domingo, 29 de abril de 2012

De legendas e antropologias

Era o jornal de domingo. Era a enésima notícia sobre a pendenga entre legendados e dublados. De um lado da arena, a elite burguesa metida a besta erudita a favor do som original. De outro, a emergente classecê exigindo conteúdo em bom português. Na tribuna de honra, o antropólogo e professor Everardo Rocha. (A PUC o pariu.)

Do alto de sua gávea lucidez, o Doutor decretava: "A perda das legendas é o preço que vamos pagar por ter uma melhora na distribuição de renda, mas deveríamos nos orgulhar disso".

Ô, como nos orgulhamos, Mestre. Afinal, nunca antes na história deste país vimos tantos pobres assinando pacotes de tevê a cabo (ainda que não assinem o próprio nome), trocando de celular pré-pago todo mês, andando pra cima e pra baixo de Kombi pirata, botando silicone industrial, tomando porre de cerveja importada. O Haiti, definitivamente, não é mais aqui.

Mas melhor que a distribuição de renda − só a democratização da cultura. Que começou com a perda das legendas e continuará com a atualização da obra completa de Guimarães Rosa para o português contemporâneo falado no Alemão e na Rocinha. Com a tradução para o figurativismo de toda a arte abstrata. Com o fim das palavras com mais de três sílabas, das frases com mais de 140 caracteres, dos cérebros com mais de dois neurônios.

Ah, dizem até que o próximo show de Sir Paul McCartney em território nacional terá dublagem simultânea de Michel Teló.

De volta ao jornal. À pendenga entre legendados e dublados. À arena. Ao fim da disputa, nosso Everardo Rocha levantava o polegar para a classecê, mostrava a língua para a elite burguesa e ainda tripudiava dos que insistiam em defender o tal som original: "Se aqueles que se incomodam com a dublagem estivessem verdadeiramente preocupados com o eruditismo, teriam lutado para ver Gladiador em português. Nossa língua está muito mais próxima do latim do que o inglês".

Mea culpa: não fiz a menor força para ouvir Russell Crowe com a voz do narrador de Thomas, o Trenzinho (animação do Discovery Kids) − e, por isso, mereço ser jogado aos leões.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Chore, você não está na novela

Não adianta sonhar, madame. A senhora não vai ganhar cinquenta milhões na loteria e se mudar com a família inteira a tiracolo para um condomínio de luxo na Barra da Tijuca. Mesmo que seja mulher honesta, batalhadora, de fina estampa e coração maior que o mundo. Quem nasceu para Griselda dificilmente chegará a Teresa Cristina, bebê.

Ô, bonitão, acho melhor ir tirando o bumbum do touro mecânico e procurando um emprego. Já. Você não vai descobrir que é o filho há muito desaparecido de uma dona podre de rica prestes a fazer a passagem para a Espiritolândia. Mansão, carrão, avião? Férias em Paris, Nova York e Milão? Só na próxima encarnação.
                                   
Maria, Maria... Cê tem o dom de cantar, uma certa magia, coisa e tal. Tem força, tem raça, tem gana. Até uma pitadinha de charme. Mas não nasceu Drizela nem Anastácia. Muitíssimo menos Cinderela. Seu espanador não é microfone, sua vassoura não é guitarra... − e sua abóbora, salvo uma mágica de fada madrinha, não leva jeito para carruagem.

Meu filho, ouça sua mãe, vê se abre um livro de vez em quando, deixe de matar aula para jogar bola com aqueles meninos que não querem nada com coisa nenhuma. Não é todo dia que brota Tufão nos campinhos do Divino. Não é toda hora que o camarada faz o gol do título aos 45 do segundo tempo e vira astro do horário nobre.

Trocando em miúdos, caro leitor: não fique diante da tevê feito almofada velha, esperando que a megassena milionária, a herança imprevista, a voz de bem-te-vi ou os pés de Messi operem um milagre na sua vidinha mais ou menos. Não conte com a peninha de condão do novelista, com o faz de conta. Conte, sim, com o faz. O trabalha. O estuda. O tenta. O busca. O acontece.

Que o final feliz chega antes do último capítulo.

domingo, 22 de abril de 2012

O nome da Rosa

Quem escreve sabe o quão difícil pode ser batizar um personagem. Horas, dias, quiçá semanas para dar nome aos bois, vacas, bezerros, a todo tipo de gente. Agora imaginem só a angústia de quem escreve e está a poucos meses de ser mãe de uma garotinha linda, fofa, cúti-cúti dos pés à cabeça. É o caso de uma querida amiga, a Diva.

