domingo, 17 de julho de 2016

Aquele abraço

Como assim ainda não levaram para a escola de superdotados do Professor Xavier o menino português que, em vez de tirar um sarro do francês chorão, estendeu sua empatia e o abraçou? Sério que não recolheram nem uma amostra de sangue do pequeno gajo? Não extraíram nem uma gotícula de saliva? Não puxaram nem um fiozinho de cabelo? Não arrancaram nem um bife da unha?

Alô, alô, cientistas, o gene desse potencial mutante – se clonado em larga escala – pode salvar a humanidade do vírus da indiferença e, por tabela, da extinção.

Não foi por acaso que encantou o mundo a cena do miúdo consolando o marmanjo após a final da Eurocopa, em que Portugal venceu a França. Como a vitória improvável de um time sem o seu craque, só encanta o que surpreende. Só encanta o que foge à regra. Só encanta a notícia que não esperamos ver na manchete. Só encanta o que não costuma estar nas prateleiras do cotidiano. Só encanta o cravo que nasce no asfalto.

Só encanta o que os males espanta.

Mau sinal que um carinho chame tanta atenção. Não deveria ser normal o transeunte oferecer uma quentinha ao sem-teto esfomeado? o aluno nota dez ajudar o colega com dificuldade em equações? a vizinha segurar a porta do elevador enquanto o vizinho entra com o carrinho do bebê e o carregamento de fraldas? o chefe liberar a funcionária mais cedo para ela levar o pug resfriado ao veterinário? o motorista parar no sinal verde até a dona senhorinha atravessar a rua? o prevenido dividir o guarda-chuva com o desprevenido? os adversários dentro de campo trocarem cartões de Natal fora dele?

O nativo abrir as portas de sua casa para o refugiado?

Quase tão desconcertante quanto o gesto do garotinho luso foi o gol de Éder, que garantiu o título europeu aos portugueses. Num momento em que a xenofobia tem goleado a cooperação entre os povos, em especial no Velho Continente, o tento marcado por um imigrante nascido em Guiné-Bissau e criado em Coimbra – na decisão da mais importante competição local entre nações – foi de estufar a rede dos reaças de plantão.

Ao correr para o abraço com os companheiros de equipe, o mais novo herói português rimou bonito com a canção composta por David Guetta para o torneio, a onipresente “This one’s for you” – um hit que não só miscigena sonoridades lestes e oestes, refletindo assim a diversidade cultural que constitui a Europa, como ainda celebra em seu refrão que “vamos continuar fortes juntos”.

Quem dera esse verso ecoasse além das quatro linhas.

domingo, 10 de julho de 2016

O Império contra-ataca

Passados vinte anos, os aliens resolvem atacar os Estados Unidos da Terra mais uma vez. E mais uma vez num Quatro de Julho. Tanto tempo e os ETs de Independence Day não atinaram o óbvio: que não há chance de vitória contra os americanos quando eles estão num dos seus raros dias de folga. Bem se vê que poderio bélico e vida inteligente não caminham necessariamente juntos.

Outra conclusão a que cheguei ao final do filme: tamanho não é mesmo documento. Nem uma nave capaz de cobrir um oceano inteiro – e de pulverizar uma capital como Londres – faz sombra àquela (bem menor) que mandou a Casa Branca pelos ares. Claro, essa sequência gerou tanto impacto à época, a ponto de se tornar antológica, porque foi realizada muito antes da queda das Torres Gêmeas, quando a América (e o Ocidente de modo geral) ainda conservava certa aura de território inexpugnável.

Hoje em dia, a consciência de que nenhum lugar é seguro (nem Nova York, nem Washington, nem Paris, nem Orlando) talvez dilua a comoção da plateia diante dessas explosões de terabytes. Acrescente-se a isso o fato de o longa de 1996 ter (re)aberto as portas do cinema para o apocalipse, possibilitando que vulcões, tsunamis, asteroides e até uma profecia maia tirassem suas casquinhas da superfície terrestre – o que de alguma forma anestesiou o público para cenas espetaculosas de destruição em massa.

Já que superar o original com mais tiro, porrada e bomba seria quase impossível, que se tentasse com os novos personagens. Não deu. Você soma todo o elenco jovem (que conta até com o irmão do Thor que não é o Loki, mas o ainda inexpressivo Liam Hemsworth) e não atinge dez por cento do talento e carisma de Will Smith – cujo capitão Steven Hiller virou apenas uma foto na parede depois de sua morte durante testes do primeiro caça com tecnologia alienígena.

