domingo, 30 de dezembro de 2012

Aviso aos navegantes

Pode ser que, de repente, a gente não vá pra Califórnia
Nem vire artista de cinema

Ainda assim, vivamos sobre as ondas – num indo e indo infinito

Que o vento beije nossos cabelos
Que o sol abrace nossos corpos
Que nossos corações cantem felizes

Que uma luz azul nos guie com firmeza
Que os recifes lá de cima (se existirem) nos avisem dos perigos
Que fiquemos bem à vontade pra descobrir os sete mares

Navegar é o que mais queremos

Que em todo porto tremule a velha bandeira da vida
Que todo farol ilumine uma ponta de esperança

Que caminhemos muito além dos passos de formiga
Com vontade, vertigem, paixão, vício

Que levitemos de tesão

Que abramos as asas, soltemos as feras, caiamos na gandaia
Que entremos em toda festa: dançando bem, mal, sem parar, até sem saber dançar
(Tudo bem, tudo zen, meu bem)

Que não desejemos mal a ninguém
Que conheçamos a dor (nem sempre é so easy viver)

Que provemos toda forma de amor
Que nos permitamos o som da guitarra, a voz rouca e o coração na mão

Que encontremos para todo mal a cura

Que possamos rabiscar apenas mais uma (história) de amor
Mesmo que ela não passe de uma ideia na cabeça
Mesmo que ela não tenha a menor obrigação de acontecer

Mesmo que sejamos os últimos românticos
A bordo desta nau de insensatos

domingo, 23 de dezembro de 2012

A árvore da vida

A cena aconteceu num shopping abarrotado – ou amarrotado? – de gente, embrulhos, luzinhas e jungle bells. Que jingle bells o quê. O lugar era a selva. Mal havia espaço nos cipós de pisca-piscas. Mal se via o chão coberto de azevinhos. Mal se ouvia o canto dos canarinhos-de-petrópolis. Enfim.

O fato é que – contra todas as probabilidades – escutei uma conversa entre duas senhorinhas, provavelmente amigas de muitos Natais passados, na qual uma delas recordava o primeiro ano de casada, o primeiro dezembro, quando ela e o marido compraram e montaram juntos a primeira árvore.

Tão bom enfeitá-la! iluminá-la! – lembrava com uma gotinha de saudade nos olhos. No segundo ano, nós até a tiramos da caixa, mas praticamente na véspera, no dia 22, 23. No terceiro, a preguiça nos venceu e, a partir daí, só colocamos a guirlanda na porta. E olhe lá.

Anoiteci (como uma conhecida canção natalina). Quer dizer que bastaram três anos para um pinheirinho com ares de árvore da Lagoa se transformar num amontoado de galhos sem graça? Para aquelas bolas vermelhas, aqueles noéis fofinhos, aquelas fitas douradas se tornarem apenas bolas, noéis, fitas?

Os sinos gemeram.

Seria a tal árvore uma espécie de metonímia da relação daquela mulher com o marido, com o mundo, com a vida? Teria ela se desencantado com todo o resto? Com o enésimo jantar a dois, o enésimo almoço em família, o enésimo cinema de sábado, o enésimo churrasco de domingo, a enésima viagem pro litoral, o enésimo livro na cabeceira, a enésima notícia no jornal, o enésimo alarme do despertador?

Espero que não.

Ainda que os dias, os meses, os anos surjam como panetones recheados desses e de tantos outros enésimos (aquelas frutinhas cristalizadas de rotina), tentemos não nos deixar vencer pelo desencanto. Tentemos não nos contentar, preguiçosamente, com a guirlanda na porta.

Todo ano, assim que acabar o Natal presente, comecemos a cultivar a árvore do Natal futuro: pensemos cores diferentes, escolhamos badulaques novos, procuremos lâmpadas com efeitos mais especiais; não demos chance para que certos fantasmas escondam nosso pinheirinho numa caixa de papelão perdida no alto do armário.

Bem antes da chegada da noite feliz, façamos questão de que ele esteja pronto, abarrotado de embrulhos, luzinhas e – agora sim – jingle bells. Mas o mais importante: abarrotado da gente. Da nossa vontade de enxergar em cada um daqueles enésimos – dos mais divertidos aos mais entediantes, dos mais alegres aos mais tristes – um motivo para celebrar a vida; para enfeitá-la e iluminá-la todos os dias do ano, antes, durante e depois de cada 25 de dezembro.

Mesmo que de vez em quando ela nos amarrote um bocado.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Bodas de coral

Última terça, 10 de dezembro. Liguei pra Mãe. Queria saber como tinha sido a viagem a São Lourenço, sul de Minas – descansou? passeou? fez sol? tirou muita foto? coisa e tal. Papo vai, papo vem, vai também aquela pesquisinha básica dos presentes de Natal: camisa pro Pai, perfume pra Tia, CD pro Mano e demais etcéteras a serem encomendados ao Sr. Noel.

Filho exemplar, não? Tão atencioso com a família. Tão dedicado aos seus. Tão... Que nada. Bastaram dois, três minutinhos no telefone pra Dona Angela me lembrar da falta que uma folhinha faz: hoje seu pai e eu completamos 35 anos de casados.

Ah, é mesmo?! Parabéns!...

Ela agradeceu as quatro palavrinhas – regadas a espanto e constrangimento – e a conversa continuou. Sem melindres. Pelo menos da parte dela. Só que eu me senti tão culpado de não ter guardado a data com a devida atenção que resolvi aplicar a mim mesmo punição das mais severas: um ano sem sorvete (quem me conhece sabe o quão pesado é o castigo). Nada de picolé, sacolé, latinha, caixinha, cremoso ou não. Casquinha, nem pensar. Vetada até a raspadinha de gelo.

E mais: o compromisso de assinar esta tentativa meio desajeitada de homenagem, esta croniqueta que não faz jus a anos tão intensamente (e bem) vividos – que merecem ser comemorados com buquezão de flores, festa-flashback, jantar romântico, semana na Disney, show do Paul McCartney, tudo que desejarem. Ainda será pouco.

Desses 35 anos, participei de 32 (fora os nove meses de sombra, água fresca e soninho gostoso no útero de mamãe). Mais de 11 mil dias juntos, inúmeros instantes de porta-retrato e a oportunidade de compreender o significado dos únicos substantivos capazes de abraçar os adjetivos que definem uma relação verdadeiramente a dois: amizade, carinho, companheirismo e – a apelação é sincera – amor.

Brigado, Mãe. Valeu, Pai. Pela história escrita genuinamente a quatro mãos (dadas).

