Já
encheu de teias de aranha aquele fla-flu que ressurge feito Jason todo
Halloween e – em vez de doces ou travessuras – exige que a gente escolha o Saci
ou o Drácula, a Iara ou a Malévola, o Boitatá ou o Freddy. Ô bate-boca mais
trouxa. Prefiro mil vezes a turma do arrepio inteirinha no caldeirão da Cuca dançando
“Thriller”. (Leva uma mordida de zumbi quem errar a coreografia.)
A
antropofagia me encanta: mas essa que devora a exclusão e fortalece a inclusão,
não aquela que devora cérebros e dementa o senso crítico. Não aquela que devora
as bruxas gringas e expele as cópias mais paraguaias de Bellatrix Lestrange ou
Elvira a Rainha das Trevas – como certa jurista que vê, na instalação de uma
base militar russa na Venezuela, uma iminente invasão comunista no Brasil.
Nunca
antes na história fez tanto sentido a máxima que diz mais ou menos assim:
quanto mais o país reza (e paga dízimo), mais assombração aparece.
De
repente, uma horda de múmias invadiu ruas e redes. É incrível como tais criaturas
se deixam enrolar dos pés à cabeça por (1) manchetes sensacionalistas (sempre à
procura de um sarcófago quentinho, as preguiçosas não leem as respectivas matérias,
que em geral mostram uma realidade bem mais complexa do que os títulos fazem
parecer), (2) notícias falsas (por causa da retirada de massa cinzenta durante a
mumificação, as ingênuas jamais suspeitam delas, nem quando a fonte é anônima e
nenhum jornal de grande circulação ou megaportal da internet as publicou) e (3)
memes toscos (pela mesma razão do item 2, as bobas acreditam que uma frase
entre aspas, sobreposta à fotografia de uma pessoa, é prova cabal de que a
primeira saiu da boca da segunda).
Piores
ainda são os frankensteins: múmias que ficam muito tempo longe de seus túmulos e
passam a ser compostas não só de gaze, mas também de remendos de manchetes
sensacionalistas, pedaços de notícias falsas, fragmentos de memes toscos e
demais restos de desinformação. Maçarocas ambulantes, os franks têm como
principal característica a incoerência. São capazes de levantar a faixa “Somos
milhões de cunhas” e ao mesmo tempo gritar “Fora, corruptos”; são capazes de
ocupar avenidas para reivindicar mais saúde e educação e, meses depois, apoiar
uma lei que congela investimentos nessas áreas por vinte anos; são capazes até de
compartilhar oração de São Francisco e – com diferença de segundos – dar like
na página do Bolsonaro.
Outra
figura assustadora que tem se reproduzido feito gremlin após a meia-noite são
os lobisomens. Seres acima de qualquer suspeita e dóceis quando em sua forma
humana (sua vó pode ser um deles), transformam-se em animais ferozes quando
veem suas convicções – normalmente baseadas no senso comum – questionadas.
Basta alguém evocar os direitos humanos de um presidiário vítima de tortura, ou
de um assaltante prestes a ser linchado, para a besta uivar “Bandido bom é
bandido morto”, “Tá com pena? Leva pra casa!”. Basta alguém defender o debate
sobre gênero nas escolas para o bicharoco rugir “Você é viado”, “Quer ensinar
as crianças a serem gays”. Basta alguém lembrar a importância de um programa de
transferência de renda no combate à pobreza para o lobão grunhir “Não vou pagar
imposto pra sustentar vagabundo”.
Um
trem-fantasma como esse, claro, não funcionaria sem um bom maquinista. E é aí que
surge o vampiro. Intelectualmente superior, ele tira proveito de sua
imortalidade para se eternizar no poder. Entra século, sai século, o dentuço
continua se alimentando do sangue de suas vítimas, aparentemente enfeitiçadas
pelos caninos sorridentes que renascem a cada quatro anos. Convém desfazer dois
mitos sobre esse ente do mal: não tem medo de crucifixos – às vezes até os usa
para se aproximar de alguns pescoços – nem de luz – prova disso é que muitos
exemplares da espécie construíram seus castelos no ensolarado Planalto Central,
e lá permanecem desde a inauguração de Brasília.
Eu
cá com meus cachimbos e abóboras: quando essa hora do pesadelo vai passar? quando
essa aparentemente eterna sexta-feira 13 vai virar sábado? quando essa festa
onde só os fantasmas do retrocesso se divertem vai acabar? quando vamos enfim deixar
de bancar os curupiras às avessas, que têm os pés virados para frente mas teimam
em andar para trás?
Ótima leitura! Grata descoberta!
ResponderExcluirBrigado pela mensagem, Maria. Vai ser muito bom receber sua visita outras vezes. :-)
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