domingo, 29 de dezembro de 2013

Retrô

Não se preocupe. Não vou refalar das manifestações de junho, do julgamento do mensalão, das sandices do Feliciano, do sumiço do Amarildo, do Big Brother do Obama, da eleição do papa, da morte do Mandela ou do tapetão do futebol. Essas e outras eu deixo pro Sérgio Chapelin e a Glória Maria.

A ideia é, sim, revisitar o ano velho, mas partindo de pérolas publicadas por mim nas redes sociais nos últimos doze meses. Você pode achar isso preguiça do cronista, que assim se livra de escrever um texto integralmente original. E acha certo. Tenho andado com mais lombeira que o Macunaíma de férias em Salvador às cinco da manhã.

Só que não se trata apenas de evitar a fadiga: desejo que todos, especialmente aqueles que não me acompanham no Face e no Twitter, tenham a oportunidade de experimentar alguns quitutes de genialidade produzidos por estes humildes neurônios que a terra um dia há de degustar.

Não precisa agradecer. Faço isso de coração escancarado, sem interesse, talvez ainda tocado pelo espírito de Natal. Generosidade pura. Cristalina. Tão imaculada quanto as fraldas do menino Jesus.

A primeiríssima pílula vem lá do iniciozinho de janeiro, e serve para todo fim de réveillon (caso seu fígado ainda esteja funcionando): “Se comi ou se bebi, o importante é que às festas eu sobrevivi”. Falando em sobreviver, quase fiz a passagem no dia 30 do mesmo mês, ao descobrir que mussarela com dois esses era tão verdadeira quanto as boas intenções do Marco Feliciano: “Muçarela, com cê e cedilha, pode até ser legal. Mas é imoral. E engorda”.
 
O pastor, aliás, rendeu em agosto uma enquetezinha básica (e muitas curtidas de apoio), a propósito da lei contra lixo nas ruas que entrou em vigor aqui no Rio: “Só pra esclarecer: se eu jogo o Marco Feliciano pela janela do último andar de um arranha-céu, sou preso por homicídio ou levo multa de 157 reais?”.

Outra enquete de sucesso, ainda em agosto, provou que eu não estava sozinho na categoria “ouvir vozes do aquém”: “Serei eu o único sujeito na face da Terra a ler ‘op. cit.’ com a voz do Didi Mocó dizendo ‘ô, psit’?”. Muitos deixaram a poltrona e admitiram sofrer do mesmo distúrbio. Obrigado aos que tiveram tamanha coragem. Tâmu junto!

Por sinal, estamos juntos também na incapacidade de executar certas tarefas domésticas: “Dobrar lençóis de elástico é uma arte da qual jamais serei um virtuose”. Essa ficha caiu (no samba) em fevereiro, entre confetes, serpentinas e uma dorzita de cotovelo na altura do estômago: “Escutar o vizinho planejando a próxima viagem à Europa me trouxe uma certeza: inveja não mata; mas dá uma gastrite...”.

Felizmente, nem tudo são cravos e espinhas. As águas de março fecharam o verão com promessa de obra-prima – “Ainda hei de escrever uma peça chamada Monólogos do hífen” – e justiça musical – “Cantor sertanejo é detido após polícia apreender em seu apartamento duas armas, munição, maconha e meia dúzia de novas canções” –, além de uma certeza: “o carioca é, antes de tudo, um anfíbio”.

Abril, lembrando bem, não teve meia palavra digna de epígrafe. Maio, por sua vez, só foi digno de nota (dez) graças aos presentes e à piadinha de aniversário: “Trinta e três anos: só espero que não me crucifiquem por ter chegado tão longe”. Outro níver que rendeu uma bobice foi o do Franz, em julho: “Parabéns, Kafka, pelos 130 anos: você é o maior barato”.

Para não dizerem que não falei das festas juninas: e aquele dia em que o Brasil inteiro foi pra rua? as novelas das seis e das sete não foram exibidas? o Jornal Nacional se estendeu mais que as trilogias do Peter Jackson? “Quanto vandalismo: derrubaram até a grade da Globo”.

Voltando a fevereiro (e ao início do século XX): “Li no UOL que Lado a lado chegará ao último capítulo com o pior ibope da história no horário das seis. É, foi-se o tempo em que o brasileiro entendia de novela”. Correu tudo tão esquisito este ano que os americanos – bons em novela como nós em beisebol – deram um merecidíssimo Emmy para a trama estrelada por Camila Pitanga e Lázaro Ramos. Valeu novembro.

Penúltimo mês do ano, Brasileirão (quase) decidido, Cruzeiro folgado na tabela, e a confirmação de uma previsão lá de agosto: “Os botafoguenses que me desculpem: mas não rola um campeão brasileiro com Guaraviton estampado na camisa”.

Setembro: enquanto a turma da Estrela Solitária ainda acreditava no título, os fãs de uma estrelinha adolescente fincavam bandeira na porta da Sapucaí a fim de esperar o ídolo, ainda que isso significasse abandonar casa, escola e bom senso. ECA neles! “Não basta proibir os fãs do Justin Bieber de acampar mais de um mês antes do show (sic): tem que botar essa turma pra prestar serviço comunitário aqui em casa. Trabalho não falta”.

Também não faltou uma certeza, compartilhada com o mundo em outubro: “Se meu salário fosse atualizado tanto quanto as definições de vírus do Avast, a esta hora eu estaria em Paris”.Parte inferior do formulário

Ainda não estive na cidade dos brioches – mas estive em novembro. Cheguei ao mês onze como um walking dead (mais dead do que walking). Parecido com o leitor que bravamente chegou até aqui. Eu acordando toda manhã “com a sensação de que sair pro trabalho não ia agregar valor ao meu camarote”, exausto da rotina aditivada: “Dona Vida tem andado tão agitada que, quando precisa desacelerar, toma um Red Bull”.

Por isso, bastou dezembro dar o ar do panetone para eu varrer as últimas páginas da folhinha: “Botando a vassoura atrás da porta pra ver se 2013 se manca e toma seu rumo”.

Já entendi o recado da piaçava e estou tomando meu... champanhe. Me despeço desejando que o ano da Copa nos traga não apenas uma taça, mas os infalíveis votos de saúde, paz e prosperidade – requisitos de felicidade que vão muito além de um mundial de futebol. Muito além dos vinte centavos de uma bola na rede e de (mais) uma estrela no peito. Tim-tim!

domingo, 22 de dezembro de 2013

Sapatinho na janela

O que você quer ganhar de Natal?

Perguntinha mais batida que sino de Belém em tempo de Papai Noel. Eu sei. Mas vale a rabanada pensar nela – e não na resposta – nem que seja por um instante. Afinal, só o fato de ouvi-la já é um presentaço: a prova de que não estamos sozinhos no shopping (alguém está?), de que não sobramos no amigo oculto, de que uma criatura que não nós mesmos ou o Bom Velhinho se preocupa conosco a ponto de cogitar nos dar ao menos uma lembrancinha.