Que as bodas de vinho – daqui a 35 anos ainda mais felizes – sejam tão saborosas quanto a vida que cultivaram até aqui. Que tenham aquele gostinho de champanhe estourando réveillons, de fogos explodindo copacabanas, de alegria espalhando risadas e (por que não?) de sorvete serenando verões.

(Só espero que, após tantos substantivos, adjetivos e afins, eu possa requerer anistia. Ou ao menos um relaxamento de pena. O indulto natalino, acho que já consegui.)

domingo, 9 de dezembro de 2012

Contato

Sabe aquele filme que você nunca viu inteirinho, do orgulhosamente-apresenta ao the-end, mas – vira e mexe e zapeia – assiste a uma cena aqui, escuta um diálogo acolá, invariável e inacreditavelmente os mesmos? Contatos imediatos do terceiro grau e eu. Caso típico de contato nada imediato e, no máximo, de primeiro grau.

Vez ou outra eu esbarrava no trecho em que o garotinho é levado pelos ETs: elezinho na janela exclamando ingenuamente “Toys!”, maravilhado com os efeitos especiais dos visitantes; a enceradeira e outros utensílios incorporando o poltergeist; as luzes invadindo aquela-casa-no-meio-do-nada por todos os poros, da fechadura à lareira; o desespero da mãe ao não conseguir evitar o sequestro do filho. Arrepios provocados sem solavancos sonoros ou explosões digitais. Bons tempos.

Tão bons quanto a última semana, quando finalmente tive a chance de percorrer o clássico spielberguiano do Deserto de Sonora, no México, à Montanha do Diabo, nos Estados Unidos. Como o jovem Roy Neary (interpretado por Richard Dreyfuss), resolvi enfim me deixar abduzir pela nave-mãe. E a viagem valeu a pena.

A começar pela sequência na qual Roy está em seu carro e acena para que um apressadinho (só vemos os faróis) o ultrapasse. Instantes depois, outro “apressadinho” surge no retrovisor e também o ultrapassa; só que, desta vez, os “faróis” sobrevoam o automóvel. Ainda o sacodem um bocado, bronzeiam o rapaz com o brilho de trocentos megawatts e, por fim, somem no céu, numa mistura precisa de (muita) luz, câmera, ação e humor – a lanterna que se acende ao final da “experiência”, assustando o herói.

Falando em céu, atenção a cada quadro em que aparece sozinho, aparentemente inofensivo e estrelado, ligando uma cena a outra. “Watch the skies”, diz um personagem a certa altura. Há sempre um pontinho bem suspeito riscando o firmamento, atravessando a tela. E mais coisas entre céu e filme do que supõe nossa vã ufologia. Nada ali é coincidência.

O épico Os dez mandamentos na tevê, o monte pelo qual os doze “escolhidos” ficam obcecados, o fato de serem doze escolhidos, os pombos – elementos que não dão o ar da graça por acaso ou milagre; entrelinhas bíblicas que transbordam do roteiro e nos conduzem até o desfecho antológico.

A sequência da Revelação – na qual os homenzinhos cinzentos descem de sua nave technicolor ao som de notas musicais tão encantatórias quanto as do flautista de Hamelin, talvez por isso apropriadíssimas para o derradeiro e mais importante contato. Aqui as palavras soam desnecessárias e, inteligentemente, são em sua maioria descartadas. O que os olhos veem o coração sente.

Sente que acabamos de travar um contato além do imediato e da imaginação – um contato de enésimo grau – com o mais puro cinema. A arte dos que parecem já ter um dia embarcado (para uma galáxia muito, muito distante?) e voltado para contar a história.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Quero ser grande

Diferentemente da maioria dos meus coleguinhas, nunca tive pressa de crescer – virar homem, ganhar meu dinheiro, sair de casa, ser independente. Semprei gostei muito da infância. E, como sabia que ela não duraria eternamente, fiz questão de estendê-la tanto quanto fosse possível. O Mickey na estante da sala não me deixa mentir.

Mas o tempo passa, o tempo voa, já lembrava um velho comercial de banco. Cresci  virei homem, ganho meu dinheiro, saí de casa, sou independente. Só que ainda não sou grande como um dia imaginei.

Como um dia imaginei ser o super-herói de capa esvoaçante requisitado por toda uma Gotham City, o músico idolatrado por toda uma legião de beatlemaníacos, o ator aplaudido por toda uma plateia de Oscars, o autor aclamado por toda uma mesa de chá na Academia, o craque ovacionado por todo um Maracanã.

Pois certa vez, numa das minhas andanças pelos parques temáticos da vida (eu sempre tentando manter vivos os dias de moleque), esbarrei numa máquina de desejos do tipo cigana, daquelas com jeitão de que adivinha o futuro e conhece o passado, como a que mudou a rotina de Josh Baskin (Tom Hanks) no clássico oitentista Quero ser grande.

Bastaram duas moedinhas, uma consulta – do que preciso para ser grande? uma Gotham? uma legião? uma plateia? uma Academia? um Maracanã? –, e ela me deu o mapa do tesouro do pirata Alma Negra: siga aquela estrada de tijolos amarelos até a primeira loja de brinquedos. Hã?! Como é que é?! Não entendi bulhufas. Mas obedeci. Como a criança bem-comportada que sempre fui. O Mickey-chaveirinho na mochila não me deixa mentir.

Segui a tal estrada. Até a tal loja. Ao entrar lá e me deparar com tantos bonecos (e bonecas) que povoaram minhas tardes de menino – e, especialmente, ao descobrir um Batman todo equipado nas mãos de um garoto tão parecido comigo –, me dei conta do que a máquina queria dizer, da piadinha sem graça que ela me havia soprado: o sujeito só é grande mesmo quando vira miniatura.

Seja ele carne e osso ou pura fantasia, seja ele cantor famoso, astro de Hollywood, escritor best-seller, jogador de Seleção – ou rato de desenho animado.

Tão aí meus Mickeys de estimação que não me deixam mentir.

domingo, 25 de novembro de 2012

Bodas de papel

A última crônica da Martha Medeiros fala de uma diferença básica entre os relacionamentos: enquanto uns são produtivos e felizes – nos fazem evoluir e ser a melhor versão de nós mesmos –, outros são limitantes e inférteis – despertam em nós o que guardamos de pior.

Boa pista para saber que páginas temos escrito, que autores e personagens temos sido. A hora é redondinha para pensar nisso. Pelo menos no nosso caso. Amanhã completamos um ano de casamento. Exatos 366 dias (2012 é bissexto) de um romance surpreendente a cada capítulo.

