domingo, 23 de fevereiro de 2014

Luzes da cidade

Se for verdade que a cada cinema fechado morre uma fada, os cariocas correm o risco de testemunhar um dos maiores fadicídios da história. A possibilidade desse holocausto de sininhos tornou-se real com a notícia de que o Grupo Estação – responsável por dezesseis salas dedicadas a filmes quase sempre ignorados pelos multiplexes – vive uma grave crise financeira e pode subir os créditos em breve.

Não bastasse tanta tela por aí ter abaixado as cortinas nas últimas décadas, dando lugar a igrejas e farmácias – o que só fez crescer a taxa de natalidade de cantoras gospel e viciados em aspirina –, agora mais essa.

O que há de restar aos cinéfilos, se a falência for confirmada? Cinemarks e kinoplexes? Nada contra os Vingadores, o Batman ou o Superman, ainda que até pouco tempo atrás alguns vestissem a cueca por cima da calça; nada contra aliens e cataclismas que insistem em devastar Washington e Nova York; nada contra as comédias mais românticas, desde que não exagerem no açúcar; nada contra as fitas de ação mais zero-zero-séticas; nada contra princesas, bichinhos fofos, jedis, feiticeiros e vampiros (não incluídas aqui, obviamente, as criaturas banguelas de Stephenie Meyer).

Enfim, (quase) nada contra as grandes redes – a não ser o fato de tentarem nos fazer engolir cópias dubladas e pipoca amanteigada em ouro.

Mas é que nem só de Hollywood vive quem gosta de cinema. Desde que entrei a primeira vez numa das salas do antigo Espaço Unibanco, hoje Estação Rio, para ver o chileno Um táxi para três, lá nos idos de 2001, iniciei uma odisseia por novos espaços e sabores. Não me satisfazia mais uma dieta à base apenas de blockbusters. De repente eu tinha descoberto vida além do McDonald’s.

Não consigo mais imaginar meu cardápio sem atores como Audrey Tautou (enigmática em Bem me quer, mal me quer, doce em A delicadeza do amor) e Ricardo Darín (genial em O filho da noiva, O segredo dos seus olhos, Um conto chinês e até em trailer de margarina); sem diretores como Lars Von Trier (faca só lâmina em Dogville) e Costa-Gravas (lâmina só faca em O corte); sem pepitas como o espanhol Sêmen, uma história de amor e o norte-americano Meu encontro com Drew Barrymore (garimpadas em Festivais do Rio); ou mesmo sem iguarias indigestamente exóticas, como o finlandês O homem sem passado (de Aki Kaurismaki) e o francês A espuma dos dias (de Michel Gondry).

E ainda houve os nacionais: O homem que copiava, Madame Satã, Durval Discos, O cheiro do ralo, Mutum, O outro lado da rua, Edifício Master, O som ao redor... A lista é tão infinita e variada quanto os mundos e personagens que pude conhecer graças aos cinemas administrados pelo Estação. O fim deles seria um golpe de Jason em nosso já restrito mercado distribuidor – setor que, de maneira geral, em vez de apostar na diferença, na diversidade, tem preferido trilhar a autoestrada dos megalançamentos, o atalho do risco praticamente zero, a via segura da pasteurização.

Uma rua tão estreita e mal iluminada que só pode acabar num beco perigosamente escuro.

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