domingo, 25 de março de 2012

Amado mestre

Podia parecer estranho, estranhíssimo, mas tio Aldemar chegou do velório de seu melhor amigo com um sorrisinho indisfarçável. Quase indiscreto. Levemente cínico. Seu rosto, desbastado por minúsculas cicatrizes, transpirava uma alegria melancólica, vagamente tristonha, sofrida até. Mas, ainda assim, uma alegria. Coisa de palhaço que teimava em não se aposentar.

Ele se aproximou com os olhos de sempre − compridos, sorrateiros. Que pediam atenção, que suplicavam dois dedos da minha curiosidade menina. E eu não resistia. Não resisti. Perguntei-lhe então de onde vinha aquele sorrisinho indisfarçável, quase indiscreto, levemente cínico. O velho não pestanejou: da saudade. (De quem? Quem? Quem?)

Do meu Professor Raimundo. Raimundo Nonato.

Daquele que foi o maior cachaceiro do Brasil. Capaz de vencer com muitos copos de vantagem o temível Zé Pé-de-Cana no Primeiro e Único Duelo de Adoradores de Aguardente, ocorrido na mítica Maranguape. Ah, me lembro bem, como se fosse hoje, daquele cearensezinho, cabeça grande, barriga inchada, entrando todo tímido no bar do Seu Sinfrônio...

Quem diria que aquele meninote zambeta iria tão longe, atravessaria as fronteiras dos Estados Anysios de Chico City e inspiraria Walt Disney a criar o Mickey Mouse; ajudaria Albert Sabin a desenvolver a vacina contra a poliomielite; ensinaria Yelena Shushunova a vencer traves e barras nas competições de ginástica mundo afora...

Quem diria que aquele mulequinho de pernas varetas faria a cabeça de presidentes (ou não seria Salomé); passaria a sacolinha (ou não seria Tim Tones); explodiria pobres e miseráveis (ou não seria Justo Veríssimo); leria a sorte nos búzios (ou não seria Painho); não assustaria ninguém (ou não seria Bento Carneiro, o vampiro brasileiro); trabalharia na Globo (ou não seria Bozó)...

Quem diria que ele se tornaria um símbalo sescual na pele de Alberto Roberto!

Quem diria...

E o tio Aldemar continuou a listar as mil faces e façanhas de seu amado mestre pelo resto do dia, da noite, da madrugada. Sem disfarçar o sorrisinho quase indiscreto, levemente cínico. Sem pestanejar da saudade. Sem deixar que eu pestanejasse um segundo e não ouvisse a maior lição aprendida com o amigo, o tal Raimundo Nonato.

A de que tínhamos de viver tantas vidas quantas fossem possíveis, ser todos os personagens que pudéssemos, vestir todas as fantasias que desejássemos: a de escritor, ator, compositor, pintor e outras duzentas. Sem pestanejar. Pois nosso tempo no palco é feito salário de professor. Assim, ó. Não dá pra quase nada. Acaba em dois minutinhos − num inescapável vapt-vupt.

6 comentários:

  1. Muito boa homenagem ;)
    Grande mestre se foi...

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  2. Chico foi uma grande perda em meio a tantos pseudo-artistas brasileiros ...
    http://andyantunes.blogspot.com.br/

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  3. esse deixou mts saudades

    http://blogdosgoiabas.blogspot.com.br/

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  4. Shushunova a vencer barras e traves é ótimo.

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  5. Gostei da visita.

    Quem diria mesmo.Nós podemos subestimar as pessoas de talento porque de perto somos todos parecidos, é na persistência daquele que continua à caminho do sonho que vemos esses Chicos da vida.
    Eternamente lembrado.

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