domingo, 5 de março de 2017

Mulheres (ainda) à beira

O goleiro condenado por matar a ex-namorada Eliza Samudio, dar sumiço no cadáver e ainda sequestrar o próprio filho foi solto pelo Supremo Tribunal Federal após cumprir menos de um terço da pena. Nem sete anos. Vai aguardar em liberdade a decisão sobre os recursos impetrados por seu advogado.

Não discuto a legalidade do habeas corpus concedido pelo juiz Marco Aurélio Mello. Nem desejo que um réu fique indefinidamente preso enquanto espera o julgamento na instância seguinte – em primeiro lugar, porque isso é ilegal e desumano; em segundo, porque só contribui para abarrotar ainda mais os já superlotados presídios brasileiros.

Mas me incomoda a brandura da lei diante dos crimes cometidos – brandura que certamente reflete a tolerância com que a sociedade encara a violência contra a mulher.

Pois bastou o sujeito deixar a cadeia para os holofotes o procurarem. De repente importa menos o delito e mais a audiência que o astro pode proporcionar. Agora ele aproveita que é a bola da vez para dar entrevistas e exibir a marca de quem “pagou caro” – palavras dele – pelo “erro” que cometeu. De cabeça empinada (como nos áureos tempos rubro-negros), afirma que não apagaria nada que aconteceu; que nem prisão perpétua traria a vítima de volta; e que só quer recomeçar a carreira. Difícil não vai ser, ainda mais no país do futebol (esporte também conhecido como “coisa de homem”): nove clubes já teriam mostrado interesse em sua contratação. A maioria, no entanto, pediu para não ter o nome revelado. Vergonha pura e simples ou – hipótese absurda, espero – receio de gerar frustração na torcida, caso o jogador não vire reforço?

O clímax são as fotos em que ele aparece ostentando o sorriso ao lado da atual esposa e tirando selfies com fãs (fãs!). A reserva no castelo de Caras já deve ter sido feita.

Se o desdém (não só) midiático pelo assassinato de Eliza – ou por qualquer ato de violência contra qualquer mulher – ainda não tinha ficado claro nessa reestreia do atleta no showbiz, ficou quando o “jornalista” Alexandre Garcia (há décadas no rádio, na tevê e agora na internet) comentou com um inacreditável “E eu com isso?” a notícia de que a atriz Jane Fonda sofrera um estupro na juventude.

A frase – responsável por alçar a criatura ao favoritismo absoluto do troféu Babaca do Ano – gerou manchete, mas não deveria gerar surpresa. Afinal, foi assinada por um senhor que sempre e abertamente apoiou um regime (o militar) célebre por torturar mulheres, com requintes que iam do choque elétrico nos órgãos genitais ao estupro propriamente dito, passando pela proibição de amamentar os filhos, também presos.

E outra: não é de hoje que esse mesmo senhor golfa misoginia nas redes sociais. Recentemente, sentenciou que a palavra “feminicídio” era “invenção de quem pensa que homicídio é matar ‘hômi’”, numa demonstração explícita e debochada de que ignora as razões que levam uma mulher a ser agredida a cada onze minutos no Brasil (ou quatro, como no recém-terminado Carnaval carioca).

Ele não é exceção, infelizmente. Em sua companhia, está o editor que estampou na capa do jornal O Globo, há dois anos, em pleno Oito de Março, charge na qual um terrorista do Estado Islâmico ameaçava decapitar a então presidenta Dilma; está o delegado que sugeriu arquivamento do inquérito contra o político que agrediu a esposa (e era candidato a prefeito do Rio de Janeiro); está o traficante que atirou na parceira porque ela se recusou a transar; está o ministro do Supremo que concedeu habeas corpus ao médico que cometeu dezenas de estupros.

Está aquele um em cada três brasileiros que culpa a mulher que frequenta baile funk ou usa roupas curtas por sofrer violência sexual.

Está, enfim, a corja que só alcançou o poder após dar um golpe na primeira mulher eleita presidenta do Brasil; está o vice que deu posse a um ministério formado apenas por exemplares do sexo masculino, desenhando sem pudores a machocracia que insiste em nos subjugar desde o estupro original, há cinco séculos; está o desgoverno que, ao cortar cargos comissionados (em nome de uma austeridade seletiva, porque em geral só atinge os mais vulneráveis), demitiu mais mulheres do que homens – mesmo sendo superior o número de cadeiras ocupadas por eles.

Às vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher, é triste constatar que as filhas deste solo ainda não encontraram a tal mãe gentil.

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