domingo, 28 de dezembro de 2014

Profecias

Não adianta atirar toda a floricultura no mar, pular sete mil ondinhas com o pé direito, mirar o bumbum na direção da lua, tudo ao mesmo tempo à meia-noite, depois de um dia inteiro se entupindo de lentilha, uva e romã. Repito: não adianta. Você pode até estar vestindo a camisa branca da paz, a bermuda amarela da riqueza, a biju esmeralda da esperança, as sandálias azuis da saúde, a calcinha ou cueca vermelha da paixão.

O máximo que vai conseguir é antecipar a fantasia de Carnaval – e arrumar umas câimbras.

Com ou sem simpatia, o ano novo invadirá seu calendário e trará sob as folhas de louro que guardou na carteira (acha que não eu vi?) todas as promessas não cumpridas dos anos velhos: perder peso, economizar dinheiro, plantar uma árvore, entrar na aula de dança, fazer as pazes com o vizinho, aprender uma língua, se apaixonar, se engajar num trabalho voluntário, escrever um livro.

Promessas, aliás, que hão de ficar de novo em sexagésimo segundo plano se minhas previsões estiverem corretas. O que não quer dizer que você vá ser menos feliz por isso.

Os astros me garantiram: aquela conversa séria com a balança vai esperar a segunda-feira pós-churras-de-domingo; a poupança vai sofrer uma revisão de metas para se ajustar àquele finde em Búzios; o flamboyant, ligeiramente maior que seu quarto e sala, vai dar lugar a uma hortinha de temperos na varanda; o curso com Carlinhos de Jesus vai dançar outra vez; as pazes com o vizinho vão acontecer no dia em que ele devolver seu desentupidor de pia (data que nem todo o Sistema Solar junto é capaz de prever).

De resto, seu coração vai ser fisgado. Sério. O dono do anzol? A proprietária da isca? Um espécime nascido em solo francês que logo estará no Brasil prestando serviço num desses greenpeaces da vida. Olha o milagre: de uma só tacada, você vai aprender uma língua nova e se engajar num trabalho voluntário. Tudo para ficar mais perto do seu amor. A história dos dois vai ser tão capa-de-revista que, em vez de acabar na igreja, vai acabar no Fantástico, com direito a entrevista e bênção do Maurício Kubrusly.

O livro? Você há de escrevê-lo meses depois da lua de mel em Paris – contando todos os detalhes deliciosamente sórdidos do seu joyeux nouvel an.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Lobo Mau contra o Natal

O bonde do João Luiz parece não ter freio. Mais conhecido na Vila Operária dos Três Porquinhos como Lobão, o sujeito agora deu de agendar passeata na Paulista toda semana. Dizem as boas línguas que o muso das vovozinhas paulistanas adorou esse negócio de subir no trio elétrico e – num oferecimento da Sociedade Protetora dos Tucanos – discursar sobre ornitologia para quinhentas pessoas. Há milênios um “show” dele não juntava tanta gente.

Mas se engana quem acha que o mais recente rolezinho gourmet sob o Masp – que acontecerá no próximo dia 25 – terá outra vez como tema o fora-Dilma ou o fora-PT. A coisa é muito mais séria dessa vez. De abalar as estruturas do capitalismo selvagem. O motivo da nova manifestação é o impeachment imediato do Papai Noel. Você não leu errado: querem tirar o Bom Velhinho de seu cargo eterno-perpétuo-forever-and-ever.

Os lobistas da bancada da moda defendem o golpe com a justificativa de que enjoaram do vermelho. Os da ala autointitulada mais moderada apelam para o argumento da alternância de poder; reclamam que o Seu Claus manda e desmanda na distribuição mundial de brinquedos desde o tempo em que a criançada se contentava com um pião de madeira sem wi-fi. Já a turma dos direitos humanos, animais e élficos – embasada em relatório da ONG Noite Feliz para Todos – exige o fim do trabalho escravo de renas e duendes.

Os mais extremistas, por sua vez, temem que, não satisfeito com todo o poder que carrega naquele saco, Noel ainda exija do governo uma boa colocação na futura diretoria da Petrobras e assim – com o auxílio de alguns petrodólares – amplie seus programas sociais, como o bem-sucedido Bolsa-Lembrancinha, que tem feito a alegria de milhões de meninos e meninas carentes mundo afora.

“Não tem que sair por aí dando presentes; tem que ensinar a garotada a comprá-los nas lojas mais caras do ramo”, explica o velho Lobo (que não é o Zagallo).

Diante dessa ceia afarturada de sandices, resta àqueles que ainda acreditam no espírito natalino protestar – jinglebelicamente se necessário – contra as atitudes do Seu João Luiz e de sua alcateia clausfóbica. Como? Montando árvore na sala, pendurando meias e pisca-piscas nas janelas, botando guirlanda na porta. Vale também continuar enviando cartinhas, e-mails, torpedos e afins para o Polo Norte. Não é bom deixar que o carteiro deslembre o endereço da Natalândia.

Afinal, não desejamos que Noel e seus fiéis ajudantes sejam esquecidos e acabem como certa Chapeuzinho: na barriga de um lobo faminto de holofotes.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Por uma vida sustentável

Um atraso de cinco minutos e ele (ou ela) já se irrita. Franze a testa, torce o nariz, enche o peito, mexe a cintura, cruza os braços, bate o pé. Faz praticamente uma sessão de lambaeróbica só porque você levou tempo demais calçando os sapatos ou estacionando o carro. Antes fizesse regularmente lamba, funk, sertanejoaeróbica até – qualquer coisa que liberasse a endorfina represada e poupasse o mundo de seus pitis de alto impacto.
                 
Ô, campeão (ou campeã), negócio é o seguinte: não dê tanta importância a faltinha boba, passe lateral, chute sem direção. Nenhum desses lances vai entrar nos melhores (nem nos piores) momentos da partida. Muito menos vão aparecer naquela retrô de fim de ano apresentada pelo Chapelin. Portanto, não desperdice músculos, neurônios e principalmente segundos – seus e dos outros – com bobagices.

Não gaste seu sistema Cantareira com aquele quadrinho que jamais descansará na posição certa; com aquela garoa que cai sempre na hora errada; com aquele arroz à grega que mais parece um panetone de tanta passa; com aquela prova de resistência coronariana que é marcar a consulta no cardiologista; com aquele celular que sofre da síndrome do telefone fixo, e só funciona na tomada; com aquela vizinha que insiste em redecorar a sala diariamente (e, para isso, arrasta sofá, estante...); com aquele tio carente que costuma ligar assim que começa o último capítulo da novela.

Com aquele coleguinha que, de boca fechada, é a estátua do Drummond.

Só consuma seu reservatório – e aí vale chegar ao volume morto – em caso de beijo apaixonado no amor da sua vida; abraço apertado nos pais; faxina no apê para receber a moçada; preparativos para festa de qualquer espécie; campanha para candidato ficha limpa; montagem de árvore de Natal; escolha do presente perfeito para o amigo oculto; sapatinhos de crochê para bebês em geral; fila sob chuva para show do Paul McCartney; curso rápido de francês para conhecer Paris sem guia; peregrinação por TODAS as atrações do Magic Kingdom antes dos fogos de artifício.