Pois eu desconfiava à-becíssima da minha capacidade e disposição de assumir as responsabilidades de um cotidiano sem papai e mamãe ao alcance dos dedos. Sem as regalias do hotel mil estrelas que a casa deles era. (Que ainda é, e agora mais, porque passei a ser hóspede recebido com honrarias de chefe de Estado. O hotel virou resort.)

Você não desconfiava. Parecia ter certeza – desde os primórdios do namoro – de que eu estava apto à vida a dois. De que eu dava sinais claros de vir a ser o marido que vai à rua sob chuva comprar o remédio para o seu resfriado; que troca a roupa de cama e lava a louça do almoço; que poupa religiosamente uns trocados para viagens a castelos e outros destinos encantados; que encara uma pista de dança a noite inteira sem reclamar do sapato; que escuta suas angústias, raivas, tristezas e etcéteras com beijitos nas bochechas.

Que enfrenta com diligência, bravura – e aspirador a tiracolo – qualquer barata cascudamente repugnante de até dois centímetros.

Ah, a recíproca é verdadeiríssima. Em todos os quês. O que me dá uma certeza também: de que temos escrito páginas de uma história produtiva e feliz; de que temos sido bons autores e personagens – a melhor versão de nós mesmos.

Só não tenho sido o sujeito – uma goleada de perdões – que ignora futebol, mesas-redondas e demais acréscimos. Mas aí já seria pedir o marido perfeito, né? Seria aceitar a existência de duendes e fadas. Seria acreditar em candidato-carochinha às vésperas de eleição. Seria levar a sério os versos do Roberto. E esse cara – avesso a maracanices – definitivamente não sou eu. Acho que jamais seria.

Sorte minha que você não exige edição revista e atualizada de mim. Guarda no coração esta versão mesmo, sem capa dura, papel especial e ainda com uma ou outra errata.

domingo, 18 de novembro de 2012

Skyfall

Uma nota do cinquentenário tema de John Barry: luz. Uma silhueta ao longe: câmera. Um close naqueles olhos azuis: ação.

A primeira sequência de tirar o fôlego, prender a respiração, cortar os pulsos etc. e tal, com requintes de missão impossível (e trocadilho, por favor): carros pá! motos pá! pá! os telhados de Istambul o mercado pá! um trem pá! pá! um trator pá! pá! pá! sock! sock! o túnel pow! pow! pá!

Do tiro certeiro (ou não) para os créditos: Monro Bassey Jones Sinatra Armstrong Bassey McCartney Lulu Simon Bassey Easton Coolidge Duran A-ha Knight Turner Crow Garbage Madonna Cornell White & Keys – a vez de Adele. Me agarro na voz dela enquanto o céu cai e a tela se desfaz em revólveres lápides corpos sombras chamas.

Cá entre nós, para fazer clipe de abertura da série 007, o sujeito não pode ser lá muito certo das ideias. Ou precisa ter cheirado de duas a três pedrinhas de diamantes. Dos bons. Dos eternos.

Por falar neles, suas melhores amigas, as girls (Naomie Harris e Bérénice Marlohe), surgem logo: olhares lábios curvas decotes descartáveis  na batida do martíni perfeito.

Surge ainda o novo Q (o jovem Ben Whishaw), para dar o ar da graça ao filme: uma pistola e um radiotransmissor parecem pouco para quem espera canetas explosivas; mas, acredite, não são.

Como também não é pouco o vilão. Longe disso. Ele entra em cena, rouba a cena, põe o mundo e (o que é bem pior) o Reino Unido em perigo: um Javier Bardem que não é só mais um Silva – inimigo no abismo da (in)sanidade, que não sabe se come ou mata o herói; Coringa sem pó nem batom (ao menos denotativamente), mas com cara e caráter igualmente deformados pelo passado; criatura em ruínas, à beira de um ataque de pelanca sob a peruca louríssima.

E é das ruínas – só que da velha mansão Skyfall – que nasce e renasce o agente secreto a serviço de Sua Majestade, com licença para matar e viajar de primeira classe pelos quatro, cinco, seis cantos mais espetaculares do planeta; explodindo a virilidade, a elegância e – por que não – a sensibilidade de um Daniel Craig a cada aventura mais à vontade nos corredores do MI6.

Seu nome? (Não resisto.)

Bond. James Bond.

domingo, 11 de novembro de 2012

Licença poética

Passei a semana invejando um verso do Manoel de Barros: “Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário”. Quer dizer, invejando qualquer criatura capaz de se identificar com ele. De passar horas fazendo o desnecessário. Cantarolando sem pudor o desnecessário. Somente o desnecessário. O ordinário é demais.

O preciso, o cotidiano, o fundamental está lá, nem precisa sussurrar sua existência: o chão cabeludo do apê carecendo um aspirador; os tênis vindos da rua gritando um sabãozinho básico; as contas na gaveta implorando uma visitinha ao caixa eletrônico; as redações no fundo da mochila (ou os originais no canto da escrivaninha) exigindo acentos, vírgulas, coesões e coerências; a louça na pia; os lençóis pra trocar; o pó pra tirar; os presentes de Natal.

Todos convencidos de que o James aqui atenderá seus pedidos na primeira hora. Tolinhos. Estão reloginhamente enganados: o James aqui atenderá seus pedidos no primeiro... minuto. Nem um segundo a mais.

É a vida seríssima (de terno e gravata) me empurrando sucessivas prioridades de gente seríssima, eu transpirando responsabilidade – ou tendo mais uma crise de TOC, o transtorno obsessivo dos caxias – e trabalhando arduamente para fazer o que é necessário. O extraordinário é demais.

Demais? Escrever, sobretudo. Escrever, escrever com a mesma presteza com que aspiro os confins da casa; com que esfrego solados até arrancar a laminha mais encardida; com que levo os boletos para se bronzear no leitor de código de barras; com que acentuo e virgulo tanto era-uma-vez-minhas-férias quanto política-cultura-e-periferias-urbanas-diálogos-interdisciplinares-de-Aristóteles-a-Nietzsche.

Que me desculpem as emergências – mas escrever é preciso, é fundamental. E um dia há de ser cotidiano e ordinário. Somente o ordinário.

Por ora, no entanto, é (quase) inevitável atender os pedidos da tal vida seríssima. Sorte que de vez em quando ela tira o terno, afrouxa a gravata e se distrai com um verso de Manoel. Só assim o James aqui relaxa e goza uma licença poética.

