domingo, 18 de dezembro de 2016

Canção do exílio

“Espécie rara de colecionador, pouco liga para o que o objeto é em sua origem e sim o que se torna ao ganhar outra vida, estraçalhado, em seguida ressuscitado.”

O trecho se refere a certa personagem do romance Rio-Paris-Rio dada a provocar acidentes com qualquer bibelô apenas para, em seguida, juntar seus cacos e reconstruí-lo. Mas bem que poderia se referir à sua autora, Luciana Hidalgo, que oferece ao leitor uma passagem em primeira classe até o mundo de Maria, cuja vidinha pretensamente quadrada e simétrica – tal qual o quarto em que se refugia na capital francesa – derrete de vez em meio às manifestações estudantis de maio de 1968.

À maneira de uma restauradora singular – nem um pouco dedicada a recuperar a forma original da peça fraturada, mas a realçar o que deriva da fratura –, Luciana esculpe em doze capítulos a odisseia de renascimento da jovem que deixa o Brasil dos militares para estudar filosofia na Sorbonne e, ao mesmo tempo, ordenar o caos dos últimos anos, marcados não só pelo golpe que instaurou uma ditadura no país, mas também pela morte do irmão em circunstâncias trágicas.

Como seu ancestral literário (o herói Ulisses), Maria conta com uma Ítaca a lhe servir de bússola nessa travessia. Não uma Ítaca fixa, porto seguro, xis previsível no mapa, como a da epopeia. Uma Ítaca, ao contrário, móvel, ambulante, flutuante: o também jovem Arthur. Um poeta, um artista de rua, um brasileiro igualmente foragido – que ocupa o quartel-general da moça com versos jogados por baixo da porta.

Viajar é sentir, diz um deles (extraído de Fernando Pessoa). Sentir tudo de todas as formas, excessivamente – aí está o passaporte para se aproveitar ao máximo o roteiro planejado por Luciana. Não deve o turista que enveredar pelo bulevar de papel e tinta da autora esperar uma narrativa cheia de peripécias, feito um poema homérico ou aquela excursão que corre os mil pontos turísticos da Cidade-Luz em apenas um fim de semana.

A viagem aqui é flanar entre personagens das mais sortidas nacionalidades que, direta ou indiretamente, foram atingidos pela truculência da História (como Maria, Arthur e tantos outros); é se deixar (co)mover por corpos e mentes que, de repente, se viram jogados na sarjeta de um período histórico e tiveram de aprender a cuspir fogo no autoritarismo ou fazer uns malabarismos para sobreviver a ele.

É sobretudo compreender que qualquer revolução – inclusive a que atravessa a protagonista e a concilia com as assimetrias ao seu redor – é um ato de violência.

A violência, aliás, extrapola o enredo e (numa decisão estética que ecoa a temática tratada) invade a linguagem: a poesia frequentemente rompe a sequência de parágrafos, inquietando a prosa; e os fragmentos de cartas que trazem notícias das mortes e prisões e lutas no Brasil, com letras em caixa-alta e texto que desrespeita a mancha gráfica, soam como um grito que não se submete mais aos limites da página – assim como as infinitudes vivenciadas por Maria, que aos poucos vencem os contornos (até então) bem definidos de seu esconderijo na rua Cujas.

Em tempos de tantas agressões à democracia – nos quais os interesses de poucos delineiam, com a régua da tirania, um horizonte nada promissor para a maioria dos brasileiros –, não poderia ser mais atual, infelizmente, esse retorno a uma época em que as liberdades individuais e coletivas experimentaram um exílio tão profundo.

É um alento, no entanto, que o itinerário proposto por Luciana acompanhe justamente aqueles personagens que não se deixam imobilizar pela barbárie e continuam caminhando contra o vento – heróis anônimos que, como cactos no deserto, se destacam na aridez da realidade e nos mostram o quanto é importante resistir. Sempre.

P.S.: Vou me exilar do blog um tempinho e volto no próximo ano. Boas Festas!

domingo, 11 de dezembro de 2016

Traduções possíveis

Se A chegada fosse um verbete de dicionário, certamente ocuparia várias páginas – tantas são as definições para o mais novo filme de Denis Villeneuve.

Uma das primeiras e mais óbvias seria ficção científica, dada a sinopse tão cara ao gênero: depois que naves alienígenas pousam em diversas partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos, a linguista Louise Banks (Amy Adams) e o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner) são convocados pelo governo americano para decifrar a língua e os planos dos visitantes.

O mote aparentemente surrado, no entanto, não serve à enésima destruição em massa de cartões-postais. Desta vez, o novo endereço de Donald Trump não vai pelos ares (o que não deixa de ser uma decepção). A pirotecnia tipicamente hollywoodiana cede espaço ao que a ficção científica faz de melhor: usar o fantástico como pretexto para discutir o real e o humano – o tal demasiadamente humano.

Importa ao diretor dos ótimos Incêndios e Os suspeitos observar, por exemplo, a reação apavorada de alguns de nós diante do desconhecido, do diferente: somos capazes de – incitados por discursos xenófobos – quase iniciar um conflito armado mesmo não entendendo o idioma e as intenções do outro, como mostram os soldados que põem uma bomba numa das naves depois de tanto assistirem a um Datena na tevê.