Se não for para esgotar corpitcho e mente com atividades desse tipo – que dão prazer a você e/ou aos outros, que tornam este planetinha um lugar ligeiramente mais habitável que os desertos marcianos –, o melhor a fazer, então, é seguir o exemplo das sábias tartarugas de Galápagos: economizar energia e viver duzentos anos.

Talvez seja tempo suficiente para abastecer o coração de sentimentos potáveis.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Cheia de vontades

Assim era a bolsa amarela onde Raquel – personagem do clássico romance de Lygia Bojunga – guardava cada uma delas. Três eram as que mais estufavam seu tecido: a vontade de crescer logo, a de ter nascido garoto e a de escrever. Com o tempo, as duas primeiras emagreceram, voaram feito pipa e a deixaram mais leve. A terceira, por sua vez, continuou imensa; mas, como a menina inventava uma história atrás da outra, não dava chance de o desejo engordar em excesso e pesar demais.

Dessas vontades, a de crescer eu nunca tive. Aliás, sigo não tendo. Os Mickeys que insistem em se multiplicar pela casa não me deixam mentir. Já a vontade de ser (no meu caso) menina talvez tenha ganhado um miligrama quando me disseram que eu, por ser homenzinho, seria obrigado a servir o Exército e comer comida que não a da mamãe. Por sorte, sobrei no alistamento – e a Fernanda respirou aliviada. Quanto à vontade de escrever, essa eu controlo com a dieta de crônicas que meus treze leitores conhecem bem.

Mas se engana quem pensa que minhas vontades param por aí: tem a de chafurdar no sorvete, que só diminui quando aumenta a glicose; a de sair viajando pelo mundo, que só esvazia quando esvazia o bolso junto; a de não fazer a cama quando acordo, em geral menor que a de ver a colcha impecavelmente esticada; a de transferir para a segunda todo feriado que caia no finde (um desejo platônico, admito); a de levar uma vida menos sedentária – vontade superfácil de manter em forma, já que dá e passa no primeiro sofá.

Em suma, carregar a bolsa nossa de todo dia nem megacheia, nem ultravazia é um baita desafio. Às vezes é difícil achar a medida certa. A gente pena até acertar na dose dos quereres e acaba desenvolvendo uma lordose de culpa aqui (por ter cedido a essa ou àquela vontade), uma escoliose de remorso acolá (por não ter). Felizmente, porém, o passar dos anos, a despeito das osteoporoses físicas, nos ensina que – com um dorflex de boa vontade e exercícios regulares de bom humor – a missão é possível.

A coluna agradece.

O problema é que nem sempre as pessoas conseguem atingir esse equilíbrio. Falta-lhes a postura de quem tem vontade – de aprender. Um breve passeio por aeroportos e afins controlados pela Agência Nacional de Metáforas, e o que mais se vê é passageiro na fila da Receita pagando excesso de bagagem. Não, não estou falando daquele povo que chega de Miami com duas dúzias de Azzaros e dez pares do mesmo Nike jurando que é tudo pra uso pessoal.

Falo dos que abarrotam suas bolsas das piores vontades e de lá não as tiram nem sob risco de condenação por tráfico de drogas. Falo dos que enchem a sacola alheia com sua vontade de discriminar quem usa o aparelho excretor para o número três; de disparar intolerância na direção de quem resolveu votar no vermelho e não no azul; de compartilhar ignorância com os que estão à sua volta apenas para ganhar quinze curtidas de fama.

Todos quasímodos de tanto arrastar por aí capangas atochadas de má vontade. Má vontade com a leitura para além das manchetes, má vontade com o estudo para além dos prefácios. Por sinal, leitura e estudo deveriam ser itens indispensáveis a qualquer carteira, valise ou mochila que levássemos mundo afora – fosse ela verde, abóbora ou lilás, com uma ou duzentas divisões internas, com ou sem segredo, made in China ou Chanel. Ambos são imprescindivelmente úteis e não pesam quase nada.

Como o rolinho de Neve que socamos no fundo da bolsa – pra hora em que dá aquela vontade.

domingo, 30 de novembro de 2014

De volta às famigeradas

Mês da Consciência Negra e eu acabei revisitando um texto meu antigo, lá dos confins de 2012, que tratava das cotas raciais e cujo título era “Famigeradas”. Em poucas linhas, minha edição dois anos mais jovem (e ainda mal revisada) mostrava toda a sua indignação com a adoção de políticas de reserva de vagas para garantir o acesso de negros e pardos a instituições de ensino superior.

Acusava o Estado de remediar décadas – senão séculos – de omissão com um paliativo. Sem uma notinha de vergonha no rodapé, criticava o governo por dar mais chances ao “bacuri” (sic) que tivera a infelicidade de nascer numa comunidade carente – de saneamento, escola, hospital, paz, lazer –, mas a felicidade de ser mais corado que o vizinho.

Sugeria ainda – ironicamente, claro – que as cotas extrapolassem a senzala das raças e se expandissem por outras casas-grandes, como o Congresso Nacional: “Que tal uma reserva de vagas para políticos honestos? Quem sabe assim um dia tenhamos representantes dispostos a tratar as causas da nossa miséria, e não apenas preocupados em mal administrar suas consequências”.

Era ou não era um raciocínio de ostra ao contrário? Daquele tipo que, em vez de produzir algo belo a partir de uma ferida, gesta preconceitos porque nunca os sofreu na pele?

Anos (e, especialmente, algumas leituras) depois, revi minhas ideias. Não dava mais para tolerar uma universidade formada majoritariamente por brancos, ainda mais num país em que negros e pardos são a maioria e a miscigenação é regra. Era preciso (re)aproximar o significante de seu significado: universidade, característica do que é universal. Era urgente tornar aquele espaço mais plural, mais representativo de nossa realidade. 

Como sublinha o mestrando em Direito João Telésforo, “trazer a diversidade de mundos sociais existentes para dentro da universidade é fundamental para que ela se abra [...] e seja capaz de inovar; onde há diversidade, há muito maior tendência à criatividade. Ademais, a inclusão dos ‘instrangeiros’ [“estrangeiros” dentro do ambiente acadêmico] poderia incentivar a produção de conhecimentos e a formação de pessoas [...] mais responsivas às demandas e aos problemas dos setores excluídos e pouco ouvidos de nossa sociedade”. [1]

Por isso – por acreditar nessa necessidade de se estimular a produção de outras perspectivas (ou das perspectivas do outro) –, a nova edição de mim mesmo ganhou um capítulo extra, no qual é defendida a política de cotas inclusive para a pós-graduação. Segundo Pedro Augusto Brandão, no caso das faculdades de Direito – área em que é doutorando –, é importantíssima “a formação de pesquisadores alinhados com temas tradicionalmente invisíveis da área jurídica”.