Ainda que seja no último minuto.

domingo, 4 de novembro de 2012

Posso te falar uma coisa?

Aconteceu no Face. Bastou o Mestre lamentar o fato de a cantora Vanusa “submeter-se” (palavrinha dele) à propaganda do cartão Visa – que recorda o constrangedor episódio do hino nacional – para os discípulos o acompanharem em procissão. Pensei a mesma coisa. Concordo plenamente. Que triste. Quanta degradação. Tudo pelo vil metal.

Haja choro, vela e ranger de dentes.

Felizmente, porém, surgiu uma voz que evitasse a unanimidade mala (ou mula, sei lá). Que descurtisse o queixume do professor e não o compartilhasse com meio mundo.

Que lembrasse o quão maravilhosa é a capacidade do ser humano de rir de si mesmo, de não se levar (tão) a sério, de transformar em piada um pretérito imperfeito.

Como um dia fez o Byafra ao estrelar um comercial em que estridulava “Sonho de Ícaro” e botava o ladrão de automóvel para correr, correr... voar, voar... subir, subir...

Ou o atorzão Ricardo Macchi (o eterno cigano Igor da novela Explode coração) ao tirar um sarro do próprio talento contracenando com o pequenino Dustin Hoffman numa peça publicitária da Fiat.

Nem preciso dizer que os três – Vanusa, Byafra e Macchi – faturaram bons trocados e preciosos quinze segundos de fama nessas brincadeiras. Trolaram a si mesmos e ainda lucraram com isso. Ah, vale destacar: eles não foram obrigados a comer jiló, amarrados no alto de um poste ou torturados com requintes de Jigsaw até que aceitassem participar das respectivas campanhas.

Por fim: se eu fosse a Vanusa, não faria mais um showzinho sequer sem errar a letra de pelo menos uma canção  de propósito, claro. Certeza de que a plateia viria abaixo.

Quiçá pediria bis bradando retumbantemente Amada! Idolatrada! Salve, salve!

domingo, 28 de outubro de 2012

Plantão do lixão

Deu até manchete: bastou passar uma semana catando latinha pra reciclagem, penteando a cabeleira do Picolé, tomando a sopa de entulho da Mãe Lucinda e, principalmente, vendo os primeiros capítulos de Salve Jorge para Carminha desistir do bom-mocismo e demais mixurucadas. A primeira-dama do Divino juntou os penúltimos trocados que arrancou dos Tufões, contratou o juiz Arnaldo César Lewandowski e tirou o pai da cadeia. Os últimos ficaram pro megahair.

Essa saiu no diário esportivo Olé, Mané: o incauto do Adauto virou garoto-propaganda de uma fábrica de chupetinhas, chocalhos e babadores. Só que ele nem desconfia de que os acessórios fazem parte da nova coleção de bonecas do Seu Santiago.

De alguma revista na bancada da Sônia Abrão: a Suelen resolveu tentar (mais uma vez...) a carreira de modelo e enviou umas fotos para a agência da famosa Lívia Marine. Mal sabe a periguete que vai acabar dançando kuduro e outros ritmos proibidos para menores numa boate em Istambul. (Cá entre nós, seria menos perigoso estrelar os filmes da Soninha Catatau... Enfim...)

Entreouvido no programa de rádio do Gentil Soares: enquanto Betânia e Begônia formaram uma dupla sertaneja e saíram em turnê por Madureira, Cascadura, Vaz Lobo e Irajá, a fofa da Zezé – após o estrondoso sucesso de “Eu quero ver tu me chamar de amendoim” – foi convidada por Rosário, Penha e Cida para ser a quarta Empreguete.

Páginas policiais: João Emanuel Carneiro foi encontrado em sua lancha congelado no cinza (mortinho da silva). Principal suspeito: Tony Ramos. Motivo: vingança. O ator não se conformou com a morte prematura de seu personagem (Genésio) na trama das nove e a consequente escalação em Guerra dos sexos, a anacronicamente inviável novela das sete.

Entrevista exclusiva no Jornal Nacional: Nina revelou a Patrícia Poeta que entrou num cursinho de informática e lá conheceu um aparelho chamado pendrive. Contou ainda que já aprendeu a inserir o delicado objeto no computador. “É um admirável mundo novo pra mim”, disse a chef de cuisine.

Uma última informação (juro! hi hi hi!): o Divino deixará de ser bairro e passará a município. A chapa “Tufão prefeito, Cadinho vice” lidera as pesquisas com folga. Mas a oposição ataca e denuncia possível nepotismo: Alexia, Noêmia e Verônica estariam pleiteando cargos, assessores e personal massagistas na futura prefeitura. Oi oi oi...

domingo, 21 de outubro de 2012

Feitiço do tempo

Ah, o Aparício.

Todo dia o pobre coitado chega em casa feito fugitivo  fugindo do trabalho que apenas tolera, do trânsito que engarrafa suas horas, do caixa eletrônico que entra em atualização justo na sua vez, da fila na farmácia que não anda, da vizinhança que reclama, das más notícias que o Bonner continua a ler, da mortadela que venceu há uma semana.

Do mundo que insiste em ser mundo.

Sorte dele que naquela quarta-feira seu controle remoto estava de ótimo humor e o levou até a Idade Média. Ah, a Idade Média. Não espanta que a uma vez chamada Idade das Trevas sirva de oásis na vidinha desértica de Aparício. Pelo menos aquela recriada em Áquila, onde o feitiço de um bispo impede o encontro entre Isabeau e Navarre.

Qualquer cinéfilo (e Aparício é um) conhece a lenda da bela mulher que é falcão enquanto há sol e do nobre cavaleiro que é lobo enquanto há lua. Dos amantes que, mesmo tão próximos, nunca se veem, jamais se tocam. Até o instante mágico em que um eclipse gera um dia sem noite, uma noite sem dia, e o casal pode finalmente derrotar o vilão, quebrando o encanto maldito.

(Para o leitor mais distraído, esquecido ou novinho, estou falando do clássico sessãodatardiano Ladyhawke – O feitiço de Áquila, longa de 1985 dirigido por Richard Donner e estrelado por Rutger Etienne Navarre Hauer, Michelle Isabeau d’Anjou Pfeiffer e Matthew Phillipe Gaston Broderick, vulgo Rato.)

Pois ironia das ironias: não é que duas horinhas naquelas florestas de névoa, naquelas montanhas de neve, naquelas fortalezas de pedra, naquelas masmorras de breu salvaram nosso amigo em fuga de mergulhar mais uma vez nas... trevas?

