domingo, 31 de julho de 2016

Distopia

Nem os carros voadores, nem a Rosie (embora uma robô capaz de dobrar lençóis de elástico não fosse de se jogar fora). O que mais me encantava em Orbit City, a cidade onde viviam os Jetsons, era o fato de George trabalhar, graças aos avanços tecnológicos, apenas três horas por dia, três dias por semana; alguns sites registram um expediente ainda menor: uma hora por dia, dois dias por semana.

Utopia.

Com um exterminador do futuro prestes a tomar definitivamente a presidência da República, não dá mais para acreditar num destino como o do simpático personagem da Hanna-Barbera. Viajamos a 88 milhas por horas rumo ao amanhã de outro George, o Miller – criador daquele deserto pós-apocalíptico em que a única esperança era um sujeito tão louco, que só podia se chamar Mad Max.

Já vejo as ações da Umbrella disparando na bolsa depois de aprovada a jornada de trabalho de oitenta horas semanais e trinta minutos para o almoço. Vejo também os trabalhadores braçais pobres – cuja expectativa de vida é inferior à idade mínima a ser imposta para a aposentadoria – saindo das covas para reivindicar seus direitos. Vai ser tanto zumbi tocando o terror, que periga o Estado Islâmico explodir de inveja.

Sorte nossa que a Justiça e a Polícia Federal hão de tomar as providências necessárias para evitar esse Armagedom. Como guardiãs da galáxia, da moral e dos bons tucanos, vão pôr em prática a Operação Minority Report, em que mandados de prisão preventiva expedir-se-ão na calada da noite e os mortos-vivos conduzir-se-ão coercitivamente a presídios de segurança máxima, onde submeter-se-ão ao tratamento Ludovico.

A terapia inclui ouvir mil discursos de célebre orador especializado em mesóclises. Cheguei a escutar meio minuto de um deles e posso garantir: é cyberpunk.

Caso algum defunto escape dos robocops, a lei Bandido Bom é Bandido Morto – aprovada há meio século na Câmara dos Siths – autoriza os cidadãos de bem a usarem seus fuzis de blaster contra ele. Se o cadáver em questão der sinais de feminismo, gayzismo ou quaisquer outros comunismos, é ainda permitido ao atirador o emprego das minipistolas conhecidas como pastores.

Nenhum neuralizador executa uma lavagem cerebral melhor que elas.

Outra lei prestes a completar bodas de ouro neste nada admirável mundo novo é a Fahrenheit – apelidada de Escola sem Livro. É particularmente curioso o artigo 451, que obriga as instituições de ensino a eliminarem suas bibliotecas utilizando imensas fogueiras. Especialistas do Greenwar concluíram que a emissão de gás carbônico é cem vezes menos danosa ao meio ambiente que a de ácaros, fungos e ideias.

Engana-se, porém, quem pensa que o pior já passou. Não sabe o que é ter um vizinho que todo dia abre as janelas de sua caverna e uiva um animado iabadabadu.

P.S.: Como até a Terra um dia parou, vou me dar o direito de entrar em contato imediato com as férias. Volto assim que for devolvido da abdução.

domingo, 24 de julho de 2016

Quem você vai chamar?

Agora não é mais uma mulher que berra ao topar com um fantasma. É um homem que berra – e se borra – ao fazer contato com uma criatura do outro mundo.

Traduzido no país do ministério só-de-machos como Caça-fantasmas (embora o original contasse com o artigo masculino), o novo Ghostbusters não inverte os sinais apenas em sua sequência inicial; ao apostar num quarteto feminino para envergar as célebres mochilas de prótons, vai ao além, digo, vai além – e se estabelece como uma obra sensível a um tema relevante de sua época: a igualdade de gênero.

Reconheço ter ficado ligeiramente decepcionado com o reboot, quando soube que Bill Murray, Dan Aykroyd e Ernie Hudson não reprisariam seus papéis como Peter Venkman, Raymond Stantz e Winston Zeddmore, respectivamente. No entanto, após vê-lo, entendi a decisão: a presença deles interpretando os antigos personagens acabaria forçando os roteiristas a tratá-los como mentores ou inspiração das garotas.

E tudo que AS caça-fantasmas não quer é cair no clichê das mocinhas que, na hora do pesadelo, precisam de uns marmanjos para ajudá-las.

