Estava
eu procrastinando no sofá quando topei com o sociólogo Domenico de Masi na
tevê. Ele ficou mundialmente famoso ao cunhar a expressão “ócio criativo”.
Falava
ao jornalista Roberto D’Ávila sobre a Operação Mãos Limpas e como ela vilanizou
a classe política italiana de tal modo, que até os inocentes soçobraram: ter o
nome citado numa delação era garantia de vê-lo estampado numa manchete, o que,
por sua vez, equivalia a condenação em última instância, sem direito a recurso.
Quem
pegasse a entrevista no meio acharia que o assunto era outra operação – aquela
que aluga nossas manchetes há pelo menos três anos.
Eu
sei: a Lava-Jato à bolonhesa revelou aos italianos o quanto eles afundavam no
molho da corrupção. Mas não custa lembrar – e De Masi lembra – que a temporada
de caça aos políticos resultou na ascensão de um “não político” à cadeira de
primeiro-ministro, o magnata das telecomunicações Silvio Berlusconi, tido como
administrador competente por seus eleitores. Talvez eles sonhassem ver o país
tão poderoso quanto o Milan (clube de futebol que é propriedade do empresário) dos
anos noventa. Não viram.
Logo
o conglomerado de empresas do figurão virou alvo de processos por fraudes
fiscais, e o próprio milionário foi acusado de comprar apoio de senadores no
Parlamento. Ou seja: de um lado, uma das formas mais manjadas de acumular
fortuna em qualquer latitude, que é evadir e sonegar (embora a mídia
corporativa faça o cidadão comum acreditar que os super-ricos “chegaram lá” porque
se esforçaram mais do que ele, acordaram mais cedo etc.); de outro, a... corrupção.
Para
completar, Berlusconi ainda se envolveu naquelas polêmicas típicas de quem
adora pegar carona nos moralismos do eleitorado: mandou cobrir a nudez de um quadro
que enfeitava o palácio do governo, a cópia de uma pintura de Gianbattista
Tiepolo (“La verita svelata dal tempo”) na qual uma mulher aparecia com os seios
de fora.
O
brasileiro que se cuide então: aqui sobra candidato cujos caninos cintilam nas
capas das revistas de negócios, mas que é apenas gestor de velhas vampiragens.
Outro
tema abordado por De Masi no bate-papo com D’Ávila foram os avanços
científicos e tecnológicos das últimas décadas – que, segundo o professor,
deveriam ampliar o tempo livre para o ser humano exercitar sua criatividade. Deveriam.
Porque ainda há países em que medidas como diminuir os direitos do assalariado
e aumentar o número de horas trabalhadas são consideradas pontes para o futuro.
Pouco
importa que fábricas na Suécia promovam o bem-estar de seus empregados
reduzindo o expediente diário (e por isso vejam crescer significativamente a
produtividade e o lucro), ou nações como o Japão comecem a perceber que
intermináveis horas extras só incrementam o gráfico de karoshis e karojisatsus (respectivamente,
as mortes e suicídios causados por jornadas de trabalho exaustivas).
Enquanto
o atual desgoverno brasileiro aposta no slogan “Não pense em crise, trabalhe”, há
quem adote o lema “Trabalhe menos e pense”.
De Masi é desses que privilegiam o pensamento. Não por acaso, marcou a segunda
alternativa ao ser indagado, no último bloco do programa, sobre qual seria o
maior desafio do Brasil no momento: combater a corrupção ou investir em
educação. Repetiu ainda o que as estatísticas lhe mostraram: lugares onde existem mais cidadãos
com formação universitária – e, portanto, uma cena intelectual mais dinâmica
– têm índices menores de violência e maior desenvolvimento econômico. Sublinhou, porém,
que o ensino não deve se alicerçar apenas nos nichos voltados para os três is (informatica, inglese e impresa), como
tem sido feito na Itália e em outros países cujos dirigentes enxergam a vida como
uma edição de O aprendiz. É preciso fortalecer
as ciências humanas, afirmou. De acordo com o professor, só uma educação que prioriza
a História e as artes protege a sociedade dos autoritarismos e populismos que
de tempos em tempos a ameaçam.
Infelizmente,
é o avesso disso que vemos hoje por aqui. Contrasta com os avanços registrados
nos últimos anos – especialmente o maior acesso ao ensino superior, graças aos campi criados, às cotas e ao financiamento estudantil – o descaso crescente com a universidade
pública. Impossível não citar a crise que atravessa a Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (a UERJ em que me formei e conheci minha Fernanda): servidores
com salários atrasados há meses, estudantes sem bolsas, serviços básicos (como
limpeza e conservação) precarizados, bandejão fechado, laboratórios sem luz,
hospital universitário com atendimento comprometido por falta de funcionários e
materiais etc. etc. etc.
Etc.
Some-se
a isso a reforma do Ensino Médio aprovada há algumas semanas, que,
diferentemente do que a propaganda anuncia – agora o aluno vai ter “mais
liberdade para escolher o que estudar, de acordo com sua vocação” –, dispensa as
escolas de oferecer as cinco áreas de concentração, os chamados itinerários
formativos: linguagens; matemática; ciências da natureza; ciências humanas e
sociais aplicadas; formação técnica e profissional. A nova lei é clara: as
instituições não são obrigadas a disponibilizar todos os itinerários, mas, sim, pelo menos um deles. E aí resta a
pergunta óbvia (nem precisa ser sociólogo para fazê-la): que “liberdade para
escolher” o aluno vai ter se os colégios na sua região oferecerem só uma ou
duas opções?
Terá
ele a oportunidade de se tornar, quem sabe, um De Masi? Ou lhe será dada
somente a chance de trilhar a carreira da mão de obra barata?
Contra
tantos retrocessos, o professor sugere pequenas revoluções; a
redução da jornada de trabalho e o estímulo à cultura humanista, claro, estão
entre elas. A primeira revolução, no entanto, deveria ser ouvir mais gente como
ele. Difícil não é. Até o corretor ortográfico do Word – que não é lá a
criatura mais brilhante do mundo – passou o texto inteiro tentando me convencer
a trocar De Masi por De Mais.
Alguma
coisa ele escutou.
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