Temos andado – temos corrido os cem metros rasos, isso sim – tão focados e sufocados nos smartphones, tablets, games, tevês, cedês, devedês, sandálias, sapatos, perfumes, camisas, vestidos, bijus, brinquedos, livros, chocolates, panetones e outros mimos amarráveis com laço de fita, que mal conseguimos escutar o ho! ho! ho! de quem se dispõe a descer de sua chaminé para nos conceder duas castanhas de atenção.

Culpa do excesso de decibéis (jingoubéis?) da vida muderna, aparentemente em seu volume máximo: jingle all the way. De repente, é como se a Simone, acompanhada dos Canarinhos de Petrópolis, descesse de helicóptero bem no meio do Maraca e começasse a repetir discoarranhadamente “então é Natal e Ano Novo também” em nossos pobres aparelhos auriculares.

Parem o trenó que eu quero descer.

Pois desçamos dele por um instante: um instante e uma rabanada. Findo o primeiro e digerida a segunda – não necessariamente nessa ordem –, pensemos na resposta àquela perguntinha do início com cuidado, sem o corre-corre das últimas compras. Talvez eu pedisse uma realidade menos barulhenta, habitada por políticos menos odoricos, religiosos menos felicianos, celebridades menos bebebestas, manifestantes menos black blocs, jovens (e não tão jovens) menos selfies; gente, enfim, menos surdamente exibicionista, menos obcecada por uma vitrine, menos disposta a falar, falar, falar e impor sua voz a qualquer custo.

Quem sabe assim despertássemos no dia 25 e encontrássemos sob a árvore da sala não só pacotes cobertos de papel colorido – mas também um mundo novo, diferente, para sempre imerso naquela típica manhã pós-noite feliz, inundada em ruas de calmaria e quase-silêncio, onde só se ouve a alegria de quem acabou de desembrulhar uma surpresa.

domingo, 15 de dezembro de 2013

De caráter e caracteres

Que grande parte da espécie humana não vale o meme que curte nem o selfie que compartilha, o Face inteiro sabe. Mas há exemplares que extrapolam todos os caracteres do bom senso e estão sempre nos trending topics da imbecilidade, quando não do mau-caratismo. Autênticos spams da vaidade e do preconceito, não fariam falta alguma se fossem deletados do feed nosso de cada dia.

Falo do maior humorista nunca antes visto na história deste país, quiçá deste universo, o eternamente sexista – se lê ce-que-cis-ta – Danilo Gentili. Pois esta semana ele deu mais uma prova de que honra seu sobrenome. Só que não. Tudo começou na última terça-feira, quando o nobre entrevistou em seu Agora é tarde um escritor autodenominado especialista em caviar e movimentos sociais.

Após o bate-papo (a que não assisti porque estava plantando tubérculos da família das solanáceas), uma internauta foi ao Twitter e se atreveu a escrever a seguinte crítica: “O Jô Soares é de direita, mas é respeitado, pois tem conhecimento (leitura). Agora, esse Danilo Gentili cita a Forbes. Ridículo”. Pa-ra-quê? Pouquíssimo tempo depois, o apresentador já estava online para responder à estilingada com um tiro da bazuca, e seu peculiar bom humor, claro: “Chupadora de rola de genocida e corrupto detected. Quem quiser deixá-la molhadinha, basta assassinar alguém. Ela pira!”.

 

Nossa. Imagine se a moça ainda revelasse ao mundo que Gentili leva a Veja pra cama toda noite. Se bem que, nesse caso, talvez ganhasse um elogio. Quem sabe até um CD do Roger de brinde.

 

Mas não. A fúria do rapaz não parou no alerta sobre – só para ser mais gentil – a esquizofrênica apreciadora de charutos cubanos. Logo nosso projétchio de David Letterman convocou seus asseclas a atacarem a jovem. Mais uma vez, com aquele peculiar bom humor, além de certa dificuldade na concordância verbal: “Fanzocas a xingue [sic] de puta”. Não é que parte considerável de seus cinco milhões de seguidores obedeceu? Mulheres, inclusive.

 

Não demorou que a mais nova maior polêmica de todos os tempos da última semana tomasse conta das redes sociais e Gentili viesse a público se defender: “Ela apareceu do nada na minha TL me xingando gratuitamente. [...] A dondoquinha só pode xingar os outros, mas receber um xingamento como resposta não pode! Judiação, não é mesmo? Ela só quer a metade da lei natural – a da ação. A da reação, ela considera desrespeito. É a ditadura do coitadinho, que só pode ofender, mas não pode ser ofendido”.

 

Impressão minha ou o gajo, bancando a vítima, assinava um atestado de covardia? Ele, pobrezinho, indefeso, mais cinco milhões de seguidores, contra ela e seus mil ratos pingados. Não teria sido melhor, mais inteligente (eu sei, é pedir muito), apenas ignorar a estilingada da internauta? Como bem li por aí, a mosca permaneceria mosca e o cavalo, cavalo. O feed nosso de cada dia continuaria rolando.

 

Só que o cavalo, ainda tentando se defender da “comuna” (outro adjetivo usado pelo ilustre equino), guardava um derradeiro coice, digno dos mais brilhantes tratados de filosofia, de fazer Platão se trancar na caverna e não querer mais sair de lá: “Qual é a conclusão [disso tudo]? Que o que falta mesmo é um pau bem grande no cu de todo mundo. Reflitam sobre isso. Esse é o desafio para 2014: mais pau no cu de todo mundo”.


Já refleti. Como refleti. Aliás, passei meio segundo inteirinho refletindo. E também cheguei a uma conclusão: gente como Gentili não gera gentileza.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Grandes atores

Faz quase uma semana que deixei Jasmine falando sozinha no banco da praça, e ainda estou impregnado de sua fragrância azul, de seus olhos borrados de rímel e desilusão, olhos que exalavam a condição de eterna órfã em busca de um mundo adotivo. Que nem precisava ser tão grande assim – bastava caber numa Louis Vuitton.

Cate Blanchett só não leva o Oscar se o Daniel Day-Lewis resolver incorporar a Meryl Streep num filme do Spielberg com roteiro do Woody Allen.

A propósito, o roteiro de Allen: cheira ou não, mesmo que de leve, aos rocamboles de coincidências que (nem sempre) saboreamos no horário das nove? Não bastasse a irmã de Jasmine (Sally Hawkins) esbarrar com a traição do cunhado naquela cidadezinha de uma rua só que é Nova York, seu ex (Andrew Dice Clay) ainda surge no ato final – no meio de outra cidadezinha de uma rua só que é São Francisco – apenas para botar água no champanhe da protagonista.

Nem vou lembrar o fato de Jasmine, disposta a renascer das cinzas como uma nova Candice Olson (Google nela, gente), ter encontrado um príncipe tão encantado, tão inacreditavelmente sob medida, que procurava alguém justamente para – tchan tchan tchan tchan – decorar sua nada humilde residência.

