domingo, 24 de janeiro de 2016

Profissão repórter

Recentemente, o jornal O Globo defendeu em editorial a “modernização” da legislação trabalhista como saída para “preservar os empregos atuais” e “acelerar a criação de novos”. Não satisfeito em acusá-la de “arcaica”, afirmou ainda que a CLT (a Consolidação das Leis do Trabalho) tinha sido inspirada “no fascismo de Benito Mussolini”, numa clara tentativa de demonizá-la ao relacionar sua origem a um regime totalitário.

À época, comentei com amigos que a história se repetia; bastava um momento de crise econômica para que os grupos midiáticos – grandes empresas que vivem do dinheiro de outras grandes empresas (os anunciantes) – apontassem como solução de todos os problemas o ataque aos direitos adquiridos dos trabalhadores. Brinquei ainda que logo, logo iam recomendar a volta da escravidão como antídoto contra o desemprego: casa, comida e trabalho garantidos até o fim da vida.

Seguindo uma tradição de décadas – vide a antiga capa da mesma publicação em que se anunciava o quão desastrosa seria para o país a criação de um décimo terceiro salário –, o jornalismo brasileiro de massa tem, com poucas exceções, assumido cada vez mais a posição de mero hipermercado de factoides e reles assessoria de imprensa da elite econômica e do capital financeiro.

Outro exemplo? Matéria publicada também em O Globo, há algumas semanas, sobre o número de acidentes nas rodovias federais. Entre suas principais causas, eram apontados “o despreparo dos motoristas e a falta de manutenção dos veículos”, mas não era mencionada a batida combinação direção + bebida alcoólica. Às vésperas do Carnaval – período em que, provavelmente, as cervejarias gastam fortunas ainda maiores com publicidade –, talvez não fosse conveniente fazer tal associação.

Diante de um cenário desses, em que o negócio vale mais que a notícia, fico imaginando quantas histórias de abuso sexual envolvendo padres deixariam de vir à tona se o editor Marty Baron, recém-chegado ao The Boston Globe, tivesse recuado ao ouvir de um superior que mais da metade dos leitores do jornal era católica. Pois ele não só ignorou a pressão do chefe e do mercado, como ainda escalou seu melhor time de jornalistas – o Spotlight que dá título ao filme de Tom McCarthy, indicado a seis Oscars – para investigar os crimes de pedofilia cometidos por párocos na capital de Massachusetts.

Baseado em fatos que ocorreram nos idos de 2001 – quando a internet começava a disputar “consumidores” com a mídia impressa, o que torna a decisão de Baron (Liev Schreiber) ainda mais admirável –, o longa mostra a equipe formada por Walter Robinson (Michael Keaton), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Matt Carroll (Brian d’Arcy James) e Mike Rezendes (Mark Ruffalo) descendo aos porões de casos aparentemente isolados e, de repente, descobrindo a máfia que sobrevivia graças à cumplicidade entre o alto escalão da Igreja e a sociedade local.

Uma fala do advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci), veterano em assistir as vítimas dos estupros, ilustra bem a situação: “If it takes a village to raise a child, it takes a village to abuse them. That’s the truth of it” (“Se é necessária uma aldeia para criar uma criança, é necessária uma aldeia para abusar dela. Essa é a verdade”).

Verdade que os integrantes do Spotlight perseguem com tanta dedicação que mais parecem exercer um sacerdócio – o que não deixa de ser irônico, levando-se em conta quem eles investigam. Coerentemente, o roteiro do próprio McCarthy e de Josh Singer pouco se interessa por suas vidas pessoais. De Robinson, sabemos que joga golfe; de Sacha, que tem uma avó religiosa; de Matt, que se preocupa com os filhos; de Mike, que corre nas horas de folga até... o trabalho.

Eixo de uma narrativa sem floreios e (quase) sem humor, a busca do quarteto – que exige meses de pesquisa, apuração, entrevistas – alcança ainda mais relevo em razão da ausência de perseguições alucinantes, melodramas artificiais ou quaisquer outros artifícios que pudessem desviar a atenção da plateia. Recursos mais sutis ajudam a sublinhar a dimensão da empreitada, como a presença de templos católicos no fundo de várias sequências ao ar livre, o que sugere uma atmosfera de ameaça constante.

Ao final da projeção (em que é relatado, entre outros desfechos, o inacreditável destino de certo cardeal, suspeito de acobertar os pecados de seus padres), o espectador sai do cinema com a certeza de ter acompanhado uma lição de bom jornalismo – coisa rara em tempos de tabloides cada vez mais angustiados com o número de cliques em seu crescente conteúdo online. Não por acaso, o que deveria ser usado como instrumento importante da democracia tem dado lugar a manchetes sensacionalistas (muitas vezes fruto de acusações sem provas) e artigos de meia página cuja relevância só não é maior do que a das inspiradas notinhas dos cadernos de entretenimento.

Sempre dispostas a advertir o leitor de que “Caetano atravessa rua no Leblon” ou de que “Chico compra baguetes para o lanche da tarde”.

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