a síndrome da empatia seletiva.

Um distúrbio capaz de fazer o sujeito que mora na periferia – a mil beerretês de copas e ipanemas, mas a um valão da última chacina – se colocar no lugar da páti que teve o smart furtado ou do play que teve o cordão roubado, e não na mira do vizinho que estava no beco errado na hora errada.

Curioso o sintoma que leva alguém a se angustiar toda vez que o telejornal mostra uma cerca sendo erguida pelo país que não quer receber mais imigrantes – e, ao mesmo tempo, a se preocupar com a possibilidade de perder o emprego para os haitianos que continuam chegando à sua cidade.

Mais curioso ainda o sintoma da solidariedade a distância: a senhorinha liga religiosamente para o Criança Esperança, mas desliga imediatamente – o coração? – ao ver aquela criança dormindo no cimento, a poucos metros de sua portaria. Pior: ainda resmunga que paga um ipeteú de Leblon para receber uma paisagem de Pavuna.

Chagas de uma época em que a desumanização está com a cotação nas alturas: em que aulas de história e geografia (na Austrália) são substituídas por lições de programação; em que cursos de ciências sociais (no Japão) são cancelados para se dar mais espaço às exatas; em que cadernos de literatura de grandes jornais (no Brasil) são extintos – afinal, de que nos serve a poesia numa hora dessas?

Que diferença faz um verso de colírio quando a capacidade de enxergar o outro varia de acordo com o tamanho do engarrafamento a ser enfrentado após um dia de trabalho?

Pois é justamente em razão dessa miopia que, mesmo não sendo sírio, afegão ou africano, já estou considerando seriamente a hipótese de me refugiar também: só que noutro planeta. O plano é cruzar o oceano sideral, atracar numa das recém-descobertas praias marcianas e, quem sabe, estabelecer contato com seres inteligentes – cujas vistas não estejam embaçadas de tanto preconceito e intolerância.