Salvam-se ali os veteranos, entre os quais Bill Pullman – que, se agora não sobe no carro de som para levantar a moral da tropa, ao menos mantém o olhar charmosamente canastra de presidente herói – e Jeff Goldblum – que sustenta a imagem de profissional sério (uma espécie de consultor do governo para assuntos interplanetários) sem deixar de lado o bom humor diante do absurdo, como no instante em que comenta que os ETs adoram destruir nossos pontos de referência.

Infelizmente, tiradas divertidas como essa não redimem o roteiro – que seria mais atraente se desenvolvesse as boas ideias que sugere e não sucumbisse a velhos preconceitos. Por um lado, minutos que poderiam ser usados para detalhar a ação dos ETs presos na Área 51 ou os incidentes na África (onde o pouso de uma nave deu origem a uma batalha campal entre humanos e aliens) são desperdiçados com bobagens, como a caricatura irrelevante e sem graça de Nicolas Wright. Por outro, o cuidado de se mostrar um mundo menos machista que o de duas décadas atrás – com mulheres em posições de comando – é sabotado pelos próprios roteiristas, que concebem a presidenta americana como uma líder que, invariavelmente, toma decisões erradas e precisa ser substituída por... homens.

Esses tropeços, no entanto, ainda poderiam ser minimizados se o filme conseguisse ao menos emular a tensão crescente de seu antecessor, quando os espectadores iam ficando mais e mais aflitos a cada ofensiva terráquea que esbarrava nos sistemas de defesa do inimigo e nos aproximava da extinção. Não consegue. Culpa do clímax, que inclui uma godzilla mais desengonçada que assustadora perseguindo um típico school bus? Ou do clímax do clímax, que traz quatro caças manobrando explicitamente contra a monstrenga, sem que a esquadrilha adversária se mexa para defendê-la, permanecendo confinada naquele carrossel inútil em torno de sua rainha?

Se não chega a ser um desastre – em especial graças à memória afetiva que certas passagens e personagens despertam nos fãs –, o novo ID aterrissa nas telonas a anos-luz de seu precursor. Arrasa tanto quanto arrasou, desta vez, um famoso cartão-postal, causando nele meras escoriações e fazendo tombar tão somente a bandeirinha que tremulava em seu topo.

domingo, 3 de julho de 2016

Ilhados

Não satisfeita com a aliança de brilhantes, o bolo confeitado a ouro e o salão cujos lustres devem ser mais caros que o meu apê, a noiva queria porque queria pinguins na sua festa de casamento. Você não leu errado: pinguins. E lá foi a lindona a um desses aquários gigantes (tipo Sea World) alugar o que, nas suas palavras, eram os bichinhos mais fofos do universo. Só que, ao entrar na gaiola, ela se deu conta de que os tais bichinhos não eram tão fofos assim. Faziam barulho, fediam a peixe e – muito malcriadamente – bicavam quem se aproximasse deles para uma selfie involuntária. Preocupada com o conforto e a integridade física de seus convidados, a moçoila resolveu então substituir os animais por réplicas de pelúcia.

Pode parecer um episódio perdido de Twilight Zone, mas é apenas mais um casório registrado pelas câmeras do Vestido ideal: o grande dia, do Discovery Home & Health.

Só esse pedacinho de programa já merecia uma ação do Greenpeace em parceria com a Sociedade Protetora das Aves Que Vivem em Iglus. Valia até um #ocupaigreja ou o confisco dos bem-casados. Qualquer coisa que chamasse a atenção da dondoquilda e de qualquer outro desavisado capaz de achar o máximo, por exemplo, incluir uma onça pintada no roteiro da tocha olímpica.

Surpresa nenhuma essa incompetência do ser humano em se pôr no lugar de outras espécies. Não consegue se pôr no lugar nem da própria.

