domingo, 20 de março de 2016

No meu tempo

(Das coisas que só os acontecimentos das últimas semanas são capazes de proporcionar: uma carta escrita à mão, em papel rosa-bebê, de uma leitora octogenária, ao mesmo tempo indignada com as rivalidades que têm tomado conta das ruas e saudosa de uma terra que – a julgar pelo aroma que o envelope exala – devia cheirar a Cashmere Bouquet. Com o intuito de proteger a identidade da donzélica senhora, transcrevo a seguir apenas o miolo da correspondência. Boa divers..., digo, leitura.)

No meu tempo, o país era um só coração. Um só coração que batia nas cores do símbolo augusto da paz: verde, amarelo; verde, amarelo; verde, amarelo. Não havia essa divisão entre ricos e pobres, patrões e domésticas, brancos e negros, paulistas e nordestinos, coxinhas e petralhas. Fla-Flus, só no Maracanã.

No meu tempo, ricos e pobres estavam sempre juntos, fosse caminhando pela orla de Ipanema, fosse tomando um chá na Confeitaria Colombo, fosse frequentando os camarotes do Municipal, fosse viajando para a serra nas férias escolares – me lembro muito bem de como minha babá e eu nos divertíamos a valer, às vezes até a madrugada.

No meu tempo, domésticas eram praticamente da família: podiam até sentar à mesa com papai e mamãe se tivessem acabado de lavar a louça. Por isso, jamais ousariam traí-los entrando na justiça para reivindicar horas extras, adicional noturno, fundo de garantia e outras regalias. Papel assinado? Não precisava; o que valia era o carinho e a confiança.

No meu tempo, brancos e negros viviam na mais completa harmonia. Como não existiam cotas, apenas o mérito era critério para entrar na universidade. Nessas horas me recordo da Maria Onete, pretinha linda que trabalhou lá em casa: sempre sonhou ser enfermeira, mas reconhecia que – por cuidar dos cinco irmãos menores e ajudar a mãe na feira – não tinha se esforçado o suficiente para passar no vestibular.

No meu tempo, nordestinos como a Maria eram tratados com dignidade. Condoídos com a seca que já naquela época os maltratava, os paulistas não pensavam duas vezes em lhes oferecer trabalho e abrigo. Não tinha peixe grátis; tinha que pescar. E assim cearenses, paraibanos, maranhenses e até os baianos (meio indolentes) ajudaram a botar nos trilhos a cidade que é hoje a locomotiva do meu querido Brasil.

No meu tempo, petralhas (ou comunas, subversivos, arruaceiros e outros nomes feios que a boa educação não permite que eu repita) não guardavam ódio contra coxinhas. Saudade daqueles dias em que eu cabulava as aulas de história para encontrar o Lu no bosque atrás da escola. Saudade daquele braço forte. Daquele impávido colosso. Daquele gigante pela própria natureza.

Daqueles anos em que os unicórnios ainda cavalgavam pelos risonhos, lindos campos da pátria – ao som do mar e à luz do céu profundo.

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