Quem
conta a história é o professor Clóvis de Barros Filho. Tinha levado a família para almoçar fora. Comemorava a aprovação num concurso. Terminada a
refeição, ele comentou com o garçom que achara a conta alta. Ouviu em troca: é
mais do que eu tiro no mês. Provocado pela revelação, lançou então uma pergunta
ao jovem: te parece justo que alguém gaste no almoço mais do que você tira no
mês?
O
funcionário respondeu que sim. Afinal, quem tinha estudado muito e se preparado
tanto merecia ganhar mais do que alguém como ele, que não tinha podido
frequentar uma escola. Clóvis não se satisfez: e te parece justo que uns possam
frequentar uma escola e outros não? O rapaz devolveu: sim, eu vim do Nordeste
para trabalhar, tinha que ajudar meus pais. O mestre insistiu: e te parece
justo que alguns tenham que se deslocar de onde nasceram para conseguir
trabalho?
Sim.
E sim. E mais um sim. E assim foram trezentos te-parece-justos e trezentos sins.
Até o sujeito levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus o fato de o patrão
dividir com ele e os outros empregados a carne que sobrava (quando sobrava)
para que pudessem fazer um churrasquinho ao final do expediente.
Impressiona a resignação.
Como
impressiona o sumiço das multidões que, há apenas alguns meses, saíam às ruas
com a camisa amarela exigindo mais saúde e educação. Como impressiona o
silêncio dos vizinhos que, há apenas alguns meses, iam às janelas bater panelas
exigindo o fim da corrupção. Como impressiona – talvez o que mais impressiona –
a aparente indiferença (aprovação?) das pessoas em relação ao presente e ao futuro
do país.
A
aparente cadeia de sins em que a maioria se acorrenta – como aquele garçom –
sem oferecer resistência.
Há
quem diga que eu ando pessimista demais. Que o momento é de esperança, já que a
sociedade, ao afastar “aquele partido” de centenas de prefeituras e não reeleger
vereador o filho do “comandante máximo da organização criminosa”, deu mostras
de que não tolera mais corrupção e mau uso do dinheiro público.
Será?
Não vejo essa intolerância toda (nem consigo ser otimista) quando constato que os
dois partidos recordistas de barrados pela Lei da Ficha Limpa saíram ainda mais
fortes das urnas. O PMDB – sócio com cadeira cativa na roubalheira nacional
desde que meu tataravô batia ponto na porta da Colombo – continua a ser a
legenda com mais prefeitos; já o PSDB – que pretende revolucionar a educação
brasileira fechando escolas e superfaturando merenda – foi a que mais cresceu.
Há
quem diga também que, agora que o impeachment passou e o período eleitoral está
terminando, o presidente temerário poderá fazer as reformas de que o país tanto
precisa, a começar pela lei que fixa um teto para os gastos públicos. Pasmem: tem
gente toda alegrinha porque testemunhou deputados trabalhando em plena
segunda-feira, até altas horas, a fim de aprovar a tal PEC 241. Estaria aí a prova
de que, pelo bem do Brasil, Congresso e Planalto voltaram a se entender.
Posso
lhes contar uma coisa, fofildos? Voltaram a se entender (leia-se: negociar
cargos e vantagens) para congelar investimentos em saúde e educação por vinte
anos, causando um baita prejuízo aos que mais carecem dos serviços públicos. Querem
repassar a conta da crise apenas para a parcela mais vulnerável da população.
Enquanto isso, nossos trumps e suas megafortunas – que proporcionalmente sempre
foram menos taxados por estas bandas – se safam mais uma vez, protegidos pelos
legisladores que eles mesmos ajudaram a eleger com suas doações de campanha.
Como
nada é tão ruim que não possa piorar, amiguitos chegam a corroborar o
neopentecostalismo de coalização que paira sobre nossa titubeante democracia ao
rogarem a Deus que o pai do Michelzinho conclua, até o fim de seu mandato, a
reforma da Previdência e a trabalhista. Dizem que só com a modernização de
nossas leis – antigas e tão fascistas quanto um Mussolini, segundo eles – os empresários
retomarão a confiança, a economia voltará a crescer e os pais de família
recuperarão seus empregos.
Cá
entre nós, estou tentando entender não só de onde vem tanta compaixão pelos senhores
de engenho, essas vítimas da ditadura do proletariado, como também de que maneira
cortar direitos – no lugar de investir em infraestrutura, qualificar a mão de
obra e estimular o consumo – vai transformar recessão em retomada.
No
caso das reformas, de novo são os mais pobres e a classe média – só eles,
amores – os escolhidos para o abate. O que se planeja é um cenário que rivaliza
com a mais cruel distopia: homens e mulheres trabalhando até a última idade,
CLT “flexibilizada” (com a terceirização das atividades-fim e a prevalência do
negociado sobre o legislado) e saúde ainda mais deficiente. Tudo isso justamente
quando os estudos demográficos apontam para o envelhecimento dos brasileiros,
contexto em que a demanda por médicos, remédios e hospitais só tende a aumentar.
É a antecipação do Apocalipse (para usar um termo bíblico, tão caro a uma parcela
cada vez maior do eleitorado).
Sério:
o olhar encantado diante do engajamento decorativo da primeira-dama ou a
expressão apática frente aos jornais pendurados nas bancas alimenta minhas melhores
teorias da conspiração; entre elas, a de que uma novela das seis cujo
protagonista (Candinho) tinha como lema “Tudo que acontece de ruim na vida da
gente é pra meiorá” – e cuja exibição se deu nos meses imediatamente anteriores
a essas PECs e picas no povo – não pode ter sido mera coincidência.
É
nessas horas que me lembro do romance A
casa das sete torres, de Nathaniel Hawthorne. Lá pelas tantas, um
personagem afirma que “o mundo deve todo o seu progresso a homens infelizes,
enquanto os felizes se confinam em moldes antigos”. A frase completa à
perfeição o sentido de um meme que tem circulado nas redes sociais, segundo o
qual PEC é a sigla para “Pobres, Enganados e Contentes”.
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