Pena que por pouco tempo. O tempo de um filme velho na tevê. De um feitiço que se desfaz quando os créditos sobem. De um eclipse que sai de cena antes de os corações serem felizes para sempre. De um sonho que irremediavelmente se transforma em pesadelo ao encarar os bispos nossos de cada dia.

De um Aparício que já acorda assustado por saber que, lá fora, o mundo insiste em ser mundo. E o caixa eletrônico continua atualizando.

domingo, 14 de outubro de 2012

Filme de festival

Mostras de cinema são um parque de diversões para quem quer dar um tempo nos cinemarks e kinoplexes da vida. Para quem quer descansar cabeça e coração de tanto super-herói salvando o mundo, de tanto bruxo salvando o mundo, de tanto vampiro e lobisomem salvando o mundo – de tanto efeito especial salvando o mundo.

Só é preciso ter estômago forte. E mente aberta. Escancarada. Para não passar mal ao tropeçar e cair numa sessão em que o prato principal é um longa que mistura Império Romano, banheiros japoneses ultramodernos, viagens no tempo e mangás. Tudo isso regado a uma trilha sonora que aposta na ópera e em temas épicos dignos de Ben-Hur.

Traduzindo: o filme narra a história do arquiteto romano Lucius Modestus, que de repente passa a fazer inúmeras viagens até o Japão dos dias de hoje, onde se inspira nos banheiros locais para construir termas cada vez mais sofisticadas em sua terra natal. O bonitão (invariavelmente nuzim com a mão no bolso) acaba chamando a atenção da jovem Mami, que acredita ter encontrado nele o herói de seu novo mangá.

Ah, o nome da pérola é Termas romanas. E o da ostra, digo, do diretor, Hideki Takeuchi.

O respeitável público, composto de criaturas quase tão exóticas quanto as que sassaricavam do outro lado da telona, ria loucamente de cada piadinha (involuntária) que o protagonista soltava toda vez que se via diante de um novo aparato dos avançadíssimos sanitários nipônicos. E por pouco não pôs o cinema abaixo quando ouviu o sujeito dar à sua fã uma razão para pensar que eles se veriam de novo: "Todos os caminhos levam a Roma".

Ge-ni-al. É o que devem ter achado a mocinha de óculos à Scorsese, o rapazola de penteado à Tim Burton e a tribo de figurino à Björk.

Já eu  achei divertido. Como divertida pode ser a tarde num parque de diversões. Só é preciso ter estômago forte para encarar as curvas inesperadas da montanha-russa e as esquinas escuras do trem-fantasma. Ou, no caso de um festival de cinema – cujo cardápio costuma ser variado , mente aberta, escancarada, para às vezes digerir um sushi com molho à bolonhesa.

domingo, 7 de outubro de 2012

O sofá de casa

Levei um enorme susto quando soube que a Hebe tinha morrido. No primeiríssimo instante, não acreditei. Não quis acreditar. Não pude acreditar. Gente como ela não morre. Bebe da fonte da juventude, vive pra sempre, tem o quê da eternidade  no máximo fica encantada, já bem dizia o sábio Guimarães Rosa. Ou é congelada para um dia ressuscitar linda de viver.

Mas que nada. A Hebe tinha morrido mesmo. A notícia estava em todos os canais, em todas as rádios, em todos os sites, em todas as manchetes. Estava no choro da senhorinha anônima, no depoimento do artista famoso, na explicação do médico, na homenagem dos amigos. Estava na imagem de arquivo. No silêncio do Roberto. No último selinho do Silvio.

Não era mais uma gracinha daquela pessoinha que bissextamente cantou a música popular, que entrevistou mil celebridades, que beijou outras mil, que cometeu gafes deliciosas, que reclamou do governo, que amou sua plateia, que viveu a vida sem a menor vergonha de ser feliz  que, de tão alegre, tão intensamente viva, gargalhava até em velório.

Cá entre nós, não me surpreenderia se ela fosse vista lá no céu, ao lado da amiga Nair Bello, se segurando para não rir de tanta pompa e circunstância em torno de sua morte.

Hebe ostentava felicidade. E, talvez por isso, provavelmente por isso, não surpreendeu ninguém quando encarou com sorriso e salto alto a doença que a vitimou. Quando enfrentou seus últimos quinze minutos sob os holofotes com o brilho das joias mais caras, com o luxo dos vestidos mais extravagantes, com o vermelho do batom mais forte.

Como disse, levei um enorme susto quando soube que a Hebe tinha morrido. No primeiríssimo instante, não acreditei. Não quis. Não pude. No segundo, entretanto, me dei conta do que havia acontecido. Nem precisei ligar a tevê, o rádio ou o computador. Bastou abrir a porta de casa e ver o sofá da sala  da sala de todo brasileiro – em silêncio.

Inacreditavelmente vazio.

domingo, 30 de setembro de 2012

Mundinho de pelúcia

Meia-noite. Canal fechado. A cena dos três seios censurada no filme do Schwarzenegger. Mas ninguém me impediu de ver a Sharon Stone levando uma bala no meio da cara. Nem de rabiscar o palavrão que é o nome do ator vingador exterminador governador. Onde está São Protógenes nessas horas inadequadas a menores de duzentos anos? Onde está o guardião da Sagrada Tarja Preta e da Santa Imagem Embaçada?

Talvez na cozinha da Tia Nastácia, sob as bênçãos da moreninha do Sítio, lambendo os beiços com as mariolas, cocadas, canjicas e narizinhos da festa animada dos irmãos Cosme e Damião. Lambuzando as calças de tostões açucarados, moedas de amendoim e bolinhos de bufunfa com goiabada de marmelo. Provando os docinhos dos ibejis enquanto aprova a féria da balada – os brigadeiros albinos e suspiros afrodescendentes que vão para o caixa dois.

Quem foi ao banquete gostou. Comeu. Dos quitutes e outras farras jamais esqueceu.

O santinho do pica-pau oco só parece ter se esquecido de uma coisa: de onde veio. Da origem do mundo e da espécie. Da verdade cabeluda. Da Perereca da Vizinha que escapou do quadro do Courbet para caminhar contra o vento, sem lenço, sem documento, sem um tapa-vergonhas. Uma v****a que guarda apenas a alegria-alegria original – o desejo faminto de devorar dentes, pernas, bandeiras, espaçonaves, guerrilhas, cardinales e brigittes.

