Podia parecer estranho, estranhíssimo, mas tio Aldemar
chegou do velório de seu melhor amigo com um sorrisinho indisfarçável. Quase
indiscreto. Levemente cínico. Seu rosto, desbastado por minúsculas cicatrizes,
transpirava uma alegria melancólica, vagamente tristonha, sofrida até. Mas,
ainda assim, uma alegria. Coisa de palhaço que teimava em não se aposentar.
Ele se aproximou com os olhos de sempre − compridos,
sorrateiros. Que pediam atenção, que suplicavam dois dedos da minha curiosidade
menina. E eu não resistia. Não resisti. Perguntei-lhe então de onde vinha
aquele sorrisinho indisfarçável, quase indiscreto, levemente cínico. O velho
não pestanejou: da saudade. (De quem? Quem? Quem?)
Do meu Professor Raimundo. Raimundo Nonato.
Daquele que foi o maior cachaceiro do Brasil. Capaz de
vencer com muitos copos de vantagem o temível Zé Pé-de-Cana no Primeiro e Único
Duelo de Adoradores de Aguardente, ocorrido na mítica Maranguape. Ah, me lembro
bem, como se fosse hoje, daquele cearensezinho, cabeça grande, barriga inchada,
entrando todo tímido no bar do Seu Sinfrônio...
Quem diria que aquele meninote zambeta iria tão longe,
atravessaria as fronteiras dos Estados Anysios de Chico City e inspiraria Walt
Disney a criar o Mickey Mouse; ajudaria Albert Sabin a desenvolver a vacina
contra a poliomielite; ensinaria Yelena Shushunova a vencer traves e barras nas
competições de ginástica mundo afora...
Quem diria que aquele mulequinho de pernas varetas faria a
cabeça de presidentes (ou não seria Salomé); passaria a sacolinha (ou não seria
Tim Tones); explodiria pobres e miseráveis (ou não seria Justo Veríssimo);
leria a sorte nos búzios (ou não seria Painho); não assustaria ninguém (ou não
seria Bento Carneiro, o vampiro brasileiro); trabalharia na Globo (ou não seria
Bozó)...
Quem diria que ele se tornaria um símbalo sescual na pele
de Alberto Roberto!
Quem diria...
E o tio Aldemar continuou a listar as mil faces e façanhas
de seu amado mestre pelo resto do dia, da noite, da madrugada. Sem disfarçar o
sorrisinho quase indiscreto, levemente cínico. Sem pestanejar da saudade. Sem
deixar que eu pestanejasse um segundo e não ouvisse a maior lição aprendida com
o amigo, o tal Raimundo Nonato.
A de que tínhamos de viver tantas vidas quantas fossem
possíveis, ser todos os personagens que pudéssemos, vestir todas as
fantasias que desejássemos: a de escritor, ator, compositor, pintor e
outras duzentas. Sem pestanejar. Pois nosso tempo no palco é feito salário de
professor. Assim, ó. Não dá pra quase nada. Acaba em dois minutinhos − num
inescapável vapt-vupt.
Muito boa homenagem ;)
ResponderExcluirGrande mestre se foi...
Chico foi uma grande perda em meio a tantos pseudo-artistas brasileiros ...
ResponderExcluirhttp://andyantunes.blogspot.com.br/
*-* um mestre
ResponderExcluiresse deixou mts saudades
ResponderExcluirhttp://blogdosgoiabas.blogspot.com.br/
Shushunova a vencer barras e traves é ótimo.
ResponderExcluirGostei da visita.
ResponderExcluirQuem diria mesmo.Nós podemos subestimar as pessoas de talento porque de perto somos todos parecidos, é na persistência daquele que continua à caminho do sonho que vemos esses Chicos da vida.
Eternamente lembrado.