Continuo esperando ansiosamente o dia em que vamos entender, de uma vez por todas, que o outro não é obrigado a ser como a gente espera que ele seja. Que nem toda mulher sonha com a maternidade. Que nem todo rapaz sonha com a habilitação. Que nem todo menino gosta de futebol. Que nem toda menina prefere rosa. Que nem todo gay conhece a obra completa da Lady Gaga. Que nem todo jovem vira o finde na balada. Que nem toda vovó se vira no tricô. Que nem todo tímido quer vencer a timidez. Que nem toda gordinha quer vencer a balança. Que nem todo deputado exige propina. Que nem toda madrasta é vilã. Que nem todo brasileiro seca os argentinos. Que nem todo carioca frequenta a praia. Que nem toda princesa mora num castelo cheio de muros.

Tem a mulher que concebe romances policiais, o rapaz que faz da bike o seu conversível, o menino que quer ser o próximo masterchef, a menina que (tal qual a Cinderella) adora azul, o gay que coleciona as rosas atiradas pelo Rei em seus shows, o jovem que passa a madruga lendo Pessoa, a vovó que não perde um rapel com os amigos, o tímido que acha ótimo ir ao cinema sozinho, a gordinha que seduz a si mesma com suas curvas, o deputado que – pasmem – respeita seus eleitores, a madrasta que é mãe, o brasileiro que reverencia o Messi, o carioca que gosta de dias nublados.

A princesa que vive na aldeia.

Certamente esse não era o caso daquela noiva e o de muitas pessoas por aí – que têm passado cada vez mais tempo em seus castelos de pelúcia e, por isso, se assustam sempre que topam com pinguins de carne, osso e penas. Daí a necessidade de sair da caixinha com mais frequência e conhecer outras realidades. Deixar a ilha onde residimos e dar umas voltas no continente ajuda a exercitar a empatia. Principalmente: diminui o risco de fazermos da nossa vida um eterno brexit.

Um plebiscito diário em que, inadvertidamente, escolhemos nos isolar do resto do mundo.

domingo, 26 de junho de 2016

Pegadinhas

É triste e revoltante constatar o quanto a grande mídia brasileira – a cada dia menos constrangida em se mostrar sócia de quem só pensa em manter privilégios e restringir direitos – se esforça para desinformar a população. Chega a ser nocivo, para a saúde de olhos e ouvidos minimamente treinados contra a manipulação, conviver com a desfaçatez de certos veículos da imprensa.

Semana passada, chamou minha atenção – em especial agora, quando Temer e seus blue caps tentam limitar os investimentos em educação, desvinculando-os dos percentuais mínimos garantidos em lei – um artigo de Antônio Gois, publicado no Globo, em que eram listados os avanços alcançados na área nas últimas duas décadas, justamente em razão do maior volume de recursos aplicado.

Entre tais avanços, estava o fato de o número de crianças na escola ter praticamente dobrado. O fato de o contingente de brasileiros entre 25 e 34 anos com ensino médio completo ter saltado de 26 para 61%. O fato de o prolongamento da vida estudantil ter resultado em trabalhadores com maior renda – porque mais escolarizados – e em índices menores de gravidez na adolescência e mortalidade infantil. O fato de, entre jovens de 15 a 17 anos, a simples expansão de matrículas ter diminuído as taxas de homicídio.

Embora admitisse que a qualidade do ensino não melhorou na mesma proporção e que poderia ter sido feito muito mais com o dinheiro investido, o autor fazia questão de ressaltar, em sua conclusão, que os passos dados até aqui eram suficientemente importantes para não considerarmos inútil o esforço de se destinar um percentual maior da receita para a educação.

Infelizmente, no entanto, só chegaria a essa conclusão quem clicasse na chamada exibida na primeira página do jornal, que curiosamente fugia E MUITO da proposta do texto: “Gastos e resultados – aumento do investimento público em educação não melhorou qualidade de ensino”. Os incautos que parassem no título – e eles não são poucos – certamente teriam o “argumento” necessário para defender em seus zap-zaps o tal limite de gastos proposto pelo governo interino.

Não é a primeira vez que topo com esse tipo de pegadinha. Nem com esse tipo de pegadinha em relação ao mesmíssimo tema.

Há alguns meses o jornalista William Waack, em programa na Globonews, diante da notícia de que o Brasil dava mais do seu PIB para a educação do que países mais ricos – e, mesmo assim, sofria com a baixa qualidade do ensino –, revirou as célebres olheiras antes de sugerir um corte urgente de despesas no setor. Mais uma vez, a informação era mutilada: o apresentador não acrescentou que, em virtude do imenso número de estudantes brasileiros, nosso gasto com cada um era apenas o penúltimo numa lista de 34 nações, incluídas aqui outras dez em desenvolvimento.