Que não está aí nem aqui para o que ursinhos de pelúcia fazem ou deixam de fazer no escurinho do cinema. Ah, os fofos meliantes fumam um cigarrinho de sacanagem? Transam uma ervinha de safadeza? Cheiram uma pastinha de vadiagem? Tomam um porre de felicidade? É mesmo? Não sei, não quero saber e tenho pena de quem acha que sabe.

O que sei é que a vida anda policiada demais, cheia de sirenes tocando o terror na bandidagem. E que o mundo se arrasta – São Protógenes não nos escute – cacete, cacete.

domingo, 23 de setembro de 2012

Liberdade, liberdade

Tensão no Oriente Médio. O âncora do telejornal faz cara de paisagem nublada ao ler a mesma notícia todos os dias. Se fosse tesão, talvez seu rosto ensolarasse. A burca queimasse. Mas não. É tensão. Com ene – de energia. Que não cessa nem com as últimas cinzas da bandeira virando pó. Com as estrelas apagando o céu. Com o vermelho escorrendo nas paredes.

Os manifestantes deixam as ruas nuas.

Dá vontade de importar essa gente. Essa massa. Essa paixão. Essa loucura. Essa religião. Essa ideologia. Essa revolução. Essa primavera. Essa tsunami. Essa força estranha que vem, sei lá, do enriquecimento de urânio, das barbas do profeta, do cuscuz marroquino, do quibe cru, das mil e uma noites, das xerazades, dos alibabás e seus quarenta ladrões, do gênio da lâmpada, do que não há sob o turbante do sultão.

Dá vontade de importar essa tropa de elite osso duro de roer para agir nos intervalos da novela. Para pegar um pegar geral pegar também você. Para berrar no funeral dos honestos. Sacudir os esqueletos da nossa festa pobre. Pisar a grama verde-loura da esperança. Decapitar as estátuas de isopor. Sujar o fairplay do dicionário de boas maneiras. Fazer um minuto de silêncio quando o volume da hipocrisia estiver no máximo.

Quando nossos tímpanos finalmente sangrarem uma coca bem gelada.

Aí talvez a tensão e o tesão aterrissem kamikazes por estas bandas  que mais parecem bundas. O âncora do telejornal faça cara de quem bebeu e não gostou do coquetel molotov. A paisagem nublada ensolare. A burca queime. O pó revire as últimas cinzas da bandeira. O céu desapague as estrelas. As paredes desescorram o vermelho.

E a liberdade abra as asas  solte suas feras sobre nós.

domingo, 16 de setembro de 2012

Paraíso

Deu vontade de falar da Vó. Deu saudade daqueles domingos na casa dela, onde a única regra era brincar sem relógios tiquetaqueando: correr descalço o dia inteiro no quintal, sujar as mãos na terra do jardim, não sair de lá sem levar na mochila sacolés, chocolates e os pastéis de queijo mais gostosos de toda a infância.

Saudade também da hora do almoço, da cozinha de azulejos azuis, da mesa em que não cabiam todas as travessas e travessuras, da Dona Mari carinhosamente nos intimando a provar e repetir umas duzentas vezes cada prato, do bolinho de bacalhau à salada de frutas. Afinal, neto nenhum seu podia ser magrinho. O que as vós da vizinhança iam pensar?

Saudade até da cara (quase) feia que ela fazia quando nos esquecíamos de pedir sua bênção ou um beijinho de tchau. Do seu olhar levemente preocupado quando iniciávamos a Vigésima Sexta Guerra Mundial das Almofadas e usávamos como trampolim o enorme sofá da sala – que fazia a curva do outro lado da rua.

Saudade do zelo com que cuidava das camisas do Vô Maneco, do capricho com que pregava cada botão que tentasse escapar.

Saudade do banho de mangueira no verão, do cheiro do café no frio, do barulho da máquina de costura, da cor da tinta com que pintava o cabelo, do sorriso que teimava em não aparecer nas fotografias, do jeitinho delicadamente severo de convencer Mãe a nos perdoar... pela Vigésima Sétima Guerra Mundial das Almofadas.

Saudade da saudade que Vó irradiava quando nos via abrindo o portão felizes da vida – prestes a provar mais um pedacinho do céu.

domingo, 9 de setembro de 2012

O grande ditador

O príncipe Hugo, Huguinho para as netas da Vovó Donalda, não sossegou enquanto não sentou no trono de pau-brasil deixado pelo pai, o temido Adolfão I, II e III – que sempre teve o pódio todinho só pra ele. Bastou o rei de roma comer rúcula real pela raiz, e o menino tratou de capar, moer e servir numa bandeja de ouro os irmãos mais velhos: Zezinho e Luisinho. Sem direito a farofa ou molho vinagrete.

A cerimônia de coroação do novo número um do pedaço e adjacências foi um luxo só. De fazer muita inveja à família surreal britânica e aos milksheiks árabes unidos. A comilança foi oferecida pelo poderoso chef(ão) Clô de Troisgros. A decoração, assinada pelo gênio da beleza interior e exterior Tok Stok Rosenbaum. A música, os fogos copacabânicos e os efeitos cafonálicos, uma gentileza da André Rieu Big Band & Surround Sounds.

Até a comunidade do Chapéu Projac desceu o morro para ir à festa. Que teve direito a Amaury Sandy Junior entrevistando as celebridades mais instantâneas de Wonderland, aquelas cuja fama não ultrapassava quinze segundos – as que excediam o tempo regulamentar tinham suas cabeças cortadas a pedido do rei, que não admitia concorrência no horário nobre e no plebeu.

Entretanto, contudo, todavia, apesar de tantíssima pompa, as circunstâncias ainda impediam que o monarca fosse inteiramente feliz. O regime do país era tão, tão rigoroso, que não só proibia o consumo de Big Macs, como também vetava a adoração de ídolos estrangeiros. E quiseram as fadas-madrinhas da Segunda Estrela à Direita que Hugo nutrisse uma paixão incontrolável pelo Mickey Mouse, o garoto-propaganda de seu maior rival, o Tio Patinhas Sam.

Nada que um passaporte falso, uma viagem clandestina e bastante maquiagem não resolvessem. E lá foi o rapaz brincar duas semanas nos parques do rato mais famoso do planeta. Tudo ia bem até o soberano sair encharcado de um passeio na Splash Mountain. O banho que tomou desfez o disfarce. Sua foto  com orelhinhas no lugar da coroa – logo se espalhou pelas redes sociais.

“Ôôôô, o imperador voltou... O imperador voltou... a ser criança!”, berravam as manchetes dos tabloides e demais jornalecos de oposição.

