O
goleiro condenado por matar a ex-namorada Eliza Samudio, dar sumiço no cadáver
e ainda sequestrar o próprio filho foi solto pelo Supremo Tribunal Federal após
cumprir menos de um terço da pena. Nem sete anos. Vai aguardar em liberdade a
decisão sobre os recursos impetrados por seu advogado.
Não
discuto a legalidade do habeas corpus
concedido pelo juiz Marco Aurélio Mello. Nem desejo que um réu fique
indefinidamente preso enquanto espera o julgamento na instância seguinte – em
primeiro lugar, porque isso é ilegal e desumano; em segundo, porque só
contribui para abarrotar ainda mais os já superlotados presídios brasileiros.
Mas
me incomoda a brandura da lei diante dos crimes cometidos – brandura que certamente
reflete a tolerância com que a sociedade encara a violência contra a mulher.
Pois
bastou o sujeito deixar a cadeia para os holofotes o procurarem. De repente importa
menos o delito e mais a audiência que o astro pode proporcionar. Agora ele aproveita
que é a bola da vez para dar entrevistas e exibir a marca de quem “pagou caro”
– palavras dele – pelo “erro” que cometeu. De cabeça empinada (como nos áureos
tempos rubro-negros), afirma que não apagaria nada que aconteceu; que nem prisão
perpétua traria a vítima de volta; e que só quer recomeçar a carreira. Difícil
não vai ser, ainda mais no país do futebol (esporte também conhecido como “coisa
de homem”): nove clubes já teriam mostrado interesse em sua contratação. A
maioria, no entanto, pediu para não ter o nome revelado. Vergonha pura e
simples ou – hipótese absurda, espero – receio de gerar frustração na torcida, caso
o jogador não vire reforço?
O
clímax são as fotos em que ele aparece ostentando o sorriso ao lado da atual
esposa e tirando selfies com fãs (fãs!). A reserva no castelo de Caras já deve ter sido feita.
Se
o desdém (não só) midiático pelo assassinato de Eliza – ou por qualquer ato de
violência contra qualquer mulher – ainda não tinha ficado claro nessa reestreia
do atleta no showbiz, ficou quando o “jornalista” Alexandre Garcia (há décadas no
rádio, na tevê e agora na internet) comentou com um inacreditável “E eu com
isso?” a notícia de que a atriz Jane Fonda sofrera um estupro na juventude.
A
frase – responsável por alçar a criatura ao favoritismo absoluto do troféu Babaca
do Ano – gerou manchete, mas não deveria gerar surpresa. Afinal, foi assinada
por um senhor que sempre e abertamente apoiou um regime (o militar) célebre por
torturar mulheres, com requintes que iam do choque elétrico nos órgãos genitais
ao estupro propriamente dito, passando pela proibição de amamentar os filhos,
também presos.
E
outra: não é de hoje que esse mesmo senhor golfa misoginia nas redes sociais.
Recentemente, sentenciou que a palavra “feminicídio” era “invenção de quem pensa
que homicídio é matar ‘hômi’”, numa demonstração explícita e debochada de que ignora
as razões que levam uma mulher a ser agredida a cada onze minutos no Brasil (ou quatro, como no recém-terminado Carnaval carioca).
Ele
não é exceção, infelizmente. Em sua companhia, está o editor que estampou na
capa do jornal O Globo, há dois anos,
em pleno Oito de Março, charge na qual um terrorista do Estado Islâmico ameaçava
decapitar a então presidenta Dilma; está o delegado que sugeriu arquivamento do
inquérito contra o político que agrediu a esposa (e era candidato a prefeito do
Rio de Janeiro); está o traficante que atirou na parceira porque ela se recusou
a transar; está o ministro do Supremo que concedeu habeas corpus ao médico que cometeu dezenas de estupros.
Está
aquele um em cada três brasileiros que culpa a mulher que frequenta baile funk
ou usa roupas curtas por sofrer violência sexual.
Está,
enfim, a corja que só alcançou o poder após dar um golpe na primeira mulher eleita
presidenta do Brasil; está o vice que deu posse a um ministério formado
apenas por exemplares do sexo masculino, desenhando sem pudores a machocracia
que insiste em nos subjugar desde o estupro original, há cinco séculos; está o
desgoverno que, ao cortar cargos comissionados (em nome de uma austeridade
seletiva, porque em geral só atinge os mais vulneráveis), demitiu mais mulheres
do que homens – mesmo sendo superior o número de cadeiras ocupadas por eles.
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