Ela já visitou o alfabeto inteirinho: de Amanda a Zuleica, passando por Beatriz, Carolina, Estela, Fernanda, Gabriela, Júlia, Laura, Nívea, Patrícia, Renata, Sofia, Tatiana e Vanessa. Nada, nada lhe agradou. Substantivos próprios, sem dúvida, mas excessivamente comuns para sua filhota do coração − que merece, segundo palavras dela, "um nome exclusivo".

Como Diva é pessoa levemente cabeçudota (incapaz de resistir a filme do Godard numa sessão à meia-noite ou a palestra sobre Kant num domingo à tarde), sugeri-lhe uma homenagenzinha a qualquer filósofo de renome. Opções exclusivas não faltariam: Adornanda, Aristoteia, Hegelina, Nietzscha, Platoneide, Sartrina, Socratânia, Umberta...

Eca.

Diva detestou todas. Passou, então, a cogitar nomes estrangeiros: Annie, Drew, Felicity, Hillary, Julie, Kate, Meryl, Sharon. Mas logo desistiu deles por considerá-los simplesinhos demais.

Oh. My. God.

Ainda insatisfeita, ela resolveu se arriscar pelo perigoso território dos compostos: Ágatha Maria, Cecília Roberta, Felipa Gertrudes, Giovana Dinorá, Jezebel Helena, Melissa Catarina, Teodora Betânia, Zenaide Paloma. Graças a um milagre de São Pelópidas dos Nomes Multissílabos, não se apaixonou por nenhum.

Cansada de tanta procura, decidiu enfim esperar o nascimento. Quem sabe não encontrasse "o" nome ao ver a criança. Quem sabe a garotinha linda, fofa, cúti-cúti dos pés à cabeça não viesse com etiqueta de identificação ou crachá pendurado na chupeta. Quem sabe suas bochechas não desabrochassem sugestivamente rosadas.

(Desabrocharam.)

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Casa vazia

Passava por ela todo dia depois do trabalho. Tinha teto, tinha chão, tinha parede. Mas não tinha nada. A não ser as janelas tristes, o portão carrancudo, a fachada decadentemente aristocrática, a varanda carcomida, o quintal melancólico e – o que mais me seduzia – a atmosfera de mistério abandonado, de enigma esquecido pelo tempo.

A casa era guardada por três cães brancos, de olhos quase vivos, atentos a cada movimento da rua. A cada ventania disfarçada de brisa.

Eles sabiam quem eu era. Sabiam que eu passava por ali todo finzinho de tarde. Sabiam que eu parava uns bons minutos diante do palacete não apenas para admirá-lo – mas para desvendá-lo. Sabiam que eu não sossegaria enquanto não descobrisse o que tanto vigiavam, o que protegiam, o que escondiam, o que defendiam.

Talvez o Santo Graal.

Ou o tesouro do temido Willy Caolho. A joia do Nilo. O precioso Anel de Sauron. A Flor das Sete Cores. O mapa das minas do rei Salomão. A arca perdida. O elo perdido. O stargate. As horcruxes. Um carregamento clandestino de chocolate Wonka. O labirinto do Fauno. A estrada de tijolos amarelos. O buraco do coelho.

Não importava. A graça estava justamente em não saber. Em não sossegar. Em não descobrir. Em admirar sem ter que desvendar. Em passar por aquela casa todo dia depois do trabalho. Em parar uns bons minutos diante dela. Em me disfarçar de brisa – e ser atentamente observado por aqueles três cães brancos, de olhos quase vivos.

domingo, 15 de abril de 2012

Garota de Ipanema

Faz uma semana que conheci a Marilyn. E parece que faz sete noites.

Eu caminhando na praia. Solão. A areia abarrotada de famílias e outras tribos menos cotadas. Os franguinhos da padaria do Seu Joaquim − livres, leves, soltinhos − vendo o mar pela primeira e última vez. A farofa amilanesando os corpos fora de forma. O salva-vidas afogando um pivete sem modos. O vendedor de camarão enxugando o suor com guardanapos.

E a minha musa pulando ondinhas.

Não hesitei. Me aproximei dela com a pressa de uma próclise. Sussurrei dois ou três versinhos em seus ouvidos − que coisa mais linda, cheia de graça, seu balançado é mais que um poema do Vinícius, a beleza existe. Nem precisei de rimas e estrofes. Aquele peixão caiu na minha rede só por causa do amor. Era meu dia de sorte.

Arrastei-a pro meu cafofo e descobri que aquela garota não era apenas mais uma: cozinhava um bacalhau como ninguém, passava meus blusões como ninguém, lavava minhas cuecas e gravatas como ninguém, faxinava o quarto e sala como ninguém, tocava flauta transversa como ninguém, contava piadas como ninguém, amava como ninguém.

Me amava como ninguém.