Outro comentário proposto pelo cineasta (spoiler! spoiler!) está na mensagem dos aliens aos humanos, intencionalmente dividida entre os dozes discos espalhados pelo planeta. Traduzi-la integralmente só será possível se houver colaboração entre as nações. O fato de os ETs não fazerem isso porque têm o dedinho iluminado e desejam promover a paz – mas porque esperam uma contrapartida num futuro distante – afasta qualquer possibilidade de abdução por pieguice.

Se aprofundados, esses temas sem dúvida levariam o longa a ser interpretado como ensaio sociológico ou político; eles empalidecem, todavia, frente à definição que mais se aproxima da essência do filme: história de amor. Não uma história de amor (contada) como as outras. Mas uma história de amor que se vale do roteiro de Eric Heisserer (baseado no conto “História da sua vida”, de Ted Chiang) e da montagem de Joe Walker para estilhaçar a linearidade do tempo e expor a incoerência poética de um sentimento que insistimos viver mesmo sabendo que, cedo ou tarde, acabará em morte e dor – mesmo sabendo que só é infinito enquanto dura.

Não por acaso, a certa altura, Louise confessa a Ian sentir que tudo aquilo que está acontecendo parece ter a ver apenas com os dois. Só tem. Uma aliança de casamento – vista em plano-detalhe nos primeiros minutos de projeção – reverbera em outras formas circulares que povoam a narrativa, como a linguagem dos alienígenas, o nome em palíndromo de certa personagem e a própria estrutura do roteiro.

O fim (ou o começo) faz o espectador voltar ao início (ou ao desfecho) e se perguntar se o título do longa se refere somente à chegada dos extraterrestres.

São tantas as leituras suscitadas por esse scifi villeneuveano que, em última análise, é possível compreendê-lo também como um tributo ao cinema. É isso ou o design de produção não faria do interior da nave frequentada pelos protagonistas um corredor escuro, que leva a uma sala igualmente escura, onde só existe uma fonte de luz: um imenso retângulo branco em posição horizontal, no lugar de uma parede, como uma vitrine – a janela usada pelos aliens para se comunicar com os cientistas.

Assim como acontece com Louise, redefinimos nossa relação com o tempo – quiçá redicionarizamos a própria vida – ao entrar em contato imediato com o que está do outro lado da tela.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Escombros

A ideia era enxergar o verde em meio aos destroços.

Era escolher as palavras possíveis para resgatar – da tragédia que vitimou quase o time inteiro da Chapecoense, além de jornalistas e tripulantes – a esperança ainda com vida.

O texto que parecia improvável começou a ganhar forma quando clubes espalhados pelo país substituíram seus escudos nas redes sociais pelo brasão da Chape. Depois, num gesto que transbordou a mera solidariedade virtual, ainda se comprometeram a emprestar jogadores sem custo ao time catarinense e a defender seu não rebaixamento pelos próximos três anos, numa tentativa de ajudar em sua recuperação.
"Brasília em ruínas", Oscar Niemeyer

A comoção foi tão forte, que até o inimaginável aconteceu: o Corinthians pintou de verde sua página na internet.

Enquanto isso, fora das quatro linhas, um famoso site perdia leitores (e os tão disputados cliques) ao pular a catraca do bom senso e publicar matérias tipicamente oportunistas, como um artigo que ensinava a lidar com o medo de voar e – pasmem – um vídeo com passageiros em pânico num avião. Já uma loja de artigos esportivos virou alvo da ira pública ao aumentar o preço da camisa da Chape poucas horas após o acidente. Mais tarde, a empresa se pronunciaria: o valor havia sido reduzido por causa da Black Friday e o preço original tinha sido apenas restabelecido. Verdade ou não, a antipropaganda já estava feita.

Até a área de comentários de grandes portais como G1 e UOL parecia ter sofrido um saneamento básico: paz e amor no lugar do usual chorume.

Não bastassem todas essas demonstrações de empatia, o Atlético Nacional pediu à Conmebol que declarasse campeão o time brasileiro, seu adversário na final da Copa Sul-Americana. A atitude dos colombianos – surpreendente num mundo onde costuma prevalecer a máxima “farinha pouca, meu pirão primeiro” – repercutiu tão bem do lado de cá da fronteira, que imaginei que ela pudesse servir de inspiração aos brasileiros, em especial aos nossos parlamentares, habituados a sempre sacrificar os mais vulneráveis em momentos de turbulência econômica.

Ingênuo, eu.

Eles aproveitaram o luto que tomou conta do país – e a indiferença cúmplice da grande mídia, dedicada quase exclusivamente ao desastre aéreo – para aprovar cortes em investimentos sociais pelas próximas duas décadas (a despeito das manifestações contrárias ao ajuste que aconteciam a poucos metros, violentamente reprimidas pela polícia) e alterar alguns projetos de lei que poderiam contribuir no combate à corrupção; tudo isso entre uma noite de dor e uma madrugada de tristeza, o que deixou no ar uma hedionda fragrância de autopreservação e oportunismo.

A ideia, eu já disse, era enxergar o verde em meio aos destroços.

Só que atos como esses – que desnudam não só os verdadeiros vândalos da nação, como o nível de obscenidade a que chegamos – insistem em levar as palavras até os destroços. Tais atos fazem jus, inclusive, à tirada de gosto muit(íssim)o duvidoso, mas de conteúdo infelizmente realista, que ouvi esses dias e ouso repetir antes do ponto final:

A tragédia em Medellín, para alguns, parece ter caído do céu.