Somente assim, continua Pedro, “os atores sociais envolvidos nas lutas por reconhecimento estarão diretamente envolvidos nas pesquisas jurídicas. De objeto de pesquisa, poderão passar a sujeitos protagonistas das investigações acadêmicas”. Desse modo, terão a oportunidade de dar voz a “compreensões de mundo historicamente marginalizadas, como o conhecimento popular, a cosmovisão indígena e a cultura negra”. [2]

A esta altura, alguém há de ter esperneado que cotistas contribuem apenas para a queda da qualidade do ensino. Não é bem assim: estudos recentes feitos pela Universidade de Brasília (UnB), primeira federal a adotar as cotas, apontam que não há diferença expressiva entre as notas de formandos cotistas e não cotistas. De acordo com Mauro Rabelo, decano da instituição, uma explicação para esse fenômeno seria o estímulo aos alunos que ainda estão na educação básica. Ao verem uma chance real de ingresso na universidade, eles passariam a se dedicar mais. [3]

É evidente, no entanto, que apenas a reserva de vagas no ensino superior (não só para negros e pardos, mas também para indígenas e alunos de escolas públicas) não transformará o Brasil na Disneylândia da igualdade social. Melhorar a educação básica – que engloba os níveis infantil, fundamental e médio –, valorizando essencialmente seus professores, é condição igualmente imprescindível para que um dia tal paliativo não seja mais necessário.

E todos – realmente todos, sejam pretos ou brancos, pobres ou ricos – tenham as mesmas possibilidades de inserção na sociedade.

domingo, 23 de novembro de 2014

Macho men

E não é que as fabiofobias – os medinhos e medões que listei na crônica de mesmo nome – deram pano pra mais umas linhas?

Leitores integrantes do MMMM (o Movimento dos Machos com M Maiúsculo) me repreenderam na última semana por expor minhas fragilidades ao mundo. Isso não é coisa que se diga além de quatro paredes, bradou um. Guarde essas histórias pra sacada do seu apê, berrou o outro. Assim você acaba com nossa fama de mau, protestou um terceiro. Macho que é macho não fala dos medos, mas os supera sem falar, ensinou um quarto. Houve até quem cismasse com minhas escolhas vocabulares: horror?! arrepio?! isso é palavra que homem use?

Só faltou eu ser atacado pela Sociedade Protetora das Lagartixas. Quer dizer, não faltou: lagartixas se alimentam de insetos, inclusive do Aedes aegypti, trate-as bem!

Às respostas.

Queridos um e outro, como não vivemos numa ditadura comunista cubana gayzista bolivariana soviética com viés árabe kamikaze – ao contrário do que alguns héteros paulistas acreditam –, tenho liberdade de revelar o que eu quiser além de quatro paredes, desde que não ofenda o vizinho. A não ser que minhas cuecas recém-lavadas, devidamente “guardadas” na sacada do apê enquanto não secam, estejam ofendendo a senhorinha do 602. Será? Uma coisa eu garanto: até hoje ninguém se pronunciou sobre o assunto nas reuniões de condomínio.

Caríssimos terceiro e quarto, eu jamais me daria ao trabalho de acabar com a fama de mau do Homem Que É Homem – ou HQEH, como genialmente siglava o Verissimo. Os tempos são outros, e o que vocês chamam de “fama de mau” já virou “má fama” há séculos. É só dar um Google: as mulheres agora querem os caras sensíveis, especialmente aqueles que são machos (e seguros) o suficiente para falar dos seus medos. (Quanto a superá-los, aí é outra história. Aliás, quem criou a Lei De Que Todo O Medo Deve Ser Obrigatoriamente Superado? Se não atrapalha sua vida, se você aprendeu a conviver com ele, já é um vitorioso. Meus-pa-ra-béns.)

Ao estimado fiscal do vocabulário alheio: palavra pode até ter gênero, mas não é propriedade exclusiva de um dos sexos. Além do mais, a língua, cada um a usa como bem entender. Believe me: um pouco de inspiração, muitíssimo de transpiração, e os usos se mostram infinitos. O importante não é de que boca a língua sai – se masculina ou feminina –, mas o prazer que ela proporciona ao entrar nos ouvidos.

Por fim, meus sinceros pedidos de desculpa à excelentíssima Sociedade Protetora das Lagartixas. Jamais foi minha intenção incentivar o extermínio das cujas. Sei que elas comem mosquitos, inclusive os da dengue. Mas que façam sua refeição bem longe da minha varanda. Também não quero estimular a extinção das onças. Mas se uma aparecer aqui em casa – o Ibama que me perdoe –, só não vai levar bala porque sou da paz e ando desarmado.

Mentira: é que tenho horror a qualquer arma (de fogo então...). Basta eu ouvir um estampido – a não ser no cinema, claro – que já me sobe aquele arrepio.

domingo, 16 de novembro de 2014

Fabiofobias

Deu uma vontade inexplicável de listar meus medos: os eternos, os temporários, os sérios, os bobinhos, os que me fazem parar, os que me fazem seguir. Alguns são tão óbvios e me causam tamanho pavor – o medo da morte, por exemplo – que não merecem meia cova. É melhor fingir que não existem; se por acaso derem o ar da desgraça, o jeito é não ter medo – de fugir. É o que faço. Corro pra bem longe.

Só não quero ficar longe de quem gosto. Nem pensar. A distância é outro medo eterno e sério. Daqueles que só fazem uma crônica mais cinzenta do que deveria. Mais colorido lembrar o medo da comida japonesa, já superado com os devidos sushis e sashimis; da cabeleira selvagem do Caetano tropicalista, felizmente há muito substituída por fios grisalhos e comportados, bem menos assustadores (ou não); do Baixo Astral, o vilãozão interpretado por Guilherme Karan num filme da Xuxa.

Também tenho medo de passar a vida inteira e não rabiscar uma obra-prima, mesmo que prima em terceiro ou quarto grau: pode ser literatura, cinema, tevê. Pode ter 140 caracteres. Pode ser um videozinho mambembe feito com a câmera do celular, um flagrante como o daquela japinha descobrindo a chuva. Se tiver poesia, já está valendo – valendo, quem sabe, um sofá do Jô.

Os sonhos ridículos, deixemos de lado. Porque o assunto aqui são os medos. Meu medo cotidianíssimo dos livros com erro na orelha, de gente que não dá bom dia a porteiro, do juiz que vai apitar o próximo jogo do Vasco, do metrô sardinhamente cheio na hora do rush. Claro, tenho também aqueles medos mais coletivos, compartilhados com boa parte da humanidade: o medo dos políticos que confundem o público com a privada e guardam dinheiro na cueca; dos binladens que ameaçam a paz mundial; das catástrofes provocadas pelo aquecimento global; dos figurinos da Lady Gaga.

Medo de comunista? Não. Esse eu deixo pro Lobão e a pauliceia desvairada dos Jardins.

Mas verdade seja dita: nenhum desses medos é tão forte quanto o horror que tenho das lagartixas tamanho GG (Godzilla ao quadrado) que fazem da varanda aqui de casa seu Parque dos Dinossauros. Só de pensar naquelas black blocs frias e rastejantes saindo de seus covis no cair da noite pra vandalizar meus nervos, já sobe aquele arrepio.

domingo, 9 de novembro de 2014

Notas saltimbancas

Ói nós aqui
Respeitável público acima dos trinta anos: não morra de inveja; mas faça a gentileza de ter ao menos uma quedinha de pressão. Este que vos rabisca semanalmente deu uma pausa nas cotidianices para reverenciar de perto, pertíssimo – a coisa de cinco metros – Didi, Dedé e os Saltimbancos Trapalhões, em cartaz na Cidade das Artes, aqui no Rio.