É nessas horas que fica mais fácil se deixar adotar por um mundo que não viaja de primeira classe e sofre até com epidemia de zumbis, como o de The walking dead. Taí outra fragrância – fragrância não, odor – da qual também estive impregnado, a de carne humana apodrecendo, desde o episódio em que o Governador (David Morrissey) enfim invadiu o presídio no qual (sobre)viviam Rick (Andrew Lincoln) e os seus.

Poucas vezes assisti a segundos tão tensos – lindamente tensos – quanto os que antecederam a morte de Hershel (Scott Wilson). Jamais vou esquecer seu olhar doce, seu sorriso discreto, extraídos de um rosto já fatigado de tantas perdas. Com rara delicadeza, Wilson mostrou as vísceras de seu personagem, e só não terá um Emmy na sua estante em breve se o Apocalipse de fato tomar conta do planeta.

Ou se o Daniel Day-Lewis – sempre ele – cismar de fazer uma pontinha de morto-vivo nos próximos capítulos do seriado.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Falta de assunto

Bem que me disseram: um dia você ainda vai usar esse título. Cedo ou tarde, vai acordar sem ter o que escrever. Sem a menor ideia do que falar. Com a cachola mais vazia que carrinho de supermercado no fim do mês. O dia enfim chegou. E chegou chegando: tomou conta do sofá feito o Zé Dirceu tomando conta de sua cela na Papuda. Dando ordens, distribuindo tarefas, decretando a hora de fazer isso e aquilo.

Praticamente o rei do camarote.

Será? Fico tentando imaginar como certos jornalões conseguem saber TUDO que acontece entre quatro paredes; no caso, entre quatro muros imensos, decorados de arame farpado e cerca elétrica. Até diálogos inteiros – com direito a todas as interjeições – são reproduzidos em determinadas matérias. Das duas uma: ou o repórter é o Ethan Hunt do jornalismo investigativo ou... o Gilberto Braga.

Mas política não é meu forte. Eu não sobreviveria meia edição entre Merval Pereira e Diogo Mainardi. Teria logo um mal súbito e morreria abraçado à ficção.

Falando nela, talvez minhas ideias para um novo romance dessem uma crônica que valesse o domingo. Ou pelo menos a manhã de. Tenho pensado muito numa trama que envolva um ex-ator pornô cujo maior sonho é produzir chocolates finos, uma adolescente que devora borboletas, uma senhorinha viciada em zumbis e, claro, dois ou três cavaleiros templários em busca da Verdade maiúscula da humanidade.

Só ainda não sei se a história se passará no subúrbio do Rio ou em alguma cidade medieval do Leste Europeu.

O que sei é que ninguém está aí para os delírios de um escritor (sic) com quase tanta imaginação quanto autor de novela ou jornalista responsável por cobrir mensalices no país das maravilhas. Nessas horas de página em branco, o melhor é recorrer ao caixa dois da memória e resgatar de lá uma inconfidência das boas. Fofoca nua e crua, malpassada no máximo. O leitor curte à beça e ainda compartilha com os amigos.

Pois então: sonhei a semana inteira com o ministro Joaquim Barbosa. Sério. Ele subindo a rampa do Planalto – faixa verde-amarela no peito – e bradando retumbantemente cadeia já, de preferência em regime fechado, para os que insistirem em chamar a Friday de Black. A Fraude, digo, a Friday é Afro-Descendant e pronto. Caso encerrado.

domingo, 24 de novembro de 2013

Everest

E pensar que os Beatles cogitaram ir até o Himalaia tirar fotos para um disco que levaria o nome da mais alta montanha da Terra. Mas os prazos – sempre eles – estavam tão apertados, que os rapazes resolveram simplesmente atravessar a rua em frente ao estúdio que os abrigou por quase dez anos e batizar o álbum de Abbey Road.

Resultado: o que tem de turista engarrafando a capital inglesa para registrar seus pezinhos na mais famosa faixa de pedestres do mundo... É só dar um google para saber por que Paul, John, George e Ringo se tornaram os quatro cavaleiros do Apocalipse de onze entre dez guardas de trânsito londrinos.

Long and winding roads à parte, o caso me fez acender o sinal amarelo. Quantas vezes não provocamos congestionamentos quilométricos em nossas vidas apenas porque encasquetamos que a tal da Dona Felicidade mora numa cobertura de seiscentos metros quadrados na esquina da Quinta Avenida com a Champs-Élysées.

Pode morar. Acho até que mora. Mas esse não é seu único endereço. Senhora de posses, abastada de todos os nossos sonhos mais megassênicos, ela tem casa de campo, de praia, chalé na montanha, apê na Vieira Souto, mansão nos Jardins (da Babilônia), palacete em Marte, castelo nos anéis de Saturno, ilha particular em Alfa Centauro.

Mas tem também conjugado na Tijuca, quarto e sala no Catete, quitinete em Copa. Tem até sobradinho na subida do Vidigal.

Dona Felicidade não guarda cadeira; é nômade por natureza. E, de repente, não está tão longe quanto imaginamos. Quem sabe ela não acorda do nosso lado todos os dias, nas bochechas ainda sonolentas de quem divide (disputa?) o lençol conosco; de quem pincela a Becel no pão de forma enquanto boceja as primeiras notícias da manhã; lê a crônica da Martha como se o domingo não escondesse uma segunda; lava a louça do almoço lembrando a última viagem (e a enxuga planejando a próxima); vai ao cinema ver aquele adorável filme de robôs gigantes por pura solidariedade; faz cafuné e segura nossa mão sempre que o time perde; encerra as discussões com uma trufa no lugar do ponto.

Zapeia o Discovery a semana inteira em busca de (mais) um episódio perdido do Vestido ideal – mesmo jurando já ter encontrado o marido ideal.

Fê – para os íntimos – é a prova final, sem direito a segunda época, de que não precisamos atingir o pico de um monte distante, aparentemente coberto de algodão, para alcançar sua doce companhia. A escalada aqui é outra. Dispensa tantos apetrechos e cilindros de oxigênio. Exige apenas que deixemos a rua livre, o sinal verde e o coração permanentemente aberto ao trânsito de coisas boas.

De preferência, sem aqueles pardais urubuzentos do dia a dia – que insistem em querer nos multar por excesso de alegria.

domingo, 17 de novembro de 2013

Quem quer um aviãozinho?

Pobre do meu queixo: teve de fazer um pouso de emergência há alguns dias e acabou danificando toda a lataria. Felizmente, a queda não comprometeu os circuitos internos e logo, logo ele estará prontinho para novas aterrissagens forçadas – dessas que só este mundo com alma, fuça e madeixas de Galeão Cumbica é capaz de provocar.

