domingo, 22 de março de 2015

A intraduzível

Mind the gap e, antes que as portas se fechassem, uma trupe de artistas tomou o metrô de assalto. Assalto dos bons: poesia à mão armada. Batucaram duas ou três modinhas e lembraram aos passageiros – pelo menos àqueles com ouvidos livres de smartphones – que não tem vida quem não tem saudade. Só esse verso já valia o couvert.

Não falavam (creio eu) daquela saudade que nos paralisa diante de um álbum de fotografias, de um vestido de casamento, de um brinquedo com a pintura lascada. Não falavam daquele sentimento que nos impede de fazer o check-in com o presente e comprar uma passagem só de ida para o futuro.

Falavam daquela sensação de missão cumprida que deixa o travesseiro macio, que dá a certeza de que cada dia até ali valeu a vigília.

Saudade eu tenho do sacolé de groselha da vó; do tec-tec da máquina de costura da outra vó; da carona do vô até a escola; do recreio sabor mirabel; da mãe me vestindo de Superman pro Carnaval; do pai me ensinando a passar as marchas no Fusca; do mano dividindo o Atari comigo.

Também tenho saudade das tardes com o Ferris matando aula; do cloro perfumando a piscina do clube; dos pés imundos após a pelada no play; dos beijos que não dei na menina mais bonita do colégio; dos planos de construir um castelo com o dinheiro que acumulasse no Banco Imobiliário.

Tenho saudade até – pasmem – do mundo sem celulares.

Mas essa incessante nostalgia não significa incorporar o vocalista dos Fevers e cantar: a gente era feliz e não sabia. Eu sabia. Podia não saber com todas as palavras. Mas quem é que sabe alguma coisa com todas as palavras? O Machado, o Drummond, o Guimarães Rosa? Um baixinho ainda no prólogo de seu romance é que não.

O que importa é que tantas saudades não foram (não são) algemas. Jamais impossibilitaram o lápis de continuar sua aventura rumo a páginas inexploradas.

Os capítulos que rabisco hoje nem são melhores, nem são piores do que os já escritos. Mas estes – os já escritos – tiveram suas frases tão bem pontuadas, seus substantivos tão bem escolhidos, seus verbos tão bem conjugados, que só posso sentir os dedos leves para redigir novas saudades.

E apenas novas – porque as velhas são inimitáveis. Saudades, já dizia a gramática dos sábios, não têm sinônimos perfeitos.

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