Uma pirueta
A peça, fabuloso xanadu produzido por Charles Möeller e Claudio Botelho, é de fazer o coração mais molenga dar ultrapiruetas. A primeira já acontece no iniciozinho, quando a silhueta do icônico personagem de Renato Aragão surge na cortina. Sobe o véu, some a (sombra de) dúvida. É ele mesmo: Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo.

Muitas piruetas
Inúmeras piruetas dignas de bravo (bravo!) se espalham pelas quase duas horas de espetáculo, como a saudosa interação entre Didi e Dedé, sempre escadamente generoso ao “sofrer” as piadas do amigo; as divertidas interpretações de Adriana Garambone para a vilã Tigrana e de Roberto Guilherme para o Sargento Pincel, digo, o Barão; o figurino coloridamente retirado de uma caixa de bonecas; o (sonho-de-)cenário grandiosamente circense, com destaque para os leões gigantes; além, claro, das polipiruetas propriamente ditas, encenadas por acrobatas de carne, osso e borracha.

Superpirueta
Talvez a maior delas ocorra quando Didi (ou Renato, sei lá) cita os stents que teve de colocar recentemente para impedir o entupimento de uma artéria. Ô da poltrona: como não tirar um ou dois psits dos olhos ao se dar conta de que se está diante de um senhor de quase oitenta anos – ídolo na tevê, campeão de bilheteria no cinema – estreando no teatro, (re)nascendo portanto num novo picadeiro?

O grande malandro da praça
É impressão minha ou as canções clássicas (re)criadas por Chico Buarque para as versões brasileiras do musical de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov (a dos palcos e a das telas) tomam regularmente o elixir da juventude? Mais que oportuno revisitá-las agora, neste momento (ainda) eleitoral, já que faz pouquíssimo tempo que Chico, um de nossos maiores artistas, foi crucificado nas redes sociais apenas por ter declarado voto em Dilma – a ponto de certo colunista promover até campanha de boicote ao poeta, suposto representante de uma tal “esquerda caviar”.

Os versos buarqueanos dão sempre um rabo de arraia e inteligência nesses tubarões da imbecilidade.

O pessoal delira
Momento coxinha da noite: a piadinha de Didi “mais vale um feio na mão do que dois bonitos se beijando” foi uma das mais aplaudidas pela plateia, composta em sua maioria por famílias héteras da classe média carioca.

Pano rápido.

domingo, 2 de novembro de 2014

Separações

Foi acabarem as eleições para o mantra se espalhar: o país está dividido. Entre norte e sul, pobres e ricos, negros e brancos, homos e héteros, comunas e milicos, progressistas e conservadores, canhotos e destros, jedis e siths, madrugas e florindas, ivetes e claudinhas, flas e flus. Houve até quem dissesse que toda essa polarização teria sido promovida – senão inventada – pelo partido que nos governa faz mais de uma década.

Que me perdoem os que defendem essa ideia: mas vocês já ouviram falar num aplicativo moderníssimo chamado livro de História?

Basta abrir suas páginas para acessar os arquivos que mostram o quanto temos sofrido com o vírus da divisão há aproximadamente cinco séculos. Que tal um clique no capítulo senhores versus escravos? Um passeio rápido pelas plantações de cana-de-açúcar de mil quinhentos e senzala, especialmente se guiado por um gentil capitão do mato, revelará o quão doce e bucólica era a vida no engenho.

Só que não.

Um só-que-não que continuou por vários capítulos, mesmo depois da Lei Áurea. Ou as vejetes de plantão acham que os negros – enfim livres, mas apenas no papel – deixaram as fazendas de seus donos rumo a algum condomínio de luxo na Barra, a alguma mansão no Morumbi? (O pior é que acham; e ainda acreditam que eles vão muito-bem-obrigado, principalmente por serem quase tratados como um membro da família.)

O que aconteceu, sobretudo nos últimos dez anos, graças a programas de transferência de renda como o famigerado Bolsa Família, é que a desigualdade entre os polos diminuiu: aquela maria que ficava encolhidamente agradecida no seu quartinho passou a frequentar salões até há pouco tempo exclusivos das madames e de sua prole, como as escolas, as universidades e – ousadia máxima – os aeroportos.

E é esse encontro inesperado em determinadas áreas VIPs da sociedade que tem causado reações invariavelmente estúpidas de parte da população, inconformada com a ascensão social alheia; população essa que – representada por certos colunistas irresponsavelmente “polêmicos” – chegou a sugerir a separação do território nacional em dois: um com o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste “esclarecidos”, “modernos”, e outro com o Norte e o Nordeste “desinformados”, “retrógrados”.

Aí eu pergunto: será mesmo que é o grupo político há doze anos no poder quem tem estimulado essa luta de classes com ares de game show? Ou hoje nossos preconceitos seculares estão apenas mais evidentes, o que provoca essa sensação de eterno Grenal? O que eu sei é que, ao menor sinal de preconceito (seja de classe, cor, gênero, região), à mais covarde faísca de intolerância, as pessoas felizmente têm reagido como nunca antes na história deste país – e isso acaba gerando um quadro de aparente mais-polarização.

Em outras palavras, o Brasil está tão dividido quanto sempre esteve; a diferença é que agora a ferida está mais exposta.

domingo, 26 de outubro de 2014

Dó ré mi

Sabe aquele filme que te deixa com vontade de puxar uns transeuntes no meio da rua e improvisar uma coreô à GreaseÉ o caso da fofice musical a que assisti recentemente no Festival do Rio: God help the girl, escrita e dirigida por Stuart Murdoch, fundador da banda escocesa Belle & Sebastian. O longa acompanha as desventuras de Eve (Emily Browning), James (Olly Alexander) e Cassie (Hannah Murray), amigos em meio à travessia entre a adolescência e a vida adulta.

Embalada pelas canções que Eve rabisca enquanto dribla a anorexia, essa travessia tem seu refrão quando o trio embarca numa canoa para explorar um rio nos arredores de Glasgow, onde vivem. Graças à delicadeza da sequência (delicadeza essa que se espalha por toda a fita), o que poderia soar como metáfora-de-uma-nota-só se revela uma suíte perfeita das vozes que compõem a sinfonia da juventude: sonhos, inseguranças e descobertas.

Sonhos como o de formar um conjunto – o que àquela altura parece rimar com a realidade, especialmente quando a só aparentemente distraída Cassie observa que, se eles remam juntos, já são uma banda. Somos mesmo? Ou somos apenas três pessoas num barco? É o que de repente se pergunta o tímido e inseguro James, que ao fim do passeio é surpreendido por um beijo de Eve. Doce descoberta.

Tão doces quanto divertidos são os acordes de humor que se misturam aos agudos e graves da mocidade. Impossível não rir da "destreza" de James à beira da piscina, em seu trabalho de salva-vidas; ou do comentário de Cassie relacionando os finais felizes de filmes e livros à possibilidade de Eve e James não terminarem juntos; ou, o melhor, da referência hilária ao clássico A noviça rebelde – concluída nos créditos finais, que citam uma tal personagem Julie Andrews.

Finalmente, se não bastassem um roteiro que em geral não desafina (a não ser, talvez, pela aparição de um deus ex machina que banca a cabelereira nas horas de folga) e a trilha que ecoa a suavidade indie-pop de Belle & Sebastian, o fotógrafo Giles Nuttgens ainda nos encanta com enquadramentos cheios de cor e significado, como o que mostra os três companheiros numa praça, cada qual num aparelho de exercício, discutindo música; ou o que traz Anton, líder bonitão da banda Wobbly-Legged Rat, ao lado de um manequim que guarda com ele semelhança que não é mera coincidência.

(Coincidência mesmo – só que não – é eu estar diante da Fernanda ensaiando uma dancinha à John Travolta e cantarolando “Summer nights”: tell me more, tell me more.)

domingo, 19 de outubro de 2014

Armação ilimitada

Façamos um breve exercício de ficção: se de repente a Globo resolvesse produzir um seriado levemente inspirado nas eleições presidenciais, certamente chamaria o Bruno Gagliasso para viver o Aécio e a Valéria do Zorra para interpretar a Dilma. Chamaria também a Fernanda Montenegro para uma participação especialíssima, no papel de Fernando Henrique Cardoso.

O Lula talvez acabasse nas mãos do Tom Cavalcante, que ressuscitaria seu célebre João Canabrava. Apareceria sempre no mesmo boteco suburbano-estilizado, tipo a pastelaria do Beiçola da Grande Família, rodeado de seus cumpanheiro de cachaça e biriba – devidamente uniformizados pelos figurinistas com camisetas do Curíntia e aquelas máscaras dos Irmãos Metralha.

Do outro lado do Projac, uma mansão paulistamente quatrocentona, já usada em alguma novela do Silvio de Abreu, serviria de cenário para os coadjuvantes alvos, héteros e de moral ilibada do heroíno tucano. Cumprindo a cota de atores negros no núcleo rico, a empregadinha Marina de Fátima, que não mediria esforços para engravidar do filho do patrão e diminuir a desigualdade social entre sua família e a dele.

A direção de arte se inspiraria em filmes-catástrofe e distópicos: pobres e mais pobres enchendo de iogurte os carrinhos nos supermercados; pobres e mais pobres invadindo os aeroportos para visitar familiares em Campina Grande e Caruaru; pobres e mais pobres (inclusive as primas de Marina) cursando as mesmas universidades dos sobrinhos da família Neves.

Um autêntico apocalipse classecê – hordas e mais hordas de novos consumidores.

Quanto à trilha sonora, não poderia soar mais óbvia: Tina Turner e seu clássico “The best” para cada olhar 45 do netinho de Tancredo; Rita Lee e sua venenosa “Erva” para cada como-eu-tô-bandida da atual presidente; Cazuza e sua panfletária “Brasil” para a abertura. Qual é o teu negócio? O nome do teu sócio? Não sei e não sei; só sei que ele pagou propina ao PT, revelaria um figurante sem se identificar.

Nos últimos episódios, para alavancar ainda mais a audiência, o tradicional quem-matou: a vítima, um famoso jornalista de oposição que, inadvertida e neoliberalmente, denunciou as sessões de degustação de caviar no pé-sujo frequentado por Luís Inácio e seus red caps. O corpo do sujeito seria encontrado ao lado de uma foice, um martelo e o Corão – o que tornaria Dona Rousseff a principal suspeita do homicídio.

Afinal, as provas achadas na cena do crime só reforçariam os boatos de que a anti-heroína teria estreitado relações com o Estado Islâmico para instaurar – em caso de vitória nas eleições – uma ditadura comunista-bolivariana-com-viés-árabe-kamikaze, cujas primeiras medidas seriam o fechamento imediato de todos os McDonald’s e o cancelamento sumário de todas as viagens com destino a Miami, Orlando e Nova York.

(Fonte segura acaba de me informar que essa sinopse existe e já recebeu a bênção de um dos cardeais da emissora: é Ibope garantido, teria dito o chefão. Sem margem de erro.)

domingo, 12 de outubro de 2014

Aquarela

Não sei vocês, mas sempre que invento de arrumar aquela estante que suporta mais livros do que a física acredita, encontro motivo para adiar a faxina. Desta vez, foi um livrão de capa colorida e rostos conhecidos: Charlie Brown, Manda-Chuva, os Flintstones, os Jetsons, Tom & Jerry e outros tantos superamigos. Saudade deles. Saudade que me fez garimpar um cantinho de tempo para folhear página por página do Animaq: almanaque dos desenhos animados (Matrix, 2010), de Paulo Gustavo Pereira.

Quem um dia se divertiu com as travessuras do Pica-Pau, acompanhou Scooby e sua turma desmascarando fantasmas nada sobrenaturais ou já se imaginou pilotando o Mach 5 certamente vai adorar essa antologia, que reúne zilhares de madeleines do mundo da animação. Uma verdadeira corrida maluca, que começa nos anos 1930, com o charme da provocante Betty Boop, e vai até o melhor desenho de todos os tempos da última semana, que pode ser o Ben 10 ou qualquer outro animê legitimamente norte-americano.

Uma delícia reencontrar Eric, Hank, Diana, Sheila, Presto e Bobby (ainda) perdidos na Caverna do Dragão; o lalalalá dos Smurfs azucrinando Gargamel; Zé Colmeia e Catatau surrupiando cestas de piquenique em Jellystone; o (nada) bom e (muitíssimo) velho Mum-Rá evocando antigos espíritos do mal a transformar aquela forma decadente no ser de vida eterna.

(Tudo isso enquanto o He-Man dançava um rock gravado por Tom Jobim e a She-Ra namorava o Esqueleto no jardim.)

Tempos bons que invariavelmente voltam quando a gente resolve embarcar numa aventura à Ducktales (uh-uh!) e desenterrar aquelas moedinhas que ficam mais valiosas com o passar dos anos, tesouros como o timing cômico da dupla Papa-Léguas/Coiote; a ironia de cada “que que há, velhinho?” do Pernalonga; e as altas viagens que os Muppet Babies faziam – sem sair do quarto – até que a Babá (só as pernas dela, é verdade) aparecesse e perguntasse “Is everything all right in here?”. Yes, Nanny.

E, se o leitor pensa que that’s all, folks, está ligeirinhamente enganado. O Animaq é um universo de mais de trezentas páginas, e nele habitam ainda o reino de Dar-Shan, o humor de Springfield, os dentões da Mônica, a lendária Flor das Sete Cores e um carregamento vitalício de latinhas de espinafre – além de mil e uma histórias de um lugar que não cabe numa folha qualquer, que não se faz apenas com cinco ou seis retas.

