domingo, 11 de novembro de 2012

Licença poética

Passei a semana invejando um verso do Manoel de Barros: “Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário”. Quer dizer, invejando qualquer criatura capaz de se identificar com ele. De passar horas fazendo o desnecessário. Cantarolando sem pudor o desnecessário. Somente o desnecessário. O ordinário é demais.

O preciso, o cotidiano, o fundamental está lá, nem precisa sussurrar sua existência: o chão cabeludo do apê carecendo um aspirador; os tênis vindos da rua gritando um sabãozinho básico; as contas na gaveta implorando uma visitinha ao caixa eletrônico; as redações no fundo da mochila (ou os originais no canto da escrivaninha) exigindo acentos, vírgulas, coesões e coerências; a louça na pia; os lençóis pra trocar; o pó pra tirar; os presentes de Natal.

Todos convencidos de que o James aqui atenderá seus pedidos na primeira hora. Tolinhos. Estão reloginhamente enganados: o James aqui atenderá seus pedidos no primeiro... minuto. Nem um segundo a mais.

É a vida seríssima (de terno e gravata) me empurrando sucessivas prioridades de gente seríssima, eu transpirando responsabilidade – ou tendo mais uma crise de TOC, o transtorno obsessivo dos caxias – e trabalhando arduamente para fazer o que é necessário. O extraordinário é demais.

Demais? Escrever, sobretudo. Escrever, escrever com a mesma presteza com que aspiro os confins da casa; com que esfrego solados até arrancar a laminha mais encardida; com que levo os boletos para se bronzear no leitor de código de barras; com que acentuo e virgulo tanto era-uma-vez-minhas-férias quanto política-cultura-e-periferias-urbanas-diálogos-interdisciplinares-de-Aristóteles-a-Nietzsche.

Que me desculpem as emergências – mas escrever é preciso, é fundamental. E um dia há de ser cotidiano e ordinário. Somente o ordinário.

Por ora, no entanto, é (quase) inevitável atender os pedidos da tal vida seríssima. Sorte que de vez em quando ela tira o terno, afrouxa a gravata e se distrai com um verso de Manoel. Só assim o James aqui relaxa e goza uma licença poética.

Ainda que seja no último minuto.

4 comentários:

  1. Adorei o texto! Muito bem escrito. E também sinto uma invejinha daqueles que trabalham só para fazer o desnecessário. Ô vontade de jogar tudo pra cima e viver daquilo que não necessita de urgências.

    abraço,
    www.todososouvidos.blogspot.com

    ResponderExcluir
  2. Ficou bom o texto, ruim é a rotina. Escrever é sim necessário, e legal, mas uma hora....

    ResponderExcluir
  3. gostei muito do seu blog visita meu blog por favor? http://bloggdoanonino.blogspot.com.br obrigado

    ResponderExcluir