domingo, 23 de março de 2014

Guerras frias

E não é que tem uma coisa mais irritante que gente cutucando o celular no cinema? Gente que não consegue usar o tico e o teco ao mesmo tempo. Uns projetos de ameba zarolha que insistem em ver a vida como o eu liriquinho do poema da Cecília: ou isto ou aquilo. Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva. Ninguém ensinou a essas criaturas que um dia com sol e chuva pode render um belo arco-íris?

Para tais seres, aparentemente programados para funcionar em sistema binário, ou você é de direita e em hipótese alguma pode ser visto com camisa vermelha ou estrela no peito, ainda que torça pelo Inter ou o Botafogo; ou é de esquerda e está terminantemente proibido de adotar ou mesmo levar para passear tucanos de qualquer espécie, sob pena de ser denunciado por tráfico de animais (capitalistas) selvagens.

Ou você é americanizado, anda por aí com as orelhas do Pateta e, o-fi-cor-se, não entende nada de geografia, a ponto de arrotar que a capital do Brasil é Buenos Aires e a da Argentina, a Quinta Lua de Júpiter; ou é simpatizante dos russos e não só faz cara de Putin para Big Macs e McFishes, como ainda tem certeza de que todos os sanduíches do Tio Sam são recheados com fígado de minhoca pasteurizada.

Ou você é nerd fanático por filmes de super-heróis versus alienígenas malvados e não sabe o Godard que está perdendo; ou é ratazana de cinema iraniano e o único justiceiro mascarado de que ouviu falar a vida inteira foi o Zorro, aquele sujeito de martelo em punho que nasceu em Krypton, cresceu em Gotham e fica verde-esmeralda toda vez que a Mary Jane está em perigo.

Ou você é hétero, macho, machérrimo e jamais deve ser flagrado na Parada Gay – ou em qualquer festa com mais de duas cores – soltando a franga, o frango, os pintinhos e as plumas ao som do ABBA; ou é assumidaço e está vigorosamente (ui) impedido de bater uma bolinha com a rapaziada no fim de semana, fazer o número-um em pé e guardar a foto do papa na sua Chanel de R$19,99.

Resumo da ópera: para os cérebros (sic) desprovidos do chip da complexidade, ou você é capitalista e explora criancinhas, ou é comunista e come criancinhas.

Eles não conseguem admitir a existência de um camarada vestindo camisa polo no meio da manifestação a favor dos garis; de um entusiasta do sistema de saúde cubano na fila de um espetáculo da Broadway; de um fã do Homem de Ferro comprando ingressos antecipados para o próximo longa do Haneke; de um senhorzinho de cabeça branca e cheio de netos arrasando na coreografia do “YMCA”.

Querem porque querem que acreditemos que somos Beatles ou Rolling Stones, Nike ou Havaianas, novela das nove ou Discovery Channel; que só podemos ser um ou outro, que não podemos estar ao mesmo tempo em dois (ou mais) lugares. Isso quando não ousam dizer – com aquela voz de Galvão Bueno e sabe-se lá com que intenções – que somos um só. Especialmente nessas horas, vale a pena repetir e, se necessário, fazer um desenhinho: não, não somos.

E amamos muito tudo isso.

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