domingo, 13 de outubro de 2013

Uma secretária de passado

Contrariando a (minha) regra básica de todo festival de cinema – a de que a graça não está em ver antes de todo mundo o novo Tarantino, mas em garimpar as fitas que jamais darão o ar dos créditos nem em catálogo de mostra de diretor iraniano underground –, desta vez não quis embrulhar meus neurônios mais navegantes e resolvi, por isso, atracá-los num porto seguro: o de Liverpool.

É lá que se passa boa parte do doc Nossa querida Freda – a secretária dos Beatles, cuja protagonista é uma quase setentona que, aos de-zes-se-te anos, e depois de frequentar fãzocamente os porões do Cavern Club, tornou-se o mindinho direito de John, Paul, George, Ringo e (Brian) Epstein, o primeiro empresário da banda.

Mindinho porque, apesar de colher autógrafos, dedicatórias, mechas de cabelo, pedaços de camisa e até mimos inusitados (como uma fronha dormida por Ringo) de seus patrões a fim de enviá-los (os mimos, claro) às membras do fã-clube – e de estar sempre tão perto deles a ponto de a imprensa, em dado momento, cogitar um casamento entre ela e Paul –, Freda procurou ser a garota mais nowhere possível, e em nenhum instante pareceu tirar proveito da situação para se promover ou ganhar uns trocados com souvenirs, furos ou biografias não autorizadas.

Tanto é que ainda hoje malha os dedos de secretária nos teclados da vida e raramente comenta com familiares e amigos os anos imersos no submarino amarelo. Ela mesma diz que só decidiu falar para a câmera do cineasta Ryan White quando se deu conta de que logo o neto recém-nascido encontraria a avó sentada numa cadeira, gato a tiracolo, e não imaginaria o que ela tinha feito na juventude.

Uma de suas responsabilidades (ou privilégios) era receber as centenas de cartas que chegavam toda semana à sua casa, ingenuamente transformada por ela em sede postal do fã-clube, que passou a presidir. Seu pai, coitado, nadíssima feliz com o trabalho da filha, é que se revirava para achar – entre milhares de love, love, love – as contas de água, luz e gás.

De certa forma, Freda era como essas contas: um resquício de vida-como-ela-é, um vestígio de sobriedade e comedimento, em meio a tanta histeria. Quase inacreditavelmente, a menina adolescente adulta – que, segundo a própria, amadureceu rapidamente naqueles anos – conseguiu manter os pés fincados no meio-fio da realidade, ainda que diariamente atravessasse abbey roads e penny lanes.

A certa altura do filme, ao ser indagada sobre um possível affair com um dos rapazes, ela pede entre sorrisos para pular a questã. Não se poderia esperar outra reação – à Monalisa – de quem foi tão íntima do mítico quarteto e, mesmo assim, encarava o emprego dos sonhos de qualquer beatlemaníaco como um emprego, sem aparentemente se deixar entorpecer pelo céu de diamantes que pairava sobre sua cabeça.

A você, admirador do Fab Four: se tiver a chance de ver e ouvir essa simpática história de bastidores – deliciosamente emoldurada por canções que vão da sessentíssima “I saw her standing there” à discretamente fofa (como Freda!) “I will” –, não pense meia vez. Garanta já seu ticket to ride.

4 comentários:

  1. Muito bom a resenha, companheiro!
    Me lembrei de quando li o livro da ex-secretária de Hitler, Traudl Junge (longe de qualquer comparação, por favor!) e de como ela muito nova também, passou a ter contato com um personagem histórico tão marcante ... Até em sua última entrevista, antes de morrer, ela continuava a afirmar que nunca iria ser perdoar por ter feito parte daquilo tudo, apesar de não se envolver "diretamente" ...
    No livro ela deixar parecer que encarava o trabalho como um trabalho "qualquer" também ...
    Devemos sempre relativizar as coisas ... mas sob determinadas circunstâncias é bem complicado ...

    Bom ... achei seu blog no Orkut ... hahaha !
    Se puder depois de uma olhada no meu ...

    Abraços!
    http://reflexoesdostoievskianas.wordpress.com/

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  2. Esse ano não fui no festival... :( minha prima que iria pirar em ser secretária deles... na verdade não iria ser, já que não conseguiria se concentrar no trabalho... rsrs

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  3. Que interessante a história dessa mulher, com certeza deve ter muitas histórias e segredos para contar.

    ótima resenha!

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  4. Nossa, muito interessante esse post. Confesso que não sei quase nada sobre os Beatles, mas saber do profissionalismo dessa jovem foi demais! Nos dias de hoje, a secretária de uma banda super famosa e bem sucedida, tentaria tirar proveito de todas as formas possíveis. Freda, no entanto, quase se deixou cair no esquecimento...Gostei muito, se tiver oportunidade, tentarei assistir a esse documentário com certeza!

    http://meupassatemponodiaadia.blogspot.com.br/

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