O acidente, desta vez, se deu graças a um vídeo divulgado pela companhia aérea Virgin America. Um filmete de cinco minutos que transforma as necessárias instruções de segurança – como a clássica em-caso-de-despressurização-da-cabine-máscaras-cairão-automaticamente... – num número musical digno de um espetáculo da Broadway. Aeromoças e demais tripulantes cantam, dançam, saltam, piruetam, fazem corinho e coreografia até com insuspeitos coletes salva-vidas. Arrasam no rap, arriscam passos de street dance e por pouco não chegam ao moonwalk. Praticamente um remix de Glee com Apertem os cintos... O piloto sumiu!

A justificativa da empresa para o investimento hollywoodiano no clipe – além da óbvia promoção da marca – é impedir que o passageiro, entediado com as orientações de sempre, cochile a ponto de babar nos estofados e acabe não prestando a devida atenção a informações essenciais na hora de correr até as saídas de emergência.

Parem as turbinas da aeronave que eu quero descer. Quer dizer que agora até basiquíssimas instruções de segurança precisam ser apresentadas de maneira “divertidinha” para atrair olhos, ouvidos e neurônios alheios? Que me perdoem os fãs e seguidores do fantástico show da vida: mas hoje tudo – absolutamente tudo – tem de ser entretenimento?

Do jeito que as coisas vão, logo professores só ensinarão orações subordinadas e equações do segundo grau se tiverem tanto talento para stand-up quanto um transgênico de Adnet com Porchat; médicos só passarão suas prescrições se bailarem a Macarena com duas melancias penduradas no estetoscópio; jornalistas só comentarão as taxas de juros se as entremearem com as últimas da novela; juízes só lerão suas sentenças se derem uma palhinha – entre um inciso e outro – do Sinatra que escondem sob a toga.

Já estou até vendo os manuais de geladeira do futuro, todos escritos à moda Agatha Christie, a fim de deixarem o leitor em suspense até a derradeira especificação técnica. Conseguirá Miss Marple solucionar o mistério dos alimentos descongelados? Que fará Hercule Poirot diante do estranho caso da porta que não veda? Serão os dois grandes detetives, em parceria inédita, capazes de decifrar o maior de todos os enigmas: como remover as prateleiras para limpeza?

Imaginem as filas de banco, então. Divididas entre os setores vip e vipão, como naqueles teatros com nome de cartão de crédito. Repletas de garçons atrapalhando a visão do palco ao oferecerem bolinhos de bacalhau a preço de salmão com azeite trufado. Superlotadas de aposentados esperando a vez de receber seus caraminguados – enquanto funcionários os distraem com acrobacias de fazer qualquer Cirque du Soleil parecer aula de ginástica da terceira idade.

Sinceridade? Medo de abrir a caixa preta do mundo e descobrir lá dentro uma gigantesca plateia de colegas de auditório.

domingo, 10 de novembro de 2013

Procura-se um amigo que goste de castelos

Poetas antigos diziam que navegar é preciso, viver não é preciso. Frase bonita, para alguns gloriosa. Mas prefiro minha versão: navegar é preciso porque viver é. Navegar como sinônimo de viajar. Viajar de carro, ônibus ou avião; de livro, filme ou novela; de conversa fiada com os amigos ou papo sério com os filhos – até com o espelho tá valendo. O negócio é sair do lugar, de si, conhecer o outro, ir além do horizonte. É não ficar guardando lugar pra morte. É subir na garupa da vida e só parar pras fotos.

Toda essa volta ao mundo em mais de oitenta palavras é só pretexto pra eu fazer escala no que muita gente já sabe: adoro viajar. Não só sem sair do lugar – o que também acho superbacana etcétera e tal –, mas especialmente saindo dele. Pra trocar uma ideia com a Bri em Búzios, tomar uns goles de sulfurosa no sul de Minas, degustar churrascos e chocolates na Serra Gaúcha, acelerar o buggy e o bronzeamento nas praias do Nordeste, visitar princesas e camundongos em Orlando.

Os destinos podem ser novos ou velhos – todos sempre guardam um quê de primeiríssima vez se soubermos olhar com atenção. No caso dos velhos, o (re)encontro costuma ser ainda mais surpreendente e prazeroso quando estamos na companhia de um marinheiro de primeira viagem. Como é bom ver de perto o rosto de quem, apenas naquele momento, de repente descobre o Corcovado ao descer do bondinho, desvenda Machu Picchu ao abrir a Porta do Sol, devassa a Times Square ao sair do metrô ou desnuda Paris ao atingir o alto da Torre Eiffel.

É quase como recuperar através dos olhos – e, consequentemente, da alma – do outro o flash do instante em que defloramos aquela vista, lá em mil novecentos e lembrança. Saudade que me dá, por exemplo, do segundo em que a Fernanda entrou na Main Street, a rua principal do Magic Kingdom, e se deparou com o famigerado castelo da Cinderela, que antes só existia pra ela nos folhetos turísticos. Senti ali uma espécie de encanto terceirizado, um tipo de gozo por transferência. Sem brincadeira.

(Sintoma típico de um cérebro em constante turbulência, talvez agravada pelos efeitos colaterais do jet lag e do amendoim barato servido no avião. Vai saber.)

Falando em avião, tenho considerado seriamente a possibilidade de decolar pros States no próximo ano e – adivinha – aterrissar novamente na Flórida. Só que, desta vez, pelo menos por enquanto, não há ninguém na trupe capaz de proporcionar ao meu coraçãozito aquele nirvana por delegação. Todos são marujos de segunda ou terceira viagem. Cá entre nós, ainda não me conformei nem um pouquinho com isso. Sigo em busca, portanto, de donzelas de Mickey interessadas.

De moços e moçoilas – não importa a idade – dispostos a desafiar piratas, fantasmas e múmias; a enfrentar aliens, dinossauros e terminators; a encarar bruxos, decepticons e duendes verdes; a planar de asa-delta e foguete; a viajar do Paleolítico à Tomorrowland, do México ao Canadá (com parada obrigatória em Paris e Liverpool); a experimentar as minusculices de uma vida de inseto; a escalar o Everest só pra correr da Criatura das Neves; a estar na chuva – e noutros splashs – pra se molhar; a ter só pensamentos felizes do primeiro zip-a-dee-doo-dah (lá pelas sete e pouco da matina) ao último sininho de fogos de artifício.

A quem se encaixar no perfil, fica o convite.

domingo, 3 de novembro de 2013

Cobrança indevida

Era ainda bem cedo quando tive de ouvir a apresentadora do Bom dia sei-lá-o-quê anunciar, entre os destaques do telejornal, a seguinte reportagem: “O que há com Leonardo DiCaprio? Bonitão e bom ator, nunca se casou e jamais ganhou um Oscar”. Peraí. Eu escutei direito? Quer dizer que atores esbeltos, talentosos, solteiros e esquecidos pela Academia devem procurar tratamento urgente em alguma clínica especializada em... atores esbeltos, talentosos, solteiros e esquecidos pela Academia?
                            
