domingo, 19 de março de 2017

Ouçam o sociólogo

Estava eu procrastinando no sofá quando topei com o sociólogo Domenico de Masi na tevê. Ele ficou mundialmente famoso ao cunhar a expressão “ócio criativo”.

Falava ao jornalista Roberto D’Ávila sobre a Operação Mãos Limpas e como ela vilanizou a classe política italiana de tal modo, que até os inocentes soçobraram: ter o nome citado numa delação era garantia de vê-lo estampado numa manchete, o que, por sua vez, equivalia a condenação em última instância, sem direito a recurso.

Quem pegasse a entrevista no meio acharia que o assunto era outra operação – aquela que aluga nossas manchetes há pelo menos três anos.

Eu sei: a Lava-Jato à bolonhesa revelou aos italianos o quanto eles afundavam no molho da corrupção. Mas não custa lembrar – e De Masi lembra – que a temporada de caça aos políticos resultou na ascensão de um “não político” à cadeira de primeiro-ministro, o magnata das telecomunicações Silvio Berlusconi, tido como administrador competente por seus eleitores. Talvez eles sonhassem ver o país tão poderoso quanto o Milan (clube de futebol que é propriedade do empresário) dos anos noventa. Não viram.

Logo o conglomerado de empresas do figurão virou alvo de processos por fraudes fiscais, e o próprio milionário foi acusado de comprar apoio de senadores no Parlamento. Ou seja: de um lado, uma das formas mais manjadas de acumular fortuna em qualquer latitude, que é evadir e sonegar (embora a mídia corporativa faça o cidadão comum acreditar que os super-ricos “chegaram lá” porque se esforçaram mais do que ele, acordaram mais cedo etc.); de outro, a... corrupção.

Para completar, Berlusconi ainda se envolveu naquelas polêmicas típicas de quem adora pegar carona nos moralismos do eleitorado: mandou cobrir a nudez de um quadro que enfeitava o palácio do governo, a cópia de uma pintura de Gianbattista Tiepolo (“La verita svelata dal tempo”) na qual uma mulher aparecia com os seios de fora.

O brasileiro que se cuide então: aqui sobra candidato cujos caninos cintilam nas capas das revistas de negócios, mas que é apenas gestor de velhas vampiragens.

Outro tema abordado por De Masi no bate-papo com D’Ávila foram os avanços científicos e tecnológicos das últimas décadas – que, segundo o professor, deveriam ampliar o tempo livre para o ser humano exercitar sua criatividade. Deveriam. Porque ainda há países em que medidas como diminuir os direitos do assalariado e aumentar o número de horas trabalhadas são consideradas pontes para o futuro.

Pouco importa que fábricas na Suécia promovam o bem-estar de seus empregados reduzindo o expediente diário (e por isso vejam crescer significativamente a produtividade e o lucro), ou nações como o Japão comecem a perceber que intermináveis horas extras só incrementam o gráfico de karoshis e karojisatsus (respectivamente, as mortes e suicídios causados por jornadas de trabalho exaustivas).

Enquanto o atual desgoverno brasileiro aposta no slogan “Não pense em crise, trabalhe”, há quem adote o lema “Trabalhe menos e pense”.

De Masi é desses que privilegiam o pensamento. Não por acaso, marcou a segunda alternativa ao ser indagado, no último bloco do programa, sobre qual seria o maior desafio do Brasil no momento: combater a corrupção ou investir em educação. Repetiu ainda o que as estatísticas lhe mostraram: lugares onde existem mais cidadãos com formação universitária – e, portanto, uma cena intelectual mais dinâmica – têm índices menores de violência e maior desenvolvimento econômico. Sublinhou, porém, que o ensino não deve se alicerçar apenas nos nichos voltados para os três is (informatica, inglese e impresa), como tem sido feito na Itália e em outros países cujos dirigentes enxergam a vida como uma edição de O aprendiz. É preciso fortalecer as ciências humanas, afirmou. De acordo com o professor, só uma educação que prioriza a História e as artes protege a sociedade dos autoritarismos e populismos que de tempos em tempos a ameaçam.

Infelizmente, é o avesso disso que vemos hoje por aqui. Contrasta com os avanços registrados nos últimos anos – especialmente o maior acesso ao ensino superior, graças aos campi criados, às cotas e ao financiamento estudantil – o descaso crescente com a universidade pública. Impossível não citar a crise que atravessa a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (a UERJ em que me formei e conheci minha Fernanda): servidores com salários atrasados há meses, estudantes sem bolsas, serviços básicos (como limpeza e conservação) precarizados, bandejão fechado, laboratórios sem luz, hospital universitário com atendimento comprometido por falta de funcionários e materiais etc. etc. etc.

Etc.

Some-se a isso a reforma do Ensino Médio aprovada há algumas semanas, que, diferentemente do que a propaganda anuncia – agora o aluno vai ter “mais liberdade para escolher o que estudar, de acordo com sua vocação” –, dispensa as escolas de oferecer as cinco áreas de concentração, os chamados itinerários formativos: linguagens; matemática; ciências da natureza; ciências humanas e sociais aplicadas; formação técnica e profissional. A nova lei é clara: as instituições não são obrigadas a disponibilizar todos os itinerários, mas, sim, pelo menos um deles. E aí resta a pergunta óbvia (nem precisa ser sociólogo para fazê-la): que “liberdade para escolher” o aluno vai ter se os colégios na sua região oferecerem só uma ou duas opções?

Terá ele a oportunidade de se tornar, quem sabe, um De Masi? Ou lhe será dada somente a chance de trilhar a carreira da mão de obra barata?

Contra tantos retrocessos, o professor sugere pequenas revoluções; a redução da jornada de trabalho e o estímulo à cultura humanista, claro, estão entre elas. A primeira revolução, no entanto, deveria ser ouvir mais gente como ele. Difícil não é. Até o corretor ortográfico do Word – que não é lá a criatura mais brilhante do mundo – passou o texto inteiro tentando me convencer a trocar De Masi por De Mais.

Alguma coisa ele escutou.

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