Mas Marilyn tinha um senão: toda noite desaparecia. Sumia no ar. Se escafedia − também com a pressa de uma próclise. Ontem resolvi segui-la. Até um nightclub de nome nada, nada duvidoso: o Rainhas do Deserto. Onde ela serve mesas e prepara drinks da moda travestida de João. Isso mesmo. Jo-ão. Jota-ó-a-ó-til.

E o pior: estrela um musical que mistura pole dance, striptease, figurinos pavorosos, iluminação tosca, canções bregas, roteiro e direção pedestres chamado Quanto mais quente melhor. Um freakshow involuntário, uma obra-prima do mau gosto, uma inacreditável maçaroca − de fazer parecer Shakespeare qualquer teatrinho infantil de quinta.

Ninguém é perfeito.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Os anincéfolos

Teinha no teto do escritório. Cotãozito atrás do baú do Raul. Poeirinha sobre a mesa da sala de jantar. Cueca esquecida no varal. Jesuína, Jesuína! Cantinho da pia do banheiro molhado. Vidro embaçado. Feijão tão salgado. Arroz empapado. Bolo solado. Outro copo quebrado. Jesuína, Jesuína! Onde está com a cabeça, menina?

Nos bebezinhos anincéfolos, sinhô. 

Minha pobre faxineira estava com a cabeça nos fetos a-nen-cé-fa-los, que não sobrevivem por muito tempo fora do útero graças a má formação do encéfalo. Ah, já pedi mil e uma vezes para não me chamar de sinhô. Sinhô está na casa-grande, e meu apê é minúsculo, quase tão pequeno quanto o cérebro do Homer Simpson.

Mas, sinhô, os bichinhos têm o direito de nascer.

Sinhô está no céu, Jesuína − muitíssimo preocupado com a próxima tsunami, o próximo tornado, as águas de março e abril que hão de levar seu barraco e suas panelas. Mas, cá entre nós, acho que o Todo-Poderoso Chefão deveria estar preocupado mesmo com o número cada vez maior de criaturas descerebradas que tem mandado para cá. Não há catástrofe pior.

Diz isso não, sinhozinho. É até pecado.

Pecado é a gente ser obrigado a conviver com aquele sujeitinho que joga lixo no chão para não desempregar os catadores; que prefere filmes dublados porque tem alergia a legendas; que acha o tchê, tchererê, tchê, tchê do Gusttavo (sic) Lima a mais recente obra-prima da música popular brasileira; que jamais ouviu falar nesse tal de Paul McCartney; que tem a ousadia de desperdiçar preciosos 140 caracteres no Twitter perguntando se o Titanic foi um navio de verdade.

Hã?

Nada não, Jesuína. Esquece. Só não esqueça, por favor, que Sinhozinho está lá em Asa Branca, muito bem acompanhado de sua Viúva Porcina, abençoado por Roque Santeiro.

Esqueço não, sinhô.

domingo, 8 de abril de 2012

Vidas passadas

Sempre desconfiei da sanidade do primo Chico... Estrela? Santeiro? Santinho? Sombrinha? Das Almas? Do Brejo? Da Lua? Da Luz? Não lembro. O danado tinha dezenas de sobrenomes. E jurava de mãos atadas e pés juntos ter sido muitos: um poeta romântico no século 19, um nobre decadente no 18, um botocudo no 17, um arcebispo de pouca fé no 16.

Segundo meus cálculos, com mais duas ou três sessões de regressão, ele descobriria ter sido o próprio Moisés. Ou Noé. Talvez Adão. Whatever.

O fato é que o primo acreditava em vidas passadas e outros contos da Carochinha. E eu, de uns tempos pra cá, especialmente depois do casamento, passei a acreditar também. Mas, por favor, não me interpretem mal. Muita calma nessa hora. Não estou falando de outras existências. Estou falando desta aqui. Nossa vidinha nada besta − repleta de inúmeros eus.

Estou falando do meninote que fui um dia. Que adorava caroço de feijão. Que não aprendeu a andar de bicicleta. Que lanchava Mirabel todos os dias. Que, todo tímido, não pediu à tia para ir ao banheiro e fez xixi no uniforme. Que tinha a mão calejada de tanto Atari. Que se encantava com xuxuxus-xaxaxás e outros dadaísmos infantis.

Estou falando do adolescente que fui um dia. Que passou a detestar caroço de feijão. Que não aprendeu a andar de bicicleta. Que não encontrava o valor de x, y e z nas aulas de matemática. Que se tornou louco por futebol. Que sonhou amores impossíveis. Que custou a dar o primeiro beijo. Que se apaixonou pelos Beatles.