De que mal essas criaturas sofrem afinal? (Onde vivem? Do que se alimentam?) Elas, eu não sei. Nem consigo imaginar. Mas a que tirou do fundo da pauta matéria tão palpitante – digna de Globo repórter com Glória Maria ou de série especial no Fantástico com o doutor Drauzio Varella – só pode sofrer de uma coisa: falta de assunto crônica.

Mania que esse povo tem de ficar enviando fatura pro endereço alheio. Você não pode trocar dois selinhos que já querem saber o recheio dos bem-casados. Não pode pisar no cartório que já querem saber a cor da chupeta do rebento. Não pode receber alta da maternidade que já querem saber o nome do irmãozinho. Não pode botar o guri na creche que já querem saber se você está preparado pra ser avô.

Se for famoso então, coitado. Se tiver a infelicidade de ser um DiCaprio, coitado em dobro. Vai ter que explicar por que prefere cinza se o turquesa é tão mais a sua cara. Vai ter que contar tintim por tintim o que fez a noite toda naquela pizzaria cercado de fatias (muito) suspeitas de marguerita e calabresa. Vai ter que esclarecer o boato de que cortou relações com o Scorsese. Vai ter que dar uma coletiva botando os pingos não só nos is, mas também naquela história de que é o rei do mundo.

Aff. Não bastassem as contas de água, luz e telefone; a internet, a tevê a cabo e o pay-per-view; os planos de saúde e funerário; as taxas contra incêndio, dilúvio, asteroide, ataque terrorista e invasão extraterrestre; a prestação da geladeira; os dez por cento no restaurante e no salão de beleza; a cervejinha do [censurado]... a gente ainda precisa pagar diariamente as promissórias que os desocupados da própria vida insistem em colocar na nossa caixinha de correio?

Deixa eu pensar: não, né? Que nesses casos é aconselhável – e certamente mais saudável – ficar inadimplente.

domingo, 27 de outubro de 2013

Detalhes

Jardim de infância. Eu devia ter uns quatro, cinco anos. Subia e descia o escorrega do parquinho da escola, quando me deu aquela vontade de fazer xixi. Fiquei com vergonha de pedir à tia Cláudia pra ir ao banheiro e acabei molhando o uniforme. Não lembro bem como foi, mas depois confessei (ou confessaram) meu crime a ela e voltei pra casa de shortinho trocado.

Outra: tomei mamadeira até sete, oito primaveras. Juro. Podem anotar aí que o marmanjo aqui, que já sabia ler e escrever – a ponto de ter desbravado sozinhamente as páginas do clássico infantil O pintinho cabeçudo –, saboreava o mingau de mamãe todo santíssimo dia antes de ir pro colégio. E ainda lambia o bico.

Querem mais? A vez em que quase engoli uma moeda. Podia ter sido uma bala Soft, mas não – foi o vil metal. Sinal precoce da minha ganância capitalista de (ainda) pequeno burguês. Não por acaso eu também devorava as revistas do Tio Patinhas e as coxinhas mais poupançudas nas festinhas de aniversário dos amigos.

O pior vocês não sabem: sempre senti uma inveja caímica do meu irmãozinho por ele ter aprendido a andar de bicicleta e eu não; por ele chegar aos chefões de fase do Sonic muito antes de mim; por ter me levado à falência inúmeras vezes jogando Banco Imobiliário; por mostrar mais jeito pra Romário do que eu. Pensa que eu esqueci aquela caneta no play bem na frente dos outros, manito?

Mas meu dark side não para por aí. Fui à Disney duas vezes e, em ambas, me emocionei ao abraçar o Mickey. Chorei vendo Marley e eu no cinema. Fiz a coreografia (completa) de “Ilariê” na minha festa de casamento. Perco a dignidade aos primeiros acordes de “Dancing queen”. Ainda mergulho biscoito no café. Discuto novela como se fosse vida real. Corro de lagartixa feito figurante japonês do Godzilla.

Já votei no Fernando Henrique e no Lula.

Alguém há de perguntar a razão desse arquivo confidencial. O motivo dessa sessão de descarrego. O porquê desse momento meu-passado-me-condena. Só estou me antecipando a quem se arriscar a escrever minha biografia não autorizada. A quem ousar invadir minha privacidade e botar no varal do mundo aquela velha calça desbotada (ou coisa assim).

Não adianta nem tentar.

domingo, 20 de outubro de 2013

Democratices

O mundo anda esquisito demais. E não estou dizendo isso porque de repente passei a comer carne crua. Ninguém tem nada com a cor do meu bife – a não ser, talvez, o meu cardiologista. É que o mundo desandou a dar sinais de esquisitismo mesmo, daqueles perigosamente antidemocráticos, que deixam até a criatura mais blasé com vontade de vestir a fantasia de Che Guevara e revolucionar a América.

A América, então; terra dos livres e dos bravos, a land que vive arrotando liberdade e Coca-Cola – sério mesmo que a Liga da Justiça cismou de caçar um ex-NSA/CIA/FBI/NASA/SHIELD/ETC. só porque ele contou pro Fantástico e o resto do planeta que os States espionam até o e-mail da Dilma Bolada? que o Baraca está mclancheinfeliz só porque grampearam a privacidade da Casa Branca?

Snowden no HD dos outros é refresco.

Pois bem feito pro Obamis: mereceu inclusive o puxão de orelhas que levou da nossa Rainha de Copas na frente dos coleguinhas das Nações Unidas (sic). Aliás, discurso bonito o dela: proparoxítono, eu diria. Defesaça dos direitos humanos e civis. De fazer muito Odorico se suicidar de inveja só pra inaugurar cemitério superfaturado. Pena, porém, que o sermão não tenha se estendido a outros pecadores, daqueles menos cotados para o próximo Nobel da Paz.

Como certos prefeitos e governadores, que insistem em combater pó de giz com gás lacrimogêneo, spray de pimenta e bombas de efeito imoral. Que se julgam licenciados, alguns até pós-graduados, para dar lições de cinismo e truculência. Que matam as aulas de democracia – e somem com os corpos – porque sabem que vão ser aprovados no fim do mandato, protegidos que são por tropas de elite armadas de bazuca e microfone.

Disse e repito: o mundo anda esquisito demais. Tão esquisito que pensei (juro) em me despedir citando um versinho, quiçá uma estrofe inteira, de um clássico do pagode mela-calcinha, “Essa tal liberdade”, do Só Pra Contrariar, sucesso nos anos noventa. Mas desisti a tempo. Em respeito à soberania intelectual dos meus leitores.

domingo, 13 de outubro de 2013

Uma secretária de passado

Contrariando a (minha) regra básica de todo festival de cinema – a de que a graça não está em ver antes de todo mundo o novo Tarantino, mas em garimpar as fitas que jamais darão o ar dos créditos nem em catálogo de mostra de diretor iraniano underground –, desta vez não quis embrulhar meus neurônios mais navegantes e resolvi, por isso, atracá-los num porto seguro: o de Liverpool.

