Eu
não tenho nada a esconder, diz Lindsay (Shailene Woodley) a certa altura de Snowden, o mais recente filme de Oliver
Stone.
Usado
por muita gente para defender a vigilância em massa praticada por potências
como os Estados Unidos, o argumento esfarela quando Snowden (Edward Snow...,
digo, Joseph Gordon-Levitt) conta para a namorada que sabe que ela bisbilhota
os perfis de outros caras nas redes sociais. De repente, uma ruga de indignação
risca o rostinho bonito da moça, desenhando nele a palavra privacidade.
Podemos
não ter nada a esconder – mas temos hábitos, manias, segredos que jamais
revelaríamos se nos fosse dada a chance de guardá-los apenas conosco.
Foi
justamente o direito de escolher o que tornar público sobre a própria vida que acabou
deletado quando a Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana – em nome
da... segurança – passou a monitorar o mundo inteiro. O mundo inteiro mesmo: incluindo
você, seu vizinho paneleiro, sua ex-presidenta e até aquela famosa empresa
brasileira do ramo do petróleo. Ingenuidade sua achar que o alvo era só o
barbudinho com nome árabe que vende quibe perto da sua casa.
Ninguém
escapa desse Big Brother de que todos nós participamos, à nossa revelia, e em
que não recebemos cachê, muito menos corremos o risco de ficar milionários.
Mas
e o combate ao terrorismo? Mera desculpa para o controle econômico e social,
sublinha o ex-funcionário da NSA e da CIA (a Agência Central de Inteligência)
em sequência-chave do longa-metragem – longa que acompanha sua trajetória desde
a saída das Forças Armadas por problemas de saúde (e posterior admissão naqueles
órgãos) até o momento em que ele resolve compartilhar o que sabia com o
jornalista Glenn Greenwald (Zachary Quinto) e a cineasta Laura Poitras (Melissa
Leo).
Não
custa lembrar que essa vocação do Tio Sam para meter o bedelho – e escutas – na
soberania alheia é antiga. Isso fica evidente, por exemplo, no documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo
Tavares, que daria uma ótima sessão dupla com o filme de Stone e é altamente recomendável
para os brasileiros, especialmente os patrioteiros, que carregam no peito e no
gogó muito orgulho, muito amor.
De
volta ao thriller stoneano, é importante observar como o diretor desmonta a
imagem de judas que Snowden tem para muitos conterrâneos (e para quem subtitulou
a fita, aqui no Brasil, com aquele cafona “herói ou traidor”). O rapaz é
retratado como um sujeito que sempre quis servir seu país: ele sofre por ter de
abandonar o Exército em razão das lesões causadas pelos exercícios militares; ele
afirma que os Estados Unidos são a maior nação do mundo, num teste a que é
submetido para entrar na CIA; ele se incomoda quando Lindsay critica Bush, o commander-in-chief na época em que a
conhece.
Snowden
delata a espionagem não porque seja contra a América ou seus valores, mas
porque deseja preservar alguns dos pilares que a sustentam: de um lado, o óbvio
direito à privacidade; do outro, o de qualquer cidadão questionar as atitudes
do governo. Ao defender essas premissas, ele entende estar, mais uma vez, a
serviço de seu país. Essa coerência – que permeia o arco dramático do
personagem – só fortalece a simpatia e a admiração que o espectador desenvolve
por ele.
Nem
precisava o roteiro recorrer ao clichê da cena-em-que-a-plateia-levanta-e-aplaude-de-pé-o-herói
para salientar a relevância de seu protagonista.
Só
o fato de Snowden ter deixado para trás família, namorada, amigos, carreira
promissora, bom salário, a liberdade de andar por onde quisesse (inclusive sua
terra natal), somado ao tamanho do inimigo que ele enfrentava – o que se
materializa na sequência em que Corbin O’Brian (Rhys Ifans) surge imenso e
ameaçador na tela, à la Chanceler Sutler em V
de vingança –, já seria motivo suficiente para não duvidarmos da força
daquele moço, franzino apenas por fora.
Espiando
a aventura vivida por ele e pensando na realidade brasileira – sufocada por um
“governo” que exige os nomes de alunos que ocupam escolas em protesto contra
medidas autoritárias, ou que perde tempo tentando bloquear os emojis de vômito em
notícias relacionadas ao seu “presidente” no Facebook, numa demonstração clara de
que não consegue conviver com a democracia –, me pergunto como cada um de nós
gostaria de enxergar a si mesmo daqui a alguns anos...
...
como alguém feito Snowden – que se rebelou contra um sistema opressor e já tem
seu lugar entre os heróis de nosso tempo – ou alguém feito o engenheiro
interpretado por Nicolas Cage (Hank Forrester), que se resignou diante de uma
injustiça e acabou exilado dentro do próprio país, numa sala cheia de
bugigangas sem serventia (ele entre elas), esquecido numa espécie de
almoxarifado da História?
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