Deu
vontade de fugir para Lisboa. Voltar à estação Santa Apolônia. Entrar naquele
trem rumo ao Porto. Encontrar novamente Amel e Francisco.
Explico:
quiseram os deuses do acaso que uma jovem francesa de nome árabe e um rapaz
português de nome... português mesmo – que jamais tinham se visto – sentassem nas
duas poltronas à minha frente e não se contentassem com um celular ou uma
soneca; quiseram ainda aqueles deuses, mancomunados com os do cinema, que eu
assistisse a um Linklater em tempo real, ao vivo e na primeiríssima fila.
Para
quem não entendeu a referência, estou falando do diretor e roteirista Richard
Linklater, famoso pela trilogia do Antes
– do amanhecer, do pôr do sol e da meia-noite
–, cujos filmes acompanham três dias de paquera e DR, não necessariamente nessa
ordem, na vida de Celine (Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke), que se conhecem também
na Europa, também numa viagem sobre trilhos.
O
remake com Amel e Francisco não tinha legendas nem tradução simultânea. Então,
precisei me virar com meu inglês miojo mesmo, um nível abaixo do macarrônico.
Aliás, sorte minha os dois conversarem a maior parte do tempo no idioma dos
Beatles; o gajo até arriscava umas frases em francês de vez em quando, mas logo
desistia – reconhecia não ter talento para Alain Delon.
Mas
talento sobrava ali para horas e horas de papo. Pudera: Amel estudava Cinema, tinha
morado uns meses na África e, se minha memória não está hiperidealizando,
trazia um Sartre no colo; já Francisco havia se graduado em Física aos dezoito
anos, era professor na universidade da capital e, se não estou ficcionalizando
demais, mantinha um pôster do Einstein sobre a cama.
Lembro
bem dele explicando a ela a formação dos buracos negros num pedacinho de papel.
Dela citando o filmaço La vie d’Adèle,
depois de ele ter comentado sobre um amigo que escondia ser gay. Dele revelando
a alegria que sentia por estar perto de seus alunos. Dela contando que preferia
a solidão de quem rabiscava o primeiro roteiro. Dele dizendo que precisava ligar
para a mãe e avisar que já estava no trem, antes que bombeiros entrassem pelas
janelas para resgatá-lo dos escombros. Dela voltando à formação dos buracos
negros ao lamentar a ascensão – mesmo após um século de nazismos e fascismos –
de alguém como Donald Trump.
Lembro
bem dele (enquanto a ouvia) empurrando os óculos que insistiam em escorregar
pelo nariz levemente suado. Lembro bem dela (enquanto o ouvia) acomodando os
cabelos sobre o ombro direito. Só não lembro se seus olhares se cruzavam tanto
quanto um leitor de Camilo gostaria – mas é certo que marcaram um encontro em
algum sobrado esquecido que apenas eles enxergavam.
Ainda
hoje interrompo brevemente a respiração para imaginar o que teria acontecido
aos dois depois que os perdi de vista no desembarque. Teriam se despedido na
estação e nunca mais se falado? Teriam trocado e-mails? Teriam trocado um beijo
antes de os créditos subirem? Teriam subido as ladeiras do Porto? Teriam perdido
a chance de estrelar um sequel em
Paris? Teriam dividido uma garrafa de vinho sob as luzes da Ribeira? Teriam dividido
um café da manhã com pastéis de nata?
O
que teria acontecido depois do pôr do sol?
Em
tempos de diálogo cada vez mais raro, de muito falatório e quase nenhuma
audição; de amizades e parentescos desfeitos por causa de uma bandeira política,
uma oração a um deus que não o seu, uma preferência estética; de cordões
umbilicais conectados apenas aos próprios smart-egos, foi um alívio topar com
aqueles dois seres de origens tão diferentes – há um segundo completamente estranhos
entre si – que de repente se permitiram uma conversa numa língua que não a
deles, sem julgamentos ou cobranças, ainda que talvez esperassem um like
(ninguém é só de ferro).
Foi
mais que um alívio até: foi uma luz no fim do estúdio.
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