Uma das qualidades do longa dirigido por Paul Feig é justamente incorporar as reações histéricas daqueles seres que, ao descobrirem que a versão nova seria protagonizada por quatro mulheres, passaram a fazer a linda blair e revirar os próprios pescoços. Vide a cena em que Erin (Kristen Wiig) lê comentários sobre um vídeo no Youtube e um deles diz que “vadia nenhuma vai caçar fantasmas”.

Mas o filme não se restringe ao exorcismo dessas almas penadas – que ainda não fizeram a passagem para um plano superior na escala de evolução.

Entre suas virtudes, está o timing cômico do elenco. Kristen Wiig, Melissa McCarthy e Chris Hemsworth são tão precisos, que até piadinhas bobas como a que menciona o bichinho de estimação de Kevin (Hemsworth) arrancam risadas. Igualmente expressiva, Leslie Jones se destaca mesmo nas menores falas: “Ok, sala cheia de pesadelos...”, sussurra Patty com seus botões ao dar de cara com um monte de manequins.

Uma das atrizes, porém, assombra as expectativas. É Kate McKinnon. As passagens em que Holtzmann dança “Rhythm of the night” ou quebra uma guitarra ou se diverte experimentando (e assustando de) chapéu e peruca são só algumas em meio a tantas nas quais ela surge possuída pelo demônio da insanidade – o que me lembrou a performance arriscada mas bem-sucedida de Johnny Depp como Jack Sparrow, o pirata em cujas veias corria rum.

Eu adoraria me espantar com (muitas) aparições de McKinnon na próxima temporada de prêmios.

Tão divertidas quanto as manifestações de sua personagem são as referências aos Ghostbusters originais. Estão lá a eterna canção de Ray Parker Jr. – que baixa em vários momentos –, o famoso logo – que a montagem reverentemente esconde até os últimos segundos da cena que envolve um jovem grafiteiro – e outras citações menos óbvias, como Erin afirmando que “livros não podem voar e bebês também não”.

Já as meninas podem, se quiserem; podem voar para longe daquela encruzilhada onde só lhes restava ser princesas e esperar um príncipe para alcançar a felicidade. Num filme como As caça-fantasmas, mulheres não são mais receptáculo de velhos estereótipos, nem chamam ninguém: são ELAS as chamadas. Contando totalmente umas com as outras, pegam as chaves de seu Ecto 1 e vão à luta.

E ai do espírito (de porco) que ousar impedi-las.

domingo, 17 de julho de 2016

Aquele abraço

Como assim ainda não levaram para a escola de superdotados do Professor Xavier o menino português que, em vez de tirar um sarro do francês chorão, estendeu sua empatia e o abraçou? Sério que não recolheram nem uma amostra de sangue do pequeno gajo? Não extraíram nem uma gotícula de saliva? Não puxaram nem um fiozinho de cabelo? Não arrancaram nem um bife da unha?

Alô, alô, cientistas, o gene desse potencial mutante – se clonado em larga escala – pode salvar a humanidade do vírus da indiferença e, por tabela, da extinção.

Não foi por acaso que encantou o mundo a cena do miúdo consolando o marmanjo após a final da Eurocopa, em que Portugal venceu a França. Como a vitória improvável de um time sem o seu craque, só encanta o que surpreende. Só encanta o que foge à regra. Só encanta a notícia que não esperamos ver na manchete. Só encanta o que não costuma estar nas prateleiras do cotidiano. Só encanta o cravo que nasce no asfalto.

Só encanta o que os males espanta.

Mau sinal que um carinho chame tanta atenção. Não deveria ser normal o transeunte oferecer uma quentinha ao sem-teto esfomeado? o aluno nota dez ajudar o colega com dificuldade em equações? a vizinha segurar a porta do elevador enquanto o vizinho entra com o carrinho do bebê e o carregamento de fraldas? o chefe liberar a funcionária mais cedo para ela levar o pug resfriado ao veterinário? o motorista parar no sinal verde até a dona senhorinha atravessar a rua? o prevenido dividir o guarda-chuva com o desprevenido? os adversários dentro de campo trocarem cartões de Natal fora dele?

O nativo abrir as portas de sua casa para o refugiado?

Quase tão desconcertante quanto o gesto do garotinho luso foi o gol de Éder, que garantiu o título europeu aos portugueses. Num momento em que a xenofobia tem goleado a cooperação entre os povos, em especial no Velho Continente, o tento marcado por um imigrante nascido em Guiné-Bissau e criado em Coimbra – na decisão da mais importante competição local entre nações – foi de estufar a rede dos reaças de plantão.

