domingo, 4 de dezembro de 2016

Escombros

A ideia era enxergar o verde em meio aos destroços.

Era escolher as palavras possíveis para resgatar – da tragédia que vitimou quase o time inteiro da Chapecoense, além de jornalistas e tripulantes – a esperança ainda com vida.

O texto que parecia improvável começou a ganhar forma quando clubes espalhados pelo país substituíram seus escudos nas redes sociais pelo brasão da Chape. Depois, num gesto que transbordou a mera solidariedade virtual, ainda se comprometeram a emprestar jogadores sem custo ao time catarinense e a defender seu não rebaixamento pelos próximos três anos, numa tentativa de ajudar em sua recuperação.
"Brasília em ruínas", Oscar Niemeyer

A comoção foi tão forte, que até o inimaginável aconteceu: o Corinthians pintou de verde sua página na internet.

Enquanto isso, fora das quatro linhas, um famoso site perdia leitores (e os tão disputados cliques) ao pular a catraca do bom senso e publicar matérias tipicamente oportunistas, como um artigo que ensinava a lidar com o medo de voar e – pasmem – um vídeo com passageiros em pânico num avião. Já uma loja de artigos esportivos virou alvo da ira pública ao aumentar o preço da camisa da Chape poucas horas após o acidente. Mais tarde, a empresa se pronunciaria: o valor havia sido reduzido por causa da Black Friday e o preço original tinha sido apenas restabelecido. Verdade ou não, a antipropaganda já estava feita.

Até a área de comentários de grandes portais como G1 e UOL parecia ter sofrido um saneamento básico: paz e amor no lugar do usual chorume.

Não bastassem todas essas demonstrações de empatia, o Atlético Nacional pediu à Conmebol que declarasse campeão o time brasileiro, seu adversário na final da Copa Sul-Americana. A atitude dos colombianos – surpreendente num mundo onde costuma prevalecer a máxima “farinha pouca, meu pirão primeiro” – repercutiu tão bem do lado de cá da fronteira, que imaginei que ela pudesse servir de inspiração aos brasileiros, em especial aos nossos parlamentares, habituados a sempre sacrificar os mais vulneráveis em momentos de turbulência econômica.

Ingênuo, eu.

Eles aproveitaram o luto que tomou conta do país – e a indiferença cúmplice da grande mídia, dedicada quase exclusivamente ao desastre aéreo – para aprovar cortes em investimentos sociais pelas próximas duas décadas (a despeito das manifestações contrárias ao ajuste que aconteciam a poucos metros, violentamente reprimidas pela polícia) e alterar alguns projetos de lei que poderiam contribuir no combate à corrupção; tudo isso entre uma noite de dor e uma madrugada de tristeza, o que deixou no ar uma hedionda fragrância de autopreservação e oportunismo.

A ideia, eu já disse, era enxergar o verde em meio aos destroços.

Só que atos como esses – que desnudam não só os verdadeiros vândalos da nação, como o nível de obscenidade a que chegamos – insistem em levar as palavras até os destroços. Tais atos fazem jus, inclusive, à tirada de gosto muit(íssim)o duvidoso, mas de conteúdo infelizmente realista, que ouvi esses dias e ouso repetir antes do ponto final:

A tragédia em Medellín, para alguns, parece ter caído do céu.

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