Estou falando do homem que sou hoje. Que continua fugindo dos caroços de feijão. Que ainda não aprendeu a andar de bicicleta. Que gosta de sushi. Que faz rafting, tirolesa, arborismo. Que garimpou uma pepita de ouro e casou-se com ela. Que dança sem vergonha. Que vai a pé pro trabalho. Que paga contas. Que dá conta de um mundo novo a cada minuto.

Tantas vidas.

Já posso até imaginar as futuras. Serei eu um quarentão charmoso feito o George Clooney? Um velho quaquilionário, aventureiro como o Tio Patinhas? Um aposentado jogando biriba na Praça Saens Peña? Um escritor reconhecido, um cronista famoso, um candidato a imortal? E – o mais importante – terei enfim aprendido a andar de bicicleta?

(Hum. Não custa nada consultar o primo Chico. Vai que ele tenha sido vidente noutra vida.)

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Histórias cruzadas

Garotinha. Pequenininha. Loirinha. Roupão rosinha. Mãozinhas dadas com o vozinho. Saindo da natação com um T-Rex de plástico no colo. Fofa.

O homem na mesa do bar. Os mesmos cabelos brancos. O mesmo rosto cansado. As mesmas mãos trêmulas. O mesmo copo vazio. Até as notícias na tevê são as mesmas.
                
A mulher de óculos escuros espera o sinal fechar. Enquanto isso, discute a relação pelo Nextel e entorta o pescoço do guarda de trânsito, que por pouco não engole o apito.

Três mocinhas com uniforme escolar customizadamente curtinho gritam na direção do outro lado da calçada. Gritam de novo. Parece que o menino só tem ouvidos para o seu iPod.

O mendigo se mexe, se coça, ameaça sair do lugar, e a senhora de vestido florido se refugia na papelaria da esquina com seu carrinho de compras e sua Louis Vuitton.

Senhora que um dia foi casada com o vozinho da garotinha fofa. Que é filha da mulher de óculos escuros. Que já teve um romance com o guarda de trânsito. Que é pai do menino do iPod. Que resolveu incendiar o mendigo porque ele se aproximou das três mocinhas para implorar por um prato de comida ou dez centavos.

Na mesa do bar, ainda repousa o mesmo homem, os mesmos cabelos brancos, o mesmo rosto cansado. Na tevê, a notícia de um morador de rua com o corpo quase inteiramente queimado. À beira da morte. À espera de um milagre que jamais acontecerá. A polícia promete solucionar o caso. Mas não tem pistas do criminoso.

As mesmas mãos trêmulas veem o mesmo copo vazio – e pedem a saideira.

domingo, 1 de abril de 2012

Eu aceito...

... ser esse rapazito-ainda-mais-branco-que-vestido-de-noiva entrando na igreja de mãos dadas com mamãe, sorriso tímido, passos ensaiados, movimentos discretos, nariz tucanamente exibido, sobrancelhas taturanamente cabeludas, olhos marejados, felizes, ansiosos, piscantes, perdidos, inseguros, apaixonados, retos, oblíquos, substantivos, adjetivos, demonstrativos, exclamativos, indefinidos − míopes por natureza.

... ser o noivo de poucas orações, que ignora todos os catecismos e maiúsculas ao fazer o nome do pai, do filho e esquecer o espírito santo. Onde ele foi parar numa hora dessas, meu deus?

... ser o (quase) marido cheio de cuidados ao colocar a aliança no dedo de sua (quase) esposa por receio de machucá-la (a esposa, claro). Vai, garota. Entra, entra. Não é hora de refugar − a nada rara síndrome de Baloubet du Rouet é para os fracos. E você é brasileiríssima, não desiste nunca. Vai. Força. Isso, isso. Boa. Menina de ouro. Dezoito quilates.

... ser o (já) marido que finalmente arranca o terno da timidez, desaperta a gravata do sorriso e se joga na pista de dança como se aquela fosse a última festa do mundo, como se não houvesse outra chance de berrar o "Twist and shout", de explodir fireworks com a Katy Perry, de fazer a coreografia do "YMCA", os passinhos do "Thriller", de cantar o lalalalalalá de "Crocodile rock", de brincar o ilari-lari-ê. Ô ô ô!

Eu aceito e − até prefiro ser − essa metamorfose ambulante que o vídeo do meu casamento, com pose de lente da verdade e jeito de última fatia de bolo, acaba de mostrar. Esse menino que não controla os próprios olhos, que erra o sinal da cruz, que se atrapalha com a aliança, que solta a franga e outros bichos ao som do DJ.

(Só não aceito calçar outra vez aqueles instrumentos medievais de tortura – vulgo trituradores de calcanhar. Meus pezinhos de valsa e rock’n’roll agradecem.)