É lá que se passa boa parte do doc Nossa querida Freda – a secretária dos Beatles, cuja protagonista é uma quase setentona que, aos de-zes-se-te anos, e depois de frequentar fãzocamente os porões do Cavern Club, tornou-se o mindinho direito de John, Paul, George, Ringo e (Brian) Epstein, o primeiro empresário da banda.

Mindinho porque, apesar de colher autógrafos, dedicatórias, mechas de cabelo, pedaços de camisa e até mimos inusitados (como uma fronha dormida por Ringo) de seus patrões a fim de enviá-los (os mimos, claro) às membras do fã-clube – e de estar sempre tão perto deles a ponto de a imprensa, em dado momento, cogitar um casamento entre ela e Paul –, Freda procurou ser a garota mais nowhere possível, e em nenhum instante pareceu tirar proveito da situação para se promover ou ganhar uns trocados com souvenirs, furos ou biografias não autorizadas.

Tanto é que ainda hoje malha os dedos de secretária nos teclados da vida e raramente comenta com familiares e amigos os anos imersos no submarino amarelo. Ela mesma diz que só decidiu falar para a câmera do cineasta Ryan White quando se deu conta de que logo o neto recém-nascido encontraria a avó sentada numa cadeira, gato a tiracolo, e não imaginaria o que ela tinha feito na juventude.

Uma de suas responsabilidades (ou privilégios) era receber as centenas de cartas que chegavam toda semana à sua casa, ingenuamente transformada por ela em sede postal do fã-clube, que passou a presidir. Seu pai, coitado, nadíssima feliz com o trabalho da filha, é que se revirava para achar – entre milhares de love, love, love – as contas de água, luz e gás.

De certa forma, Freda era como essas contas: um resquício de vida-como-ela-é, um vestígio de sobriedade e comedimento, em meio a tanta histeria. Quase inacreditavelmente, a menina adolescente adulta – que, segundo a própria, amadureceu rapidamente naqueles anos – conseguiu manter os pés fincados no meio-fio da realidade, ainda que diariamente atravessasse abbey roads e penny lanes.

A certa altura do filme, ao ser indagada sobre um possível affair com um dos rapazes, ela pede entre sorrisos para pular a questã. Não se poderia esperar outra reação – à Monalisa – de quem foi tão íntima do mítico quarteto e, mesmo assim, encarava o emprego dos sonhos de qualquer beatlemaníaco como um emprego, sem aparentemente se deixar entorpecer pelo céu de diamantes que pairava sobre sua cabeça.

A você, admirador do Fab Four: se tiver a chance de ver e ouvir essa simpática história de bastidores – deliciosamente emoldurada por canções que vão da sessentíssima “I saw her standing there” à discretamente fofa (como Freda!) “I will” –, não pense meia vez. Garanta já seu ticket to ride.

domingo, 6 de outubro de 2013

Das merkwürdige Kätzchen

Eu podia ter ficado em casa vendo a Sessão da tarde e zapeando aquela pipoquinha de micro-ondas nos intervalos. Esticadão no sofá. Mas não: resolvi encarar o dia nublado, com mais de oitenta por cento de chance de chuva e canivete, para ver um filme do Festival do Rio. Unzinho pelo menos.

Não o novo do Woody Allen, do François Ozon ou do maior cineasta iraniano de todos os tempos da última mostra em Cannes, que esses têm telona cativa nas melhores salas do ramo. A graça dos festivais, ao contrário, está em garimpar as fitas que jamais darão o ar dos créditos nem em teaser de retrospectiva do cinema finlandês.
 
O escolhido da vez foi um alemão de 72 minutos cujo título original, impronunciável, encobria um singelo A gatinha esquisita. Não, não era uma cinebiografia da Angela Merkel, nem um documentário sobre códigos secretos usados por nazistas durante a Segunda Guerra. Era tão somente, segundo a sinopse, “uma espirituosa fábula sobre os encantos que a rotina pode reservar”.

E mais não sei.

Pois não assisti nem a cinco minutos do chucrute. Motivo: falta de legendas. Depois de sobreviver ao perfumadíssimo saguão do velho Espaçunibanco, quase tão salubre quanto a Câmara de Vereadores da cidade, eu e mais dezenas de cinéfilos – além dos organizadores do festival – descobrimos que a película não tinha sequer um miado traduzido.

Resultado: baixou o black bloc na plateia. Uma facção passou a exigir desesperadamente a interrupção da sessão. Olelê, olalá, se o filme não parar, o Terceiro Reich vai bombar. Outra turma – as senhoras de laquê – preferiu reivindicar um loiro alto, espadaúdo, que fizesse dublagem simultânea.

Um senhorzinho com jeito de tuberculoso e meio surdo – tossia que nem poeta romântico e reagia a tudo com delay – decidiu se manifestar, aos berros, a favor da devolução do dinheiro. Só que: cerca de meio minuto após avisarem que o longa seria exibido mesmo sem legendas e os que desejassem poderiam reaver o valor do ingresso na bilheteria.

Vaia no vovô, coitado. (Felizmente, a cena foi menos trágica que cômica, graças às risadas, em maior metragem que os apupos.) 

Eu acabei seguindo a massa – mais discreta, conservadora , que preferiu não gastar o alemão na frente de estranhos, ainda que com a luz apagada. Se fiquei frustrado? Nem tanto. Afinal, não é todo dia que a gente entra no cinema às escuras (duplo sentido, por favor) e sai dele com a crônica semanal garantida e o seu dinheiro de volta.

domingo, 29 de setembro de 2013

O poderoso chefão

Já faz uma semana que Bruce Springsteen devorou a Cidade do Rock. Que sua voz rascante tragou os tímpanos de uma plateia a um verso do êxtase. Que sua guitarra ensandecida engoliu uma multidão de corações a uma nota da catarse. Que sua banda raspou o prato de um festival até então carente de uma estrela maior.

“Exagerado. Você é mesmo exagerado. Adora um sessentão azeitado.”
  
É o que hão de cantar as bibas invejosas, que never ever serão tão divas quanto a Beyoncé; as balzacas adormecidas, ainda sonhando com o dia em que ganharão um selinho do príncipe Bon Jovi; os dedicadíssimos musers, que, por motivos óbvios (além dos numéricos), jamais farão de seu power trio um fab four; as lolitas sabor tutifrúti, sempre mascadas – e mascáveis – pelo primeiro Justin que lhes cruza o palco, seja Bieber ou Timber; e até os metaleiros mais cabeludos e tatuados, que juram identificar música onde eu só decodifico grunhidos no volume máximo.

