domingo, 2 de novembro de 2014

Separações

Foi acabarem as eleições para o mantra se espalhar: o país está dividido. Entre norte e sul, pobres e ricos, negros e brancos, homos e héteros, comunas e milicos, progressistas e conservadores, canhotos e destros, jedis e siths, madrugas e florindas, ivetes e claudinhas, flas e flus. Houve até quem dissesse que toda essa polarização teria sido promovida – senão inventada – pelo partido que nos governa faz mais de uma década.

Que me perdoem os que defendem essa ideia: mas vocês já ouviram falar num aplicativo moderníssimo chamado livro de História?

Basta abrir suas páginas para acessar os arquivos que mostram o quanto temos sofrido com o vírus da divisão há aproximadamente cinco séculos. Que tal um clique no capítulo senhores versus escravos? Um passeio rápido pelas plantações de cana-de-açúcar de mil quinhentos e senzala, especialmente se guiado por um gentil capitão do mato, revelará o quão doce e bucólica era a vida no engenho.

Só que não.

Um só-que-não que continuou por vários capítulos, mesmo depois da Lei Áurea. Ou as vejetes de plantão acham que os negros – enfim livres, mas apenas no papel – deixaram as fazendas de seus donos rumo a algum condomínio de luxo na Barra, a alguma mansão no Morumbi? (O pior é que acham; e ainda acreditam que eles vão muito-bem-obrigado, principalmente por serem quase tratados como um membro da família.)

O que aconteceu, sobretudo nos últimos dez anos, graças a programas de transferência de renda como o famigerado Bolsa Família, é que a desigualdade entre os polos diminuiu: aquela maria que ficava encolhidamente agradecida no seu quartinho passou a frequentar salões até há pouco tempo exclusivos das madames e de sua prole, como as escolas, as universidades e – ousadia máxima – os aeroportos.

E é esse encontro inesperado em determinadas áreas VIPs da sociedade que tem causado reações invariavelmente estúpidas de parte da população, inconformada com a ascensão social alheia; população essa que – representada por certos colunistas irresponsavelmente “polêmicos” – chegou a sugerir a separação do território nacional em dois: um com o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste “esclarecidos”, “modernos”, e outro com o Norte e o Nordeste “desinformados”, “retrógrados”.

Aí eu pergunto: será mesmo que é o grupo político há doze anos no poder quem tem estimulado essa luta de classes com ares de game show? Ou hoje nossos preconceitos seculares estão apenas mais evidentes, o que provoca essa sensação de eterno Grenal? O que eu sei é que, ao menor sinal de preconceito (seja de classe, cor, gênero, região), à mais covarde faísca de intolerância, as pessoas felizmente têm reagido como nunca antes na história deste país – e isso acaba gerando um quadro de aparente mais-polarização.

Em outras palavras, o Brasil está tão dividido quanto sempre esteve; a diferença é que agora a ferida está mais exposta.

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