Ao correr para o abraço com os companheiros de equipe, o mais novo herói português rimou bonito com a canção composta por David Guetta para o torneio, a onipresente “This one’s for you” – um hit que não só miscigena sonoridades lestes e oestes, refletindo assim a diversidade cultural que constitui a Europa, como ainda celebra em seu refrão que “vamos continuar fortes juntos”.

Quem dera esse verso ecoasse além das quatro linhas.

domingo, 10 de julho de 2016

O Império contra-ataca

Passados vinte anos, os aliens resolvem atacar os Estados Unidos da Terra mais uma vez. E mais uma vez num Quatro de Julho. Tanto tempo e os ETs de Independence Day não atinaram o óbvio: que não há chance de vitória contra os americanos quando eles estão num dos seus raros dias de folga. Bem se vê que poderio bélico e vida inteligente não caminham necessariamente juntos.

Outra conclusão a que cheguei ao final do filme: tamanho não é mesmo documento. Nem uma nave capaz de cobrir um oceano inteiro – e de pulverizar uma capital como Londres – faz sombra àquela (bem menor) que mandou a Casa Branca pelos ares. Claro, essa sequência gerou tanto impacto à época, a ponto de se tornar antológica, porque foi realizada muito antes da queda das Torres Gêmeas, quando a América (e o Ocidente de modo geral) ainda conservava certa aura de território inexpugnável.

Hoje em dia, a consciência de que nenhum lugar é seguro (nem Nova York, nem Washington, nem Paris, nem Orlando) talvez dilua a comoção da plateia diante dessas explosões de terabytes. Acrescente-se a isso o fato de o longa de 1996 ter (re)aberto as portas do cinema para o apocalipse, possibilitando que vulcões, tsunamis, asteroides e até uma profecia maia tirassem suas casquinhas da superfície terrestre – o que de alguma forma anestesiou o público para cenas espetaculosas de destruição em massa.

Já que superar o original com mais tiro, porrada e bomba seria quase impossível, que se tentasse com os novos personagens. Não deu. Você soma todo o elenco jovem (que conta até com o irmão do Thor que não é o Loki, mas o ainda inexpressivo Liam Hemsworth) e não atinge dez por cento do talento e carisma de Will Smith – cujo capitão Steven Hiller virou apenas uma foto na parede depois de sua morte durante testes do primeiro caça com tecnologia alienígena.

Salvam-se ali os veteranos, entre os quais Bill Pullman – que, se agora não sobe no carro de som para levantar a moral da tropa, ao menos mantém o olhar charmosamente canastra de presidente herói – e Jeff Goldblum – que sustenta a imagem de profissional sério (uma espécie de consultor do governo para assuntos interplanetários) sem deixar de lado o bom humor diante do absurdo, como no instante em que comenta que os ETs adoram destruir nossos pontos de referência.

Infelizmente, tiradas divertidas como essa não redimem o roteiro – que seria mais atraente se desenvolvesse as boas ideias que sugere e não sucumbisse a velhos preconceitos. Por um lado, minutos que poderiam ser usados para detalhar a ação dos ETs presos na Área 51 ou os incidentes na África (onde o pouso de uma nave deu origem a uma batalha campal entre humanos e aliens) são desperdiçados com bobagens, como a caricatura irrelevante e sem graça de Nicolas Wright. Por outro, o cuidado de se mostrar um mundo menos machista que o de duas décadas atrás – com mulheres em posições de comando – é sabotado pelos próprios roteiristas, que concebem a presidenta americana como uma líder que, invariavelmente, toma decisões erradas e precisa ser substituída por... homens.

Esses tropeços, no entanto, ainda poderiam ser minimizados se o filme conseguisse ao menos emular a tensão crescente de seu antecessor, quando os espectadores iam ficando mais e mais aflitos a cada ofensiva terráquea que esbarrava nos sistemas de defesa do inimigo e nos aproximava da extinção. Não consegue. Culpa do clímax, que inclui uma godzilla mais desengonçada que assustadora perseguindo um típico school bus? Ou do clímax do clímax, que traz quatro caças manobrando explicitamente contra a monstrenga, sem que a esquadrilha adversária se mexa para defendê-la, permanecendo confinada naquele carrossel inútil em torno de sua rainha?

Se não chega a ser um desastre – em especial graças à memória afetiva que certas passagens e personagens despertam nos fãs –, o novