domingo, 30 de novembro de 2014

De volta às famigeradas

Mês da Consciência Negra e eu acabei revisitando um texto meu antigo, lá dos confins de 2012, que tratava das cotas raciais e cujo título era “Famigeradas”. Em poucas linhas, minha edição dois anos mais jovem (e ainda mal revisada) mostrava toda a sua indignação com a adoção de políticas de reserva de vagas para garantir o acesso de negros e pardos a instituições de ensino superior.

Acusava o Estado de remediar décadas – senão séculos – de omissão com um paliativo. Sem uma notinha de vergonha no rodapé, criticava o governo por dar mais chances ao “bacuri” (sic) que tivera a infelicidade de nascer numa comunidade carente – de saneamento, escola, hospital, paz, lazer –, mas a felicidade de ser mais corado que o vizinho.

Sugeria ainda – ironicamente, claro – que as cotas extrapolassem a senzala das raças e se expandissem por outras casas-grandes, como o Congresso Nacional: “Que tal uma reserva de vagas para políticos honestos? Quem sabe assim um dia tenhamos representantes dispostos a tratar as causas da nossa miséria, e não apenas preocupados em mal administrar suas consequências”.

Era ou não era um raciocínio de ostra ao contrário? Daquele tipo que, em vez de produzir algo belo a partir de uma ferida, gesta preconceitos porque nunca os sofreu na pele?

Anos (e, especialmente, algumas leituras) depois, revi minhas ideias. Não dava mais para tolerar uma universidade formada majoritariamente por brancos, ainda mais num país em que negros e pardos são a maioria e a miscigenação é regra. Era preciso (re)aproximar o significante de seu significado: universidade, característica do que é universal. Era urgente tornar aquele espaço mais plural, mais representativo de nossa realidade. 

Como sublinha o mestrando em Direito João Telésforo, “trazer a diversidade de mundos sociais existentes para dentro da universidade é fundamental para que ela se abra [...] e seja capaz de inovar; onde há diversidade, há muito maior tendência à criatividade. Ademais, a inclusão dos ‘instrangeiros’ [“estrangeiros” dentro do ambiente acadêmico] poderia incentivar a produção de conhecimentos e a formação de pessoas [...] mais responsivas às demandas e aos problemas dos setores excluídos e pouco ouvidos de nossa sociedade”. [1]

Por isso – por acreditar nessa necessidade de se estimular a produção de outras perspectivas (ou das perspectivas do outro) –, a nova edição de mim mesmo ganhou um capítulo extra, no qual é defendida a política de cotas inclusive para a pós-graduação. Segundo Pedro Augusto Brandão, no caso das faculdades de Direito – área em que é doutorando –, é importantíssima “a formação de pesquisadores alinhados com temas tradicionalmente invisíveis da área jurídica”.

Somente assim, continua Pedro, “os atores sociais envolvidos nas lutas por reconhecimento estarão diretamente envolvidos nas pesquisas jurídicas. De objeto de pesquisa, poderão passar a sujeitos protagonistas das investigações acadêmicas”. Desse modo, terão a oportunidade de dar voz a “compreensões de mundo historicamente marginalizadas, como o conhecimento popular, a cosmovisão indígena e a cultura negra”. [2]

A esta altura, alguém há de ter esperneado que cotistas contribuem apenas para a queda da qualidade do ensino. Não é bem assim: estudos recentes feitos pela Universidade de Brasília (UnB), primeira federal a adotar as cotas, apontam que não há diferença expressiva entre as notas de formandos cotistas e não cotistas. De acordo com Mauro Rabelo, decano da instituição, uma explicação para esse fenômeno seria o estímulo aos alunos que ainda estão na educação básica. Ao verem uma chance real de ingresso na universidade, eles passariam a se dedicar mais. [3]

É evidente, no entanto, que apenas a reserva de vagas no ensino superior (não só para negros e pardos, mas também para indígenas e alunos de escolas públicas) não transformará o Brasil na Disneylândia da igualdade social. Melhorar a educação básica – que engloba os níveis infantil, fundamental e médio –, valorizando essencialmente seus professores, é condição igualmente imprescindível para que um dia tal paliativo não seja mais necessário.

E todos – realmente todos, sejam pretos ou brancos, pobres ou ricos – tenham as mesmas possibilidades de inserção na sociedade.

domingo, 23 de novembro de 2014

Macho men

E não é que as fabiofobias – os medinhos e medões que listei na crônica de mesmo nome – deram pano pra mais umas linhas?

Leitores integrantes do MMMM (o Movimento dos Machos com M Maiúsculo) me repreenderam na última semana por expor minhas fragilidades ao mundo. Isso não é coisa que se diga além de quatro paredes, bradou um. Guarde essas histórias pra sacada do seu apê, berrou o outro. Assim você acaba com nossa fama de mau, protestou um terceiro. Macho que é macho não fala dos medos, mas os supera sem falar, ensinou um quarto. Houve até quem cismasse com minhas escolhas vocabulares: horror?! arrepio?! isso é palavra que homem use?

Só faltou eu ser atacado pela Sociedade Protetora das Lagartixas. Quer dizer, não faltou: lagartixas se alimentam de insetos, inclusive do Aedes aegypti, trate-as bem!

Às respostas.

Queridos um e outro, como não vivemos numa ditadura comunista cubana gayzista bolivariana soviética com viés árabe kamikaze – ao contrário do que alguns héteros paulistas acreditam –, tenho liberdade de revelar o que eu quiser além de quatro paredes, desde que não ofenda o vizinho. A não ser que minhas cuecas recém-lavadas, devidamente “guardadas” na sacada do apê enquanto não secam, estejam ofendendo a senhorinha do 602. Será? Uma coisa eu garanto: até hoje ninguém se pronunciou sobre o assunto nas reuniões de condomínio.

Caríssimos terceiro e quarto, eu jamais me daria ao trabalho de acabar com a fama de mau do Homem Que É Homem – ou HQEH, como genialmente siglava o Verissimo. Os tempos são outros, e o que vocês chamam de “fama de mau” já virou “má fama” há séculos. É só dar um Google: as mulheres agora querem os caras sensíveis, especialmente aqueles que são machos (e seguros) o suficiente para falar dos seus medos. (Quanto a superá-los, aí é outra história. Aliás, quem criou a Lei De Que Todo O Medo Deve Ser Obrigatoriamente Superado? Se não atrapalha sua vida, se você aprendeu a conviver com ele, já é um vitorioso. Meus-pa-ra-béns.)

Ao estimado fiscal do vocabulário alheio: palavra pode até ter gênero, mas não é propriedade exclusiva de um dos sexos. Além do mais, a língua, cada um a usa como bem entender. Believe me: um pouco de inspiração, muitíssimo de transpiração, e os usos se mostram infinitos. O importante não é de que boca a língua sai – se masculina ou feminina –, mas o prazer que ela proporciona ao entrar nos ouvidos.

Por fim, meus sinceros pedidos de desculpa à excelentíssima Sociedade Protetora das Lagartixas. Jamais foi minha intenção incentivar o extermínio das cujas. Sei que elas comem mosquitos, inclusive os da dengue. Mas que façam sua refeição bem longe da minha varanda. Também não quero estimular a extinção das onças. Mas se uma aparecer aqui em casa – o Ibama que me perdoe –, só não vai levar bala porque sou da paz e ando desarmado.

Mentira: é que tenho horror a qualquer arma (de fogo então...). Basta eu ouvir um estampido – a não ser no cinema, claro – que já me sobe aquele arrepio.

domingo, 16 de novembro de 2014

Fabiofobias

Deu uma vontade inexplicável de listar meus medos: os eternos, os temporários, os sérios, os bobinhos, os que me fazem parar, os que me fazem seguir. Alguns são tão óbvios e me causam tamanho pavor – o medo da morte, por exemplo – que não merecem meia cova. É melhor fingir que não existem; se por acaso derem o ar da desgraça, o jeito é não ter medo – de fugir. É o que faço. Corro pra bem longe.

Só não quero ficar longe de quem gosto. Nem pensar. A distância é outro medo eterno e sério. Daqueles que só fazem uma crônica mais cinzenta do que deveria. Mais colorido lembrar o medo da comida japonesa, já superado com os devidos sushis e sashimis; da cabeleira selvagem do Caetano tropicalista, felizmente há muito substituída por fios grisalhos e comportados, bem menos assustadores (ou não); do Baixo Astral, o vilãozão interpretado por Guilherme Karan num filme da Xuxa.

Também tenho medo de passar a vida inteira e não rabiscar uma obra-prima, mesmo que prima em terceiro ou quarto grau: pode ser literatura, cinema, tevê. Pode ter 140 caracteres. Pode ser um videozinho mambembe feito com a câmera do celular, um flagrante como o daquela japinha descobrindo a chuva. Se tiver poesia, já está valendo – valendo, quem sabe, um sofá do Jô.

Os sonhos ridículos, deixemos de lado. Porque o assunto aqui são os medos. Meu medo cotidianíssimo dos livros com erro na orelha, de gente que não dá bom dia a porteiro, do juiz que vai apitar o próximo jogo do Vasco, do metrô sardinhamente cheio na hora do rush. Claro, tenho também aqueles medos mais coletivos, compartilhados com boa parte da humanidade: o medo dos políticos que confundem o público com a privada e guardam dinheiro na cueca; dos binladens que ameaçam a paz mundial; das catástrofes provocadas pelo aquecimento global; dos figurinos da Lady Gaga.

Medo de comunista? Não. Esse eu deixo pro Lobão e a pauliceia desvairada dos Jardins.

Mas verdade seja dita: nenhum desses medos é tão forte quanto o horror que tenho das lagartixas tamanho GG (Godzilla ao quadrado) que fazem da varanda aqui de casa seu Parque dos Dinossauros. Só de pensar naquelas black blocs frias e rastejantes saindo de seus covis no cair da noite pra vandalizar meus nervos, já sobe aquele arrepio.

domingo, 9 de novembro de 2014

Notas saltimbancas

Ói nós aqui
Respeitável público acima dos trinta anos: não morra de inveja; mas faça a gentileza de ter ao menos uma quedinha de pressão. Este que vos rabisca semanalmente deu uma pausa nas cotidianices para reverenciar de perto, pertíssimo – a coisa de cinco metros – Didi, Dedé e os Saltimbancos Trapalhões, em cartaz na Cidade das Artes, aqui no Rio.

Uma pirueta
A peça, fabuloso xanadu produzido por Charles Möeller e Claudio Botelho, é de fazer o coração mais molenga dar ultrapiruetas. A primeira já acontece no iniciozinho, quando a silhueta do icônico personagem de Renato Aragão surge na cortina. Sobe o véu, some a (sombra de) dúvida. É ele mesmo: Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo.

Muitas piruetas
Inúmeras piruetas dignas de bravo (bravo!) se espalham pelas quase duas horas de espetáculo, como a saudosa interação entre Didi e Dedé, sempre escadamente generoso ao “sofrer” as piadas do amigo; as divertidas interpretações de Adriana Garambone para a vilã Tigrana e de Roberto Guilherme para o Sargento Pincel, digo, o Barão; o figurino coloridamente retirado de uma caixa de bonecas; o (sonho-de-)cenário grandiosamente circense, com destaque para os leões gigantes; além, claro, das polipiruetas propriamente ditas, encenadas por acrobatas de carne, osso e borracha.

Superpirueta
Talvez a maior delas ocorra quando Didi (ou Renato, sei lá) cita os stents que teve de colocar recentemente para impedir o entupimento de uma artéria. Ô da poltrona: como não tirar um ou dois psits dos olhos ao se dar conta de que se está diante de um senhor de quase oitenta anos – ídolo na tevê, campeão de bilheteria no cinema – estreando no teatro, (re)nascendo portanto num novo picadeiro?