Um lugar que, contrariando a famosa letra de Toquinho, jamais descolorirá.

domingo, 5 de outubro de 2014

Vai rolar a festa

Hoje vota o amigo que não discute política porque é inútil. Também vota o tio que não abre a boca de urna porque não ganha um centavo pra isso. Vota ainda a madame que não liga pro fato de o Brasil ter deixado o mapa mundial da fome; o que a preocupa realmente, e a faz clamar por mudanças já, é a inflação dos últimos meses, que elevou a níveis indigestos o preço do brie na Lidador.

Fico me perguntando, com direito a réplica e tréplica, a quem interessa esse papo-zumbi de que discutir política – algo que nos afeta diretamente – não leva a lugar algum. Talvez interesse a quem lucra dividendos no Ibope; a quem capitaliza os mortos-vivos que desperdiçam o horário nobre de suas vidas analisando que candidato a Tarcisão tem mais chances de ser eleito no coração da Glorinha.

Quem não lucra, não capitaliza, não tira um bolsa-família nem de meio debate entre odoricos e paraguaçus é o tio. Por isso ele não se mete em propaganda gratuita. Aliás, não se mete em nada que não renda ao menos uma comissão (a cervejinha ele dispensa, já que é evangélico praticante). Em outras bravatas: o tio só sobe no palanque para discursar seus entretantos e finalmentes se rolar aquele mensalinho básico.

Bem diferente da madame, que gosta tanto de subir – no salto – que o faz até de graça. Desde, claro, que o calçado seja Chanel ou Louis Vuitton, de preferência garimpado num outlet em Miami. Pois é ela vestir seus pezinhos de Cinderela da Barra da Tijuca que começa a protestar: especialmente contra o fato de ter que dividir a fila do check-in no aeroporto com a própria empregada.

Não bastasse receber vale-transporte, hora extra e décimo terceiro, agora ela quer viajar de avião – e sentar na janela. Vê se pode.

Pode. Yes, they can. Podem tanto quanto o amigo que só quer saber de novela: das seis, das sete, das nove, do Viva. Podem tanto quanto o tio que só quer saber de cachê: não importa de que propinoduto ele venha. Podem tanto quanto a madame que só quer saber do próprio umbigo, recauchutado em doze vezes: onde talvez só caiba o condomínio de classe média no qual sobrevive a duras plumas.

Neste domingo de eleições, da chamada festa da democracia, todo mundo pode. Inclusive esses três – que, espero, sejam minoria no salão.

domingo, 28 de setembro de 2014

Zona eleitoral

Que o horário político é um prato cheio de promessas vazias, qualquer um com mais de oito bits de memória sabe. Até o leitor daquela revista cujo nome é o verbo ver na terceira pessoa do imperialismo afirmativo. Ainda assim, mesmo correndo o risco de ser vencido pela indigestão logo no primeiro turno, não resisto a uma provinha dessa iguaria típica, servida gratuitamente ao povo brasileiro a cada dois anos.

Falando em iguaria, me causou uma azia danada topar com um candidato que, na tentativa de se tornar mais conhecido, espalhou uma enquete sobre qual o seu doce favorito para o lanchinho da tarde: pé de moleque, pudim ou goiabada com queijo? Peraí. Como é que alguém pode sacrificar o voto por um sujeito que não põe sorvete de flocos ou bolo de rolo nem no top três?

E eu achando que surreal era o Rio ser governado mais quatro anos pelo Pé Grande.

Grande, aliás, tem sido o número de candidatos defendendo a família, os bons costumes e a intervenção do Estado na poupança dos cidadãos. Há quem julgue necessária até uma ocupação militar nessa região mais vulnerável ao fluxo de (pecados) capitais. Fuja desses malafaias. Caso contrário, não restará cofrinho livre de confisco – e o Banco Central se converterá na única coisa, por estas bundas, com alguma autonomia.

Palavra bonita essa: autonomia. Quem gosta muito dela é uma das presidenciáveis, famosa por ser mais flutuante do que o câmbio. Já perdi a conta de quantas vezes a ex-ministra mudou de ideia sobre o casamento gay nos últimos cinco minutos. Fidelidade ali só ao coque. Por isso não me surpreende que ela sugira tantos plebiscitos; e que venha a criar, caso eleita, o Mais Plebiscitos.

Um deles bem que poderia tratar da famigerada meritocracia. Não tem faltado candidato por aí enchendo a boca de Cinicol Plax para dizer que o regime de metas e a remuneração por produtividade melhoraram a educação no estado A e a saúde no município B. Que tal, então, estender esse modelo de gestão tão bem-sucedido às assembleias legislativas, à Câmara, ao Senado e ao gabinete do Executivo?

Nossos nobres representantes teriam seus salários reduzidos ao piso do funcionalismo público (ao que ganha um professor ou um médico em início de carreira) e passariam a receber um bônus – um décimo quarto, por exemplo – se atingissem determinados índices acordados previamente, se cumprissem uma porcentagem mínima das promessas feitas por eles mesmos. Seria o Meritocracia para Todos.

Certeza de que um plebiscito desses – para implantar programa tão democrático – não precisaria de segundo turno. Confirma?

domingo, 21 de setembro de 2014

Sonho de uma noite de verão

E eu achando que ainda havia um William Wallace debaixo daquelas saias.

Juro por Paul (e John e George e Ringo): por um instante acreditei que a Escócia deixaria o Reino Unido e abriria uma vaga para o Brasil. Já tinha até marcado com meu neuro a cirurgia de inversão dos lados do cérebro. Queria estar o quanto antes pronto para a mão inglesa.

Não via a hora de trocar o relógio da Central pelo Big Ben e, por tabela, o atraso tipicamente carioca pela pontualidade britânica. Cansei de chamar os amigos para aquele churrasco de domingo e ouvir dos que só chegavam no fim da festa, bem depois da sobremesa, que preferiam a picanha malpassada.

Minha educação praticamente anglicana me impede de repetir o que eu dizia a eles.

Mary Poppins, culpada pelos meus bons modos, sugeriria sugarmente que eu voltasse ao delírio para contemplar a troca da Guarda – e da Rio-Niterói pela Tower Bridge; da Baía de Guanabara pelo Tâmisa; do Aterro pelo Hyde Park; da Praça Saens Peña, da Praça Varnhagem, da Praça é nossa pela Trafalgar Square. Viva o humor inglês.

Viva também o futebol inglês. Não o da seleção, mas o da Premier League. Estádios teatros, gramados tapetes, craques artistas. Um Brasileirão de Rolls-Royce, sem os flanelinhas da Cêbêefe. Só não sei ainda se meu coração vermelho-cruzmaltino combina mais com o red do Manchester, do Liverpool ou do Arsenal.

Sei é que o sonho não acabou: bastou eu tirar a dupla cidadania para receber uma cartinha de Hogwarts e ingressos para a próxima Copa de Quadribol. Pena que no caminho até King’s Cross topei com Jack o Estripador. Aí só me restou o papel de vítima em mais um caso de Sherlock Holmes.