Mas contra fatos – e o inoxidável rock’n’roll – não há argumentos nem pirotecnias: The Boss, como é conhecido Springsteen, não precisou trocar de fantasia a cada duas ou três canções (e nos fazer esperar pelo número seguinte com aqueles clipes chatérrimos, saídos de algum pesadelo de Dalí); não precisou suar a cabeleira loira, os olhos azuis e o peito descamisado; não precisou solar – exibida e infinitamente – a guitarra até o chão; não precisou coreografar feito cheerleader de série B; não precisou de máscara de caveira, nariz de palhaço ou bandeira do Brasil.

A ele bastaram a sensibilidade e, por que não, a esperteza de abrir o show evocando Raul Seixas e sua “Sociedade alternativa”; a simpatia e a coragem de ir pra galera mais do que qualquer outro artista (para desespero dos seguranças e alegria dos fãs); o fôlego de cantar e tocar e pular e correr quase ininterruptamente por mais de duas horas e meia; a entrega de corpo, alma e carisma a cada faixa do repertório; o clímax apoteoticamente arrebatador, ao som de “Twist and shout” e fogos de artifício.

A ele bastou uma apresentação sem frufrus, um espetáculo sem rapapés, um concerto sem rococós – a guitarra só lâmina.

O único senão: eu não estava lá para pedir bis.

domingo, 22 de setembro de 2013

Feliz ano velho

Sábado à noite e eu trocando ideia com o controle remoto só podiam dar em filme repetido, humorístico sem graça ou sono profundo. Não deram. Acabei tropeçando nos dedos e caindo no Viva, em mais uma reprise do Globo de ouroMas não numa edição qualquer: a derradeira de 1988, com direito a Cláudia Abreu e César Filho estourando champanhe e desejando feliz ano novo.

De bônus, Xuxa encerrando a parada musical ao som de ilari-ilariê-ô-ô-ô.

Foi o gole de nostalgia que faltava para eu desligar a tevê, beijinhar a Fernanda (já no sétimo sonho), fechar os olhos e, como num episódio de Além da imaginação, amanhecer com a voz da mamãe me desninando baixinhamente: tá na hora, tá na hora... tá na hora de acordar... pula, pula da caminha, que o café vai esfriar...

Levantei as pestanas ainda no modo sonâmbulo, sem entender lhufas do que estava acontecendo. O rádio-relógio piscava números vermelhos: cinco e quarenta e um. No quarenta e dois, Freddy (o Krueger) surgiu na porta do quarto e avisou que o ônibus não ia me esperar, que eu ia perder a aula, que eu ia levar falta, que eu ia...

Antes que ele fizesse do meu sonho a hora do pesadelo, tratei de largar o travesseiro e me teletransportar para o último banco do busão espacial da Tia Esther e Seu João. De uniforme azul, kichute, lancheira do Jaspion e meias; aquelas meias – que, de tão infinitas, quase cobriam minhas pernas do Oiapoque ao Chuí.

Só não eram tão infinitas quanto o caderno de caligrafia, que a cada lição deixava mais inchados meus as, bês, cês, dedos. Sorte que o recreio chegou logo. O pobre do lápis já não aguentava mais peregrinar tanta estrada pontilhada; bastou o sinal tocar – ándale, ándale! – para ele se pique-esconder no estojo com a rapidez de um Ligeirinho.

E eu reencontrar a passagem secreta para o pátio – bem maior que o que tinha sobrado na memória. Comecei a correr. Corri como toda criança um dia correu: parnasianamente. Mal tive antenas (de vinil?) para captar a presença dos amigos saltitando as figurinhas do Careca e do Maradona, panfletando lulalá e lalalalalabrizoooola, levando cupidamente meu Amar é... até a Garotinha Ruiva.

De repente me vi num furacão tão mas tão Oz que mal consegui sentir o choc-choc-chocolate do lanchinho Mirabel.

Foi o sopro (tufão, vai...) de lembrança que faltava para eu despencar buniiiito da cama. Fiz plunct plact zum como se não houvesse chão e amanhã. Só restaram destroços – escombros de menino, ruínas de saudade. E, claro, as bochechas da Fernanda assustadíssimas com aquele barulho todo: o que foi, o que foi?

Nada não, meu Anjo. Apenas um réveillon inesperado.

domingo, 15 de setembro de 2013

De olhos bem abertos

Não sei se é azaração, paixonite, namorico, compromisso sério, união estável, casamento até que a morte nos separe. Talvez seja amizade colorida – ainda que tenha lá seus momentos em preto e branco, seus incontáveis tons de cinza, suas horas meio sépias. A foto, digo, o fato é que estou pegando a fotografia.

A paquera começou quando um amigo em comum passou a postar seus instantâneos nas redes sociais. Não demorou para eu me encantar com aquelas paisagens bucólicas da Urca, com aqueles bem-te-vis que pareciam posar para um documentário do Discovery, com aquelas flores que poderiam ter crescido num jardim do Monet.

Desde então, vivo de câmera a tiracolo – quase como um japa de férias em Paris –, caçando flagrantes não só da natureza, mas também, e especialmente, das ruas, das calçadas, dos becos, dos rostos, dos gestos, das luzes, dos muros: de qualquer pedra-no-meio-do-caminho que se revele um verso; de qualquer pichação que, sob o melhor ângulo, se desfaça em grafite.

Vale tudo: o arquiteto (do breve) erguendo castelos na areia; o beijo sendo roubado numa esquina à primeira vista segura; o buggy amarelo raiando o asfalto nublado; o balanço repousando numa pracinha descriançada; o vidro estilhaçado dando ares de Picasso ao casario velho; o sorriso afrouxando a multidão de gravatas; o sol descascando entre paredes desbotadas; a lua pingando por uma fresta de céu.

Nem preciso dizer o quanto estou curtindo encher a memória da minha Samsung. A razão de tanto chamego talvez esteja em escolher o que clicar, que se aproxima muito do ato – igualmente prazeroso e arriscado, às vezes tenso – de decidir o que escrever: aquela contagem regressiva (progressiva?) até o flash, segundo-luz em que passamos a enxergar o mundo sem os filtros do senso comum, com o zoom da sensibilidade, quiçá com a resolução da poesia.

Não saio mais por aí como antes, quando parecia usar antolhos, só via o caminho da padaria, do trabalho, do shopping, e não registrava o olhar do menino devorando os doces do balcão, o labirinto de baias soterrando neurônios, a prateleira de sapatos seduzindo corredores de pernas.

Agora só ponho os pés para fora de casa com as janelas – da alma – escancaradas.

domingo, 8 de setembro de 2013

Com que roupa eu vou

De repente a mocinha morria. Bem no meio do casamento. Pra espanto dos convidados, pra tristeza dos amigos, pra alegria da malvada – que só estava de olho na herança e no noivo. Até aí nada demais: apenas mais uma cena cafona da novela, sublinhada, negritada e italicizada pela trilha sonora exibicionista e pelo overacting do elenco.

O demais veio depois, do outro lado, quando a criatura de cabelos ruivíssimos e esvoaçantes – a postos para o próximo merchan da Wella – acordou no céu, no purgatório, no limbo, na laje do inferno, sei lá, com aquele figurino branquinho, cheio de bordados, brilhos e rococós.