O grande malandro da praça
É impressão minha ou as canções clássicas (re)criadas por Chico Buarque para as versões brasileiras do musical de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov (a dos palcos e a das telas) tomam regularmente o elixir da juventude? Mais que oportuno revisitá-las agora, neste momento (ainda) eleitoral, já que faz pouquíssimo tempo que Chico, um de nossos maiores artistas, foi crucificado nas redes sociais apenas por ter declarado voto em Dilma – a ponto de certo colunista promover até campanha de boicote ao poeta, suposto representante de uma tal “esquerda caviar”.

Os versos buarqueanos dão sempre um rabo de arraia e inteligência nesses tubarões da imbecilidade.

O pessoal delira
Momento coxinha da noite: a piadinha de Didi “mais vale um feio na mão do que dois bonitos se beijando” foi uma das mais aplaudidas pela plateia, composta em sua maioria por famílias héteras da classe média carioca.

Pano rápido.

domingo, 2 de novembro de 2014

Separações

Foi acabarem as eleições para o mantra se espalhar: o país está dividido. Entre norte e sul, pobres e ricos, negros e brancos, homos e héteros, comunas e milicos, progressistas e conservadores, canhotos e destros, jedis e siths, madrugas e florindas, ivetes e claudinhas, flas e flus. Houve até quem dissesse que toda essa polarização teria sido promovida – senão inventada – pelo partido que nos governa faz mais de uma década.

Que me perdoem os que defendem essa ideia: mas vocês já ouviram falar num aplicativo moderníssimo chamado livro de História?

Basta abrir suas páginas para acessar os arquivos que mostram o quanto temos sofrido com o vírus da divisão há aproximadamente cinco séculos. Que tal um clique no capítulo senhores versus escravos? Um passeio rápido pelas plantações de cana-de-açúcar de mil quinhentos e senzala, especialmente se guiado por um gentil capitão do mato, revelará o quão doce e bucólica era a vida no engenho.

Só que não.

Um só-que-não que continuou por vários capítulos, mesmo depois da Lei Áurea. Ou as vejetes de plantão acham que os negros – enfim livres, mas apenas no papel – deixaram as fazendas de seus donos rumo a algum condomínio de luxo na Barra, a alguma mansão no Morumbi? (O pior é que acham; e ainda acreditam que eles vão muito-bem-obrigado, principalmente por serem quase tratados como um membro da família.)

O que aconteceu, sobretudo nos últimos dez anos, graças a programas de transferência de renda como o famigerado Bolsa Família, é que a desigualdade entre os polos diminuiu: aquela maria que ficava encolhidamente agradecida no seu quartinho passou a frequentar salões até há pouco tempo exclusivos das madames e de sua prole, como as escolas, as universidades e – ousadia máxima – os aeroportos.

E é esse encontro inesperado em determinadas áreas VIPs da sociedade que tem causado reações invariavelmente estúpidas de parte da população, inconformada com a ascensão social alheia; população essa que – representada por certos colunistas irresponsavelmente “polêmicos” – chegou a sugerir a separação do território nacional em dois: um com o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste “esclarecidos”, “modernos”, e outro com o Norte e o Nordeste “desinformados”, “retrógrados”.

Aí eu pergunto: será mesmo que é o grupo político há doze anos no poder quem tem estimulado essa luta de classes com ares de game show? Ou hoje nossos preconceitos seculares estão apenas mais evidentes, o que provoca essa sensação de eterno Grenal? O que eu sei é que, ao menor sinal de preconceito (seja de classe, cor, gênero, região), à mais covarde faísca de intolerância, as pessoas felizmente têm reagido como nunca antes na história deste país – e isso acaba gerando um quadro de aparente mais-polarização.

Em outras palavras, o Brasil está tão dividido quanto sempre esteve; a diferença é que agora a ferida está mais exposta.