Para encurtar a estória e não cansar os eleitores: ao contrário das previsões de Míriam Porcão e Mãe Dinada (os maiores oráculos da nação), o rei desembarcou na Casa Branca de Neve, sede do governo, ovacionado por conselheiros, secretários, funcionários e, especialmente, pelo povo, que passou a exigir direitos iguais; em outras palavras, a livre circulação de chapéus e acessórios do Mickey, da Minnie, do Pateta, do Pluto, além, claro, de permissão para férias na Disney.

Reivindicações justas que Hugo o Generoso e Magnânimo, orientado pelos sábios marqueteiros de seu partido e pressionado pelos donos das agências de turismo, acabou aceitando. Mesmo a doses majestádicas de contragosto. Afinal, passaria a dividir sua idolatria pelo camundongo com os queridos súditos – aqueles roedores que, infelizmente, não cabiam em sua bandeja de ouro nem capados e moídos.

domingo, 2 de setembro de 2012

Cinquenta tons de cinza

O cinza das horas derretendo os sonhos. O cinza da manhã riscando o céu. O cinza dos óculos embaçados. O cinza do romance na página de sempre. O cinza da cama desarrumada. O cinza da água escorrendo pelo ralo. O cinza da fumaça na chaleira. O cinza da manchete do jornal. O cinza do jeans. O cinza do retrato. O cinza da chave na fechadura. O cinza da porta aberta.

O cinza do mundo no bom-dia do porteiro.

No menino marchando pra escola. No mendigo devorando o maizena. Nas senhorinhas fazendo musculação. No rapaz pegando o táxi. Na mulher subindo o ônibus. No homem abrindo a loja. No operário tocando a britadeira. Nos aposentados jogando biriba. Nas babás passeando com os bebês. Nos guardinhas ocupando as esquinas da praça. Na praça.

O cinza do iPod. Da canção dos Beatles. Dos passageiros invadindo o metrô. Do prédio mais alto da cidade. Da cidade vista da janela. Da papelada sobre a mesa. Do monitor. Do Face. Do chocolate velho na gaveta. Dos relógios parados. Da secretária gostosa. Dos colegas contando a mesma piada. Do chefe tendo um infarto. Da sirene da ambulância. Do fim do expediente.

Da volta pra casa pela estrada de tijolos decadentes. Da prateleira colorida do supermercado. Dos trocados na carteira. Da noite que assobia fresca. Da novela favorita. Do futebolzinho zero a zero. Da tevê desligada, muda. Das luzes apagadas. Do silêncio dos travesseiros. Da saudade ancestral que não desbota. Dos sonhos.

Que o cinza das horas logo há de derreter.

domingo, 26 de agosto de 2012

Divã

Esta é para as amigas: o que você faria se o seu parceiro preferisse o quarto de hóspedes ao do casal; se todos os dias, ao acordar, desse mais atenção a dois ovos fritos, um pedaço de bacon e o jornal do que à sua pessoa; se, sob o pretexto de comemorar 31 anos de casamento, tivesse a ideia genial de te presentear com um novíssimo pacote de tevê a cabo?

Detalhe sórdido: a nova assinatura vem recheada de programação dedicada ao esporte favorito dele, o golfe (sic). Aquele mesmo. O da bolinha no buraco.

Pois é nessa aparente sinuca – para não deixarmos o campo dos esportes excitantes – que está Kay, personagem de Meryl Streep em Hope Springs, batizado aqui de Um divã para dois. À beira de degolar a grito os totós da vizinha bonitona, ela arrasta o maridão Arnold (Tommy Lee Jones) até o consultório do ilustre terapeuta Bernie Feld (Steve Carell), situado na cidadezinha que dá título ao filme, numa derradeira tentativa de salvar a relação.

Relação à parte, salvo mesmo é o espectador – daquilo que poderia ser mais uma comediazinha romântica digna do diminutivo, mas felizmente não é.

Graças aos olhos nada oblíquos de Streep, janelas retamente dispostas a revelar sua alma já nos segundos iniciais de projeção, quando Kay se encontra diante do espelho; graças aos trejeitos cadenciados de Jones, que jamais resvalam na caricatura do velho rabugento, somente realçam sua fragilidade e insegurança, como nas sequências em que se vê intimado a trocar carinhos com a esposa; graças à atuação contida de Carell, que não recorre a caras e bocas, conferindo assim credibilidade ao seu conceituado psicólogo.

Graças, enfim, à direção de David Frankel (o mesmo do ótimo O diabo veste Prada), que, de modo geral, mantém-se bem discreta e permite que o elenco brilhe ainda mais, especialmente no sofá-divã do Dr. Feld, onde os protagonistas ensaiam reaproximações e afastamentos ao sabor do sucesso (ou não) da terapia. A exceção talvez aconteça em um ou dois instantes nos quais a trilha sonora – cheia de antigas canções pop, como a clássica “Why”, de Annie Lennox – surge desnecessária, apenas sublinhando o que já vemos e sentimos.

A resolução, por sua vez, deve soar algo súbita, ligeiramente apressada, para quem espera um desfecho menos explícito, menos e-seus-problemas-acabaram!. Arestazinha boba que em nada compromete o longa, cujos créditos finais regados a pés na areia, marzão e pôr do sol devolvem os cinéfilos ao mundo real felizes da vida.

Crentes, crentes de que até aquele novíssimo pacote de tevê a cabo é capaz de salvar a relação. Basta escolher o canal certo.

domingo, 19 de agosto de 2012

Sucupirando

Brasileiros e brasileiras  o jingle está no ar. Santinhos caem do céu, inundam as ruas, entopem os bueiros, transbordam a tevê, o rádio, a rede social, enchem a sacola de promessas olímpicas e recicláveis. Enquanto a garizada samba as bachianas e valsa o pancadão feito Zé Carioca. Pra inglês ver. Pra mané dançar até o chão. Prafrentemente.

Nomeiodocaminhomente um bêerretê (busão rápido no trânsito). Ou um eleitor que não achou a passarela da esperança. Que não achou uma ambulância do Samuca. Que não achou um leito pro seu mal. Que não achou rima nem rumo decente pra caravela do Cabral. Que não achou um dotô em greve da greve na sua hora mais exorbitante. Que ainda achou que ia escapar.

Escapa não. Nem do mensalão. Calunismos. Coisa de quem não tem o que fazer. De quem não tem o que votar. De quem não vota o próprio reajuste de quarenta e cinco mil e treze por cento. De quem não compra o próprio paletó. De quem não viaja no próprio eikemóvel. De quem não aparece no próprio gabinete. De quem não aposenta o próprio conchavismo senvergonhista.