Elementar, meu caro leitor: depois disso tudo, o imigrante aqui foi deportado de sua ilha da fantasia. Olhei pela janela – era a Tijuca de todos os dias. De todas as praças. Do busão que rasgava a rua fugindo dos passageiros, como era o costume. Não tinha dois andares nem a cor da cruz de São Jorge. Mas parecia estar a serviço de Sua Majestade. Levava nas costas um adesivo imensamente sugestivo: keep calm and carry on.

Voei para a cozinha e acendi o fogo. Precisava urgente de um Earl Grey.

domingo, 14 de setembro de 2014

Incêndios

Lá pelas tantas de Esperando Zilanda, romance de Tamara Sender (Annablume, 2010), Estela lembra ao amigo José, com quem fala apenas por e-mail, que ainda existem chamas no mundo; que edifícios – como o da repartição em que ela trabalhava – pegam fogo; que há por aí “labaredas, saídas de emergência, mãos dadas, lances de escada, alarmes e alardes, gritos, fumaça, tudo fora dos padrões comerciais”.

Autodeclarada bomba em caixa de fósforos, Estela/estrela é dessas chamas: faísca num firmamento afogado em cinzas.

Numa época em que não se comover com os discursos do papa, o PIB da Suazilândia e as eleições nas Ilhas Maurício pode soar como pirraça ou indolência, ela foge sem cerimônia da voz do William Bonner. Não quer ouvir o Jornal Nacional. Simplesmente não quer. Prefere jornais velhos e cafés frios.

Enquanto os outdoors do senso comum enaltecem a perseverança, o esforço e a superação – atitudes que para a moça só aumentariam nosso desgaste cognitivo –, ela defende a resignação como ato heroico. A desistência como gesto muito mais humilde. Nobre até. Não por acaso o fato de reconhecer a existência de “histórias magníficas de boicote a si mesmo” a leva a admitir que au-to-fla-ge-la-ção, “palavra de respeitosa divisão silábica”, poderia fazer parte de uma lista de vocábulos felizes.

Falando em lista, a de suas dificuldades para lidar com as coisas ditas mais simples vai longe. Contrariando as bulas de felicidade, Estela considera a gravidez uma invasão de privacidade e o contato diário/compulsório com seres humanos algo extremamente nocivo à saúde. Nada a deprime mais do que contribuir para a perpetuação da espécie. A não ser, talvez, uma praça de alimentação cheia de pessoas trocando presentes de Natal.

Ou a tevê ainda acesa no meio da madrugada. Olimpíadas ao vivo. A atleta com a tão sonhada e suada medalha de ouro no peito. A bandeira verde-amarela tremulando o hino nacional. Os locutores gritando Brasil mil vezes seguidas. Os recordes quebrados. As histórias edificantes. As gagueiras intencionais. Os infartos iminentes. E então Estela se pergunta: o que leva uma pessoa a dedicar a vida ao salto com vara?

Poucas vezes conheci protagonista tão deliciosamente desprovida de paciência para céus, luas, estrelas ou quaisquer grandiosidades e lirismos, o que explica, aliás, o desgosto que sente pelo próprio nome. Raras vezes encontrei narradora tão obstinadamente disposta a desarrumar – com tantas entrelinhas de ironia – o “ambiente de acontecimentos retumbantes” em que vivemos.

Logo, não surpreende que – apesar ou por causa dessa infinita disposição para a desordem – ela use o título de seu diário para sublinhar a rotina de esperar a empregada, aquela que vem toda semana para pôr as coisas no lugar, uma das poucas criaturas capazes de alertá-la para sutilezas da vida como o Vidrex: o Veja específico para limpar vidros e afins.

Surpreende menos ainda que cative o leitor – em especial aquele mais atento aos sinais de fumaça que escapam pelas frestas do noticiário, mais arredio ao mundo das exclamações pré-fabricadas – e o conduza sem alarmes ou alardes pelas páginas do nosso absurdo cotidiano. Onde quase sempre parecem faltar saídas de emergência.

domingo, 7 de setembro de 2014

O dia da dependência

Há seis anos escrevi um texto com o mesmo título. O blog era o Ultramuito, que ainda deve estar por aí, vagando morto-vivamente na rede. O Sete de Setembro também caía num domingo, e o blogueiro aqui reclamava do dia sem rodada do Brasileirão por causa do jogo da Seleção contra o Chile, pelas Eliminatórias da Copa. O técnico da vez – não, não estamos no set de Feitiço do tempo – era o Dunga.

Tentando fugir dos clichês verde-amarelos, eu aproveitava a data para listar as coisas das quais era dependente, das quais não conseguia me libertar nem com o grito do Ipiranga. O Campeonato Brasileiro era um deles – e continua sendo. A diferença é que agora, por força das circunstâncias cruzmaltinas, estou viciado numa gramita mais pesada, com estádios e jogadores muitas vezes reprovados pela Vigilância Sanitária da Fifa: a Série B.

Melhor mudar de erva, digo, de assunto.

Naquela crônica, eu lembrava ainda a dependência que sentia dos Beatles, das almôndegas preparadas pela mamãe, das doses semanais de cinema, das bobagens faladas com os amigos mais próximos, dos vídeos raríssimos assistidos no Youtube, das novidades de Orlando. Tais substâncias permanecem em minha dieta e delas dificilmente vou me livrar. Já as aceitei como temperos essenciais da vida e pretendo consumi-las até onde o fígado aguentar.

De outras, porém, finalmente bradei independência: da novela das oito, por exemplo. Afora o fato de agora ela ser das nove, não consigo mais me dedicar de corpo e neurônios a uma história que leva oito meses, seis dias por semana e mil e um lugares-comuns para chegar ao último capítulo com beijo técnico, casamento na Igreja de Nossa Senhora do Projac e criança recém-nascida de dez quilos, oitenta centímetros e diploma do Tablado.

Outra vitória pessoal, que exigiu muita perseverança e Rivotril, foi ter me curado definitivamente da compulsão pelas últimas notícias dos outros no Orkut. Atualmente, só trago – com moderação – o que compartilham no Face. Exceto, pleaaaaase, aqueles joguinhos para os quais os amiguinhos insistem em enviar convitinhos. Eles (os joguinhos, os convitinhos, os amiguinhos, não necessariamente nessa ordenzinha) dão uma raivinha que – que é mais saudável eu deixar pra lazinho.

Mas claro que nem tudo são abstinências e diminutivos. Há flores também, como a minha Fernanda, com quem casei faz quase três anos e de quem não desejo um segundo de privação. Dessa metrópole, aliás, a colônia localizada a oeste do meu peito não tem a menor intenção de declarar independência.

domingo, 31 de agosto de 2014

Tinha que ser o Chaves

Pois é, pois é, pois é. Foi só eu topar com uma enquetezinha boba – dessas que levam do nada a algum barril da memória – que me escapuliu aquela vontade nhonha de evitar a fadiga e esquecer a louça na pia. A pergunta do dia: é de groselha, limão ou tamarindo? Brincadeira. Ainda bem que o leitor tem paciência comigo; não tem? Sério agora. Queriam saber qual tinha sido o melhor episódio de todos os tempos da série criada por Roberto Gomes Bolaños.

