domingo, 17 de agosto de 2014

Noite preta

Não consigo imaginar a saga de Anderline, musa do novo romance de Dau Bastos – Mar Negro (Ponteio, 2014) –, sem ouvir ao fundo os versos vampirescos do maior sucesso de Vange Leonel, artivista falecida recentemente: “Eu saio da cidade/ Procuro só a escuridão/ A purificação na calada da noite/ Da noite preta”.

Isso acontece não só porque Line, fruto de um ménage entre “tinta, papel e horror”, prefere o breu da Transilvânia à luminosidade de Maceió, ou tem o hábito de sugar remendos de vida que vão de um faxineiro equatoriano a um adolescente polonês – mas principalmente porque ela é, a seu modo, também uma artivista.

Hors concours do Prêmio Macabéa, “dilacerada entre a natureza de personagem e a aparência de gente”, a desgraçada vai logo além; extrapola os limites de protagonista. Com a ajuda de um ardiloso troca-tintas (vulgo Dau), veste a um só tempo o capuz do artista – a ponto de cogitar publicar seus diários como se escritos por ela mesma – e a capa do ativista – ao assumir o posto de representante máxima de todos os trambolhos da humanidade.

Line é uma black bloc; sua função é desacatar. Com seus coquetéis de pragmatismo e ironia, com suas bombas caseiras feitas à base de “forra, farra e forró”, vandaliza toda a dor de cotovelo de um amor não correspondido. (Cá entre nós, felizmente não correspondido. Porque ninguém merece a parvoíce de um Apolo canalha, canastra e irrecuperavelmente coxinha.)

Só que tal dor de cotovelo não se restringe ao amor não correspondido; para gozo do leitor – certamente seduzido pelo perfume de feromônio da mocreia –, ela transborda para o mundo não correspondido, o planeta fast-food, o McMundo no qual, segundo a própria personagente, “felizes são os que têm traços médios, porque se beneficiam do posicionamento no bololô”.

Tentando encontrar o seu bololô – ironicamente o seu não lugar ao sol, o porto (seguro?) onde o astro rei não a alcance e revele sua face Fera –, a Bela põe a mochila na corcunda e viaja pelos porões da Europa (Cracóvia, Bucareste, Sófia...) rumo a um destino com ares de sina para quem sabe que é gente e, especialmente, literatura: a última página de um romance.

Vale cada pensão de quinta, cada birosca xexelenta, cada beco no meio do nada (e do frio) acompanhar Line em sua jornada pelas beiradas e desvãos da existência, em seu mergulho sem cilindro nas águas do Mar Negro. Uma aventura que, se para os que pouco viajam há de soar inverossímil ou artificial, para os acostumados aos embarques e desembarques da ficção se fará refúgio indispensável.

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