domingo, 10 de abril de 2016

Miopias

Certa vez, ouvi de um crítico de cinema que a maior parte dos espectadores enxerga apenas vinte por cento dos filmes a que assiste. Esse um quintinho abarcaria a história e os atores. Não à toa, ao sair de uma sessão, os comentários costumam variar entre “fiquei com medo”, “a Meryl Streep estava ótima” e “o crédito do meu celular acabou”.

É comum o público não perceber como a fotografia, o figurino, a montagem, entre outros elementos, ajudaram a criar aquela atmosfera de terror ou contribuíram para que aquela atriz fosse indicada ao Oscar pela enésima vez. Poucos se dão conta da delicada carpintaria que os fez rir, chorar ou degustar as unhas numa sala escura por duas horas.

Raros são os olhos capazes de observar, por exemplo, que Kay (personagem de Diane Keaton em O poderoso chefão) vai aos poucos trocando seus vestidos de tons quentes por trajes de cores neutras, porque se deixa paulatinamente esmaecer pela sombra da família Corleone – e não porque, de repente, mudou de personal stylist.

Como raros, raríssimos são os olhos que não piscam justamente nas quatro vezes em que a imagem de Tyler Durden (Brad Pitt) surge subliminarmente no Clube da luta, indicando o quanto a figura do vendedor de sabão já estava presente na vida do narrador, interpretado por Edward Norton.

Quem dera essa miopia – resultado de um olhar não treinado para sutilezas – se curasse assim que as luzes fossem acesas. Mas não. Infelizmente não. Diante do que tem acontecido do lado de cá da telona, chego à conclusão de que a teoria dos vinte por cento vale também para o chamado mundo real.

O caso recente da revista IstoÉ, com uma Dilma aparentemente histérica na capa, é emblemático. Houve quem não visse ali um exemplo clássico de machismo. Mesmo depois de saber que a fotografia – tirada no instante em que a presidenta comemorava um gol do Brasil na Copa – tinha sido manipulada. Mesmo depois de ser apresentado ao conceito de gaslighting, forma de violência psicológica que leva a mulher e todos a seu redor a acharem que ela enlouqueceu ou é emocionalmente incapaz. Mesmo depois de ser confrontado com uma capa de outra revista (a Época), em que a fúria do treinador da seleção brasileira de futebol – um homem – era interpretada como um dom.

Mais um sinal dessa epidemia de catarata que parece ter contaminado o país? As reações de ódio dirigidas à esposa do ex-presidente Lula após a divulgação de suas ligações telefônicas. Não entendo como alguém não consegue visualizar a má-fé de uma mídia que – sob o pretexto de registrar o passo a passo de uma investigação que envolve políticos, empresários e corrupção – põe no ar um diálogo entre mãe e filho no qual ela usa palavrões para xingar os vizinhos batedores de panela. Em que um telefonema desses ajuda a esclarecer sobre propinas e afins? Como as pessoas não se dão conta de que a conversa foi exibida com a única intenção de depreciar a ex-primeira dama?

Talvez já esteja entre nós o mal branco imaginado por Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira. Só isso para explicar o fato de um indivíduo não compreender que repetir piadas de “viado” é dilatar o terçol da homofobia; que dizer que a mulher estuprada não deveria ter saído sozinha de casa à noite é deslocar a retina da culpa para a vítima; que ser contra programas de renda mínima (como o Bolsa Família) e a favor da meritocracia é fechar os olhos para a desigualdade de oportunidades; que criticar político corrupto e furar a fila do banco e molhar a mão do guarda e sonegar impostos é fazer vista grossa para os próprios malfeitos.

Uma sugestão de tratamento para tantos distúrbios óticos? Uma receitinha caseira contra os clichês volantes? O uso contínuo do colírio da leitura, dos óculos do bom senso e das lentes da empatia. Não vão transformar nenhuma córnea em olho de Thundera – mas vão proporcionar ao seu dono alguma visão além do alcance.

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