Sem querer querendo, o site oferecia mais que uma xícara de reminiscências, e recordava pérolas (ou seriam carambolas?) que iam da viagem a Acapulco – com seu entardecer ninado pelos versos de “Boa noite, vizinhança” – ao cineminha com toda a turma da vila – episódio que popularizou o bordão “Teria sido melhor ver o filme do Pelé” –, passando por inúmeros outros clássicos.

Mas, como qualquer lista, essa também tinha ausências dignas de um ai-que-burro-dá-zero-pra-ele, ainda que citasse duas dezenas de histórias inesquecíveis. O povo dos comentários – em geral a gentalha da rede – dessa vez prestou um serviço do tamanho do Sr. Barriga ao lembrar, entre vários tesouros e loterias inacreditavelmente ignorados pela pesquisa, os espíritos zombeteiros, o julgamento do Chaves e os “higiênicos churros da Dona Florinda”.

Como esquecer a Bruxa do 71, digo, a Dona Clotilde incorporando a médium enquanto o Chaves puxava a toalha da mesa e o Quico batia a cabeça na porta, fazendo com que todos acreditassem que os mortos estavam de fato se manifestando? Ou o Chaves (olha ele, olha ele!) perguntando ao Professor Girafales pela enésima vez se este se referia ao gato ou ao Quico? Ou, ainda, o Seu Madruga com chapéu e avental de chef?

Cada um deles deixou um gostinho de sanduíche de presunto na lembrança de quem os degustou. A ponto de até hoje os fãs rirem de falas – quando não as usam no cotidiano – como “Já chegou o disco voador”, “A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena” e “Não tem biscoito”. Entre tantas linhas memoráveis, guardo especialmente a sabedoria macunaímica de Don Ramón, Madruguinha para os íntimos: “Não existe trabalho ruim. O ruim é ter que trabalhar”.

A louça na pia que o diga.

domingo, 24 de agosto de 2014

Notícias de uma guerra nada particular

Da série onde vamos parar: acabo de baixar um aplicativo no meu smartphone para receber mensagens do futuro. É o Time Machine Messenger. Ou TMM (lê-se com a pronúncia inglesa, como Ene Bi Ei para NBA). Só não vou dizer a marca para não parecer merchan. Mas garanto que funciona. Tanto é que já estou com a caixa de entrada cheia – sinal de que nossos netos não serão menos desocupados que a gente.

O primeiro recado vem de dois mil e flash gordon. É de um tal @realsteverogers compartilhando com o mundo inteiro que o conflito em Buenos Aires está bombadaço. Que os drones venezuelanos são mais perigosos que os brasileiros. Que os aborígines bolivianos são mais kamikazes que os muçulmanos. Curioso é que o sujeito anexou uma selfie dele com uma mesquita explodindo ao fundo. #partiufront

Próxima: essa é do @bonnerneto, anunciando que o conflito no Oriente Médio já chegou à Europa – via russos filhos do Putin e franceses membros de uma seita conhecida como Esquerda Croissant. Ainda segundo o apresentador do Jornal Internacional, estilistas comunas, interessados em lançar sua nova coleção de caças e mísseis, estariam liquidando a anterior. Metralhadoras nucleares a partir de 9,99 euros.

Outra do @bonnerneto: um #ff para o perfil do @galvãobuenoimortal. Entre diversas mensagens de parabéns à Seleção pela classificação para a Copa após quase meio século de hiato, o locutor comemora o aniversário de duzentos anos e a compra dos direitos exclusivos de transmissão da First Fifa World War (as outras duas guerras mundiais foram desconsideradas por não terem sido patrocinadas pela entidade).

(Quase desinstalando esse negócio.)

Tentando mais uma. Last. Not least. @jotahuck. Megaorgulhoso do Home Sweet Home desta semana, galera. Viajamos milhares de quilômetros até a Favela Palestina – último reduto de não cristãos no planeta, localizado na periferia de Tel Aviv – para reconstruir o abrigo antiaéreo de um muçulma supergentefina, viúvo, pai de doze arabezinhos ultrafofos. #nãopercam #próximosábado #caldeiraço

Não preciso repetir que essa foi mesmo a última mensagem. Medo de que a próxima revelasse que, graças a uma parceria inédita entre a Globo, a Unesco, a Igreja Universal e o governo brasileiro (todos sob a coordenação da Fifa), o Child Hope tinha enfim chegado a Gaza. Ainda sem dedução no imposto de renda.

domingo, 17 de agosto de 2014

Noite preta

Não consigo imaginar a saga de Anderline, musa do novo romance de Dau Bastos – Mar Negro (Ponteio, 2014) –, sem ouvir ao fundo os versos vampirescos do maior sucesso de Vange Leonel, artivista falecida recentemente: “Eu saio da cidade/ Procuro só a escuridão/ A purificação na calada da noite/ Da noite preta”.

Isso acontece não só porque Line, fruto de um ménage entre “tinta, papel e horror”, prefere o breu da Transilvânia à luminosidade de Maceió, ou tem o hábito de sugar remendos de vida que vão de um faxineiro equatoriano a um adolescente polonês – mas principalmente porque ela é, a seu modo, também uma artivista.

Hors concours do Prêmio Macabéa, “dilacerada entre a natureza de personagem e a aparência de gente”, a desgraçada vai logo além; extrapola os limites de protagonista. Com a ajuda de um ardiloso troca-tintas (vulgo Dau), veste a um só tempo o capuz do artista – a ponto de cogitar publicar seus diários como se escritos por ela mesma – e a capa do ativista – ao assumir o posto de representante máxima de todos os trambolhos da humanidade.

Line é uma black bloc; sua função é desacatar. Com seus coquetéis de pragmatismo e ironia, com suas bombas caseiras feitas à base de “forra, farra e forró”, vandaliza toda a dor de cotovelo de um amor não correspondido. (Cá entre nós, felizmente não correspondido. Porque ninguém merece a parvoíce de um Apolo canalha, canastra e irrecuperavelmente coxinha.)

Só que tal dor de cotovelo não se restringe ao amor não correspondido; para gozo do leitor – certamente seduzido pelo perfume de feromônio da mocreia –, ela transborda para o mundo não correspondido, o planeta fast-food, o McMundo no qual, segundo a própria personagente, “felizes são os que têm traços médios, porque se beneficiam do posicionamento no bololô”.

Tentando encontrar o seu bololô – ironicamente o seu não lugar ao sol, o porto (seguro?) onde o astro rei não a alcance e revele sua face Fera –, a Bela põe a mochila na corcunda e viaja pelos porões da Europa (Cracóvia, Bucareste, Sófia...) rumo a um destino com ares de sina para quem sabe que é gente e, especialmente, literatura: a última página de um romance.

Vale cada pensão de quinta, cada birosca xexelenta, cada beco no meio do nada (e do frio) acompanhar Line em sua jornada pelas beiradas e desvãos da existência, em seu mergulho sem cilindro nas águas do Mar Negro. Uma aventura que, se para os que pouco viajam há de soar inverossímil ou artificial, para os acostumados aos embarques e desembarques da ficção se fará refúgio indispensável.