Pergunta que não quis fechar a boca: ela fez a passagem de véu e grinalda? vai correr dos espíritos de luz, vagar entre nuvens de cromaqui e horizontes de fotoxópi, assombrar os vivos e os telespectadores, curtir a eternidade inteirinha dentro daquele modelito casei-com-o-vestido-da-bisa?

Fiquei preocupado. Mesmo. Imagina se eu desencarno agorinha e apareço diante de São Pedro, nas portas do Paraíso, de pijama velho, meia furada e chinelo gasto. No mínimo, o santo vai achar desfeita. E se ele considerar pecado mortal então? Minha nossa: já estou até me vendo a caminho das masmorras celestiais escoltado por anjinhos do Esquadrão da Moda.

Melhor eu comprar uns ternos, umas gravatas e garantir um traje adequado pra ocasião. Quem sabe até um sobretudo. Vai que lá é frio – caso o meu não seja a praia particular do Coisa Ruim. Pelo sim, pelo não, talvez o mais indicado seja preparar uma bagagem de mão com short de banho e protetor solar. Afinal, não sei a quantas anda meu plano de milhagem com o Divino.

Juro: passei dias e dias pensando no melhor visu pra bater as botas... botas! Como pude esquecê-las? Vão já pra mala. Item de primeiríssima necessidade em caso de ira do Hômi, que nessas horas não poupa nuvens carregadas, dilúvio e inundação na periferia do Éden. Não seria a primeira vez (Noé que o diga).

Chuvas e trovoadas à parte, levei quase um mês refletindo sobre a matéria. Sério. Até a noite em que, sem uma piscadela de sono, liguei a tevê e esbarrei num filme meio experimental, toda pinta de vanguarda, no qual os mortos – as mortas, principalmente – perambulavam pelo Infinito como vieram ao mundo. Ou quase. Descontemos os silicones.

Daquela madrugada em diante, como que por milagre, relaxei com o guarda-roupa. Minha preocupação passou a ser outra: entrar o quanto antes numa academia, achar um personal dos bons e aprimorar a forma pro post-mortem – pra quando enfim chegasse a hora de me despir de vez do paletó de madeira.

domingo, 1 de setembro de 2013

Ponto final

Levei um bom tempo ignorando seu corpinho magro sobre a escrivaninha, meio que se escondendo entre livros e lápis, ingenuamente refugiado sob as contas do mês (logo elas), tentando se passar por mais uma daquelas canetas que insistem em se perder do estojo. Ficamos quase uma semana nesse escreve-e-apaga: nos fingindo de mortos.

Só que ela estava morta de fato já havia alguns dias, desde que expirou sua última ponta de grafite no meu caderno de anotações bobas. 

Foi tudo muito rápido. Estava eu no sofá, a tevê no mute, o note em descanso de tela. Ruminava umas ideias de lá, mastigava umas palavras de cá, quando a coitada engasgou feio e travou do bico à borrachinha. Ainda a sacudi, dei-lhe uns tapinhas, fiz massagem, troquei o zero-sete, mas nada. Não deu mais sinal de vida.

Senti o baque. Tanto é que não tive coragem de enterrá-la na hora, e ela foi parar na minha mesa, em meio a dezenas de alrafábios (é assim que eu chamo os meus alfarrábios). Ganhou a chance de se despedir de seus fiéis companheiros de escritório e até de alguns desafetos, como a Dona Borracha, de quem invariavelmente divergia.

Vou sentir saudade daquela magrelinha azul. Fez tanta lista de supermercado generosa, com direito a Häagen Dazs e Passatempo recheado. Calculou tanto orçamento de viagem que acabou em retratos felizes. Grifou tanta besteira de rir sozinho no metrô cheio. Deu (algum) sentido a tanto parágrafo-maçaroca. Anotou tanta frase que virou crônica. Disputou tanto jogo da velha. Rascunhou tantos sonhos.

Me ajudou a jamais esquecer o e-mail da minha primeira e única namorada.

Pena eu não poder reunir mais todas as folhas pelas quais ela passou um dia, nas quais rabiscou estórias, guardou segredos, deixou pegadas, sublinhou memórias, tracejou mapas, circulou tesouros – estradas de celulose nas quais riscou versos, sílabas, letras, dúvidas, exclamações, não sei quantas vírgulas de vida.

Só eu mesmo pra arrumar melancolia numa hora dessas.

domingo, 25 de agosto de 2013

Levantar âncora

O sujeito traçando o pê-efe no balcão do boteco, as crianças atravessando a rua fora da faixa, a dona examinando as laranjas no hortifrúti e, de repente, dou eu de novo com aquela senhorinha tomando sol no banco da praça, inclinada sobre as páginas de outro tijolaço (não mais do Kafka ou do Bandeira, agora da Jane Austen) e desavisada do resto do mundo – daquele mundo.

Me veio na hora: fortalecendo os ossos e a cabeça, não é, madame?

Quase sempre é chato à beça ficar tirando lição de tudo que se vê, mas a cena era metonímica demais pra deixar passar: a representação perfeita de quem atravessou décadas sem perder a capacidade – e o desejo – de continuar vitaminando corpo e mente, de quem não permitiu que uma âncora a prendesse num porto aborrecidamente seguro.

Oxalá as pessoas copiassem o exemplo daquela velhinha, especialmente as que, ainda jovens, insistem em pendurar um ferregulho no pescoço do próprio barco.

As que seguem sempre o mesmo caminho até o trabalho; as que engolem sempre o mesmo filé com fritas; as que borrifam sempre o mesmo perfume de rosas; as que veem sempre os mesmos filmes de ação; as que escutam sempre a mesma banda de rock; as que assistem sempre ao mesmo canal; as que pegam sempre a mesma praia nas férias; as que sempre.

As que nunca içam velas em busca de um horizonte que as surpreenda.

E acabam não descobrindo a lojinha de fantasias na rua paralela à do trabalho; o sabor delicadamente adocicado do molho teriyaki; o aroma exótico da flor das sete cores; a elegância surreal daquele Woody Allen às margens do Sena; os versos de poeira e carvão de um forró do Seu Luiz; o programaço de entrevistas no finzinho do controle-remoto; o chalé bem no alto da montanha.

O mar aberto à sua frente – inundado de possibilidades oceânicas.

Aos navegantes, um aviso daquela senhorinha (de quem me tornei amigo após dois ou três olás, e fã número um depois que me mostrou as fotos de sua última viagem à Disney): jamais permita que seu casco encalhe numa ilha distante e fique lá o resto da vida. Você corre o risco de perder contato com novas correntes, de se acostumar com uma paisagem só, de se deixar molhar pelas mesmas ondas – de virar um náufrago por acomodação.

Não deve ser por acaso que sua próxima aventura – ela me contou toda animada  seja um cruzeiro. Daqueles com sistema all inclusive. Faz sentido.