Impróprio é lembrar que a capital de duas mil e dezesseis problemáticas tem a sua solucionática cidade da música  das artes e artimanhas também. Onde vive fazendo pegadinha e o escambau o fantasma da ópera do malandro. Detalhe em superslow: a pegadinha acontece apenasmente (e só apenasmente) nos intervalos do escambau.

Quando todo mundo vê e crê. Credo. Quando bem-amados e bem-amadas estão dando aquela espiadinha básica no tchê tchererê tchê tchê da Gabriela. Quando malcomidos e malcomidas estão dando o bolsa-esmola por um tchu, um tchá. Por um tchu tchá tchá tchu tchu tchá. Por um lelelê que seja antes da defuntice compulsória.

Antes de cumprir o pátrio dever de se mudar para o cemitério jamais inaugurado.

domingo, 12 de agosto de 2012

Gigante

pulei da cama como se me jogasse da janela do quinto andar. esqueci os óculos na gaveta. mal vi a mesa do café. mal senti o cheiro do café. corri até a garagem, e Pai já estava lá, balde na mão, lavando o fusca. me passou um pano velho. pediu que eu o ensaboasse com cuidado, sem pressa, para deixá-lo o mais limpo do mundo.

à tarde tinha jogo em são januário. o primeiro da minha vida no estádio. o centésimo e tanto da dele. nossa estreia juntos.

chegamos cedo, cedo. gostava de madrugar. quem aproveita o dia aproveita a vida, dizia sob o bigode grisalho. no breve caminho até a entrada do caldeirão, me protegeu dos vendedores de churrasquinho, dos bebedores de cerveja, dos torcedores mais exaltados. ainda comprou um picolé que era gelo puro, corante vermelho e alegria.

pouca gente nas arquibancadas, pouca gente nas cadeiras. multidão pra mim. nunca tinha visto um teatro tão cheio, um cinema tão grande.

cheias, grandes também ficavam as nuvens. enquanto as sobrancelhas dele, cheias, grandes, se mexiam preocupadas. decidiu então pular o alambrado, procurar um lugar coberto nas sociais. me assustei com a ideia. quebrar as regras não era coisa que se ensinasse. mas o que parecia errado virou certo quando ele estendeu a mão e me ajudou a escalar a grade.

do outro lado, o gosto da vitória.

que veio também com a bola rolando e o gol solitário do pernambucano – que comemoramos com um abraço infinito de dois, três segundos.

apito final. volta para casa. o fusca no meio da torcida bem feliz. estendi a bandeira na janela, e o resto era com o vento. como se não houvesse amanhã nem depois, o rádio repetia e repetia e repetia os melhores momentos. só os que aconteceram dentro das quatro linhas, sob os olhos das câmeras e os ouvidos dos microfones.

os outros, tira-teima algum foi (nem era) capaz de flagrar.

domingo, 5 de agosto de 2012

Espírito olímpico

Ele vem me assombrar de quatro em quatro anos e tem o hábito de me derrubar da cama com a delicadeza de um ippon. Mal o sol  dourado feito medalha  cruza a linha de chegada, digo, do horizonte, e lá estou eu diante da tevê fazendo o sofá de arquibancada. Ou de sofá mesmo, se a peteca da vez for uma partidaça de badminton entre Tailândia e Indonésia.

Basta eu piscar os olhos, ameaçar um cochilo que seja e ele me faz trocar de canal: hora de ver os tenistas dando slices, smashs, drop shots, forehands e um match point no meu inglesinho de raquete curta. Welcome to Mike Tyson Island.

No, thanks. Prefiro a Megan Fox Arena. Onde assisto ao ginasta brazuca cair de bunda no solo ao som do "Brasileirinho". Jamais um choro foi tão bem escolhido.

Dou um duplo twist carpado até a cozinha para beber um refresco, e o encosto me acompanha. Não me deixa sozinho um centésimo de segundo. Marcação individual. Me lembra de que já vai começar o basquete masculino. Estados Unidos contra o... a... Sei lá. Não interessa. É jogo de um time só. Ou de dois, titulares versus reservas. Quem faz mais pontos?

Comigo fazem mais pontos as meninas espanholas do vôlei de praia. Que saque. Que recepção. Que manchete. E o que dizer da cortada? Ops, bloqueio. O espírito olímpico é de família.

E me aconselha a cair na piscina para esfriar a pira. Nada como o nado livre e o de costas para relaxar os músculos fatigados de outro dia inteirinho de muita torcida e ola. Ai, que preguiça. A lua  prateada feito medalha – sobe no lugar mais alto do pódio e o fantasma enfim me concede um tempo técnico. Algumas horinhas para recuperar o fôlego.

Que amanhã a maratona continua.

domingo, 29 de julho de 2012

Espelho, espelho

Domingo desses topei com o Pedro Bial falando dos trocentos textos que circulam na rede com sua assinatura e não são seus. Segundo o jornalista, as pessoas andam tão preocupadas em ser lidas que se "esquecem" da vaidade e relegam a assinatura, a autoralidade a segundo plano. "Cá entre nós, é a vaidade que nos move", lembrou o apresentador.

Verdade, Bial. Que graça tem escrever a frase só lâmina à João Cabral, o final surpreendente à Agatha Christie, o diálogo antológico à Woody Allen, a crônica redondinha à Martha Medeiros, se não há quem chegue ao ponto final e descubra nosso nome ali, (quase) discreto, à espera de um elogio, de um comentário, de um xingamento cabeludo que seja?

Até careca  valendo.

Ah, um texto à Fábio Flora. Do Fábio Flora. Com a cara Dele. Muitíssimo bem escrito. Correto em cada vírgula e travessão. Megapretensioso, como sempre. E superficial. Agradável. Afetado. Rebuscado. Desmiolado. Desengonçado. Divertido. Hilário. Chato pra burro e pra leitor que se preze. Sonolento. Completamente descartável.

Uma merda.

Quem me dera ouvir um adjetivo desses – quiçá o substantivo – da boca de um Luis Fernando Verissimo, de um Artur Xexéo, de um Pablo Villaça, de um Juca Kfouri, de um Arnaldo Jabor, até de um Diogo Mainardi. (Que o Lulalá não nos leia: não seria nada ruim ser a anta predileta do Diogo Mainardi por dois mandatos ou meia dúzia de crônicas.)

Por ora, enquanto esse dia não dá nem o arzito rarefeito da graça, me contento com os confetes de mamãe. Ainda que não sejam tão doces quanto as palavras de um espelho mágico.