Mera coincidência ou linha editorial? Descuido ou má-fé?

Por essas e outras (como os recorrentes editoriais que põem a culpa dos déficits bilionários na Constituição Federal de 1988, que garantiria mais direitos do que o Estado pode bancar), tendo a acreditar cada vez mais na velha máxima de Darcy Ribeiro: a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto.

Inclusive – e em grande parte – midiático.

domingo, 19 de junho de 2016

Dias piores virão

Quem não se lembra do parlamentar chamando de “marco na depravação da sociedade” o beijo entre dois homens numa novela? Quem não se lembra do pastor vociferando contra um selinho entre duas mulheres – exibido pela emissora que, segundo ele, contribuía assim para “a destruição de valores morais fundamentais”? 

Quem não se lembra do pai que – ao dar ao filho umas panelinhas de brinquedo, com o intuito de mostrar a ele que cozinhar é uma tarefa comum a homens e mulheres – foi xingado de canalha nas redes sociais por ensinar o menino a “fazer coisas de menina”? Quem não se lembra da cantora baiana incentivada a “arrumar um quarto” e acusada de “querer ibope” ao se declarar gay?

Quem não se lembra do garoto carioca espancado até a morte pelo pai – que o considerava “afeminado” por gostar de lavar louça e brincar de dança do ventre? Quem não se lembra do jovem paraibano que, após ser agredido e ter o cabelo raspado, foi morto com tiros na nuca e no peito? Quem não se lembra do rapaz asfixiado com uma sacola plástica e pedaços de papel colocados à força em sua boca, nos arredores de Goiânia? Quem não se lembra da travesti assassinada em São Paulo depois de ter sido jogada para fora de um veículo em movimento?

Alguém dirá: são casos isolados. Não são. Aqui se registra um homossexual morto a cada (faço questão de escrever por extenso) vinte e oito horas. Quase um por dia.

E essas estatísticas tendem a piorar – salvo milagre que, obviamente, não há de se dar durante os cultos conduzidos por malafaias e felicianos.

Digo isso porque não acredito em dias melhores, menos homofóbicos, num país cujas escolas são impedidas – por setores conservadores da sociedade e da classe política – de adotar material didático que trata de questões de identidade e gênero (o chamado “kit gay”). Ou cujos governos cedem à pressão de tais setores – que consideram qualquer debate sobre o tema um incentivo à “promiscuidade” – e deixam de usar as salas de aula para combater a ignorância e o preconceito.

Também não acredito em dias melhores num país cujos atuais e temerários inquilinos do poder – em pleno século 21 – extinguem justamente o ministério ligado aos direitos humanos e planejam limitar os investimentos em educação (logo ela), desvinculando-os dos percentuais mínimos garantidos em lei. A fixação de um teto para os gastos na área certamente comprometerá não só a expansão e o desenvolvimento das redes de ensino fundamental e médio, como ainda a criação de vagas nas universidades e, consequentemente, a já precária qualidade de vida da população – em especial das comunidades mais vulneráveis, entre as quais as minorias sexuais.

Nesse sentido, caminhamos na contramão do que sugere um relatório recente das Nações Unidas sobre a América Latina, que pede que os governos locais, mesmo em tempos de recessão, não abortem as políticas referentes ao enfrentamento, por exemplo, da violência de gênero – políticas essas que possibilitaram conquistas sociais e econômicas a grupos historicamente relegados à marginalidade, como o LGBT.

Não bastasse todo esse retrocesso, há ainda uma milícia de parlamentares em Brasília disposta a derrubar o Estatuto do Desarmamento e liberar o porte de armas de fogo. É a tal bancada da bala. Financiada por fabricantes de... armas, ela vem recrutando cada vez mais seguidores com seu discurso bélico, segundo o qual todo cidadão “de bem” – hétero, claro – deve ter o direito de andar armado para se defender.

Como se vê, cidades como Orlando não são tão distantes quanto imaginamos. Quisera eu dizer isso porque mais brasileiros têm realizado o sonho de conhecer a Disney. Mas não. A boate Pulse, onde dezenas de pessoas foram assassinadas com um fuzil cuja munição era a homofobia, podia estar em qualquer uma de nossas esquinas.

Se ainda não está, sobra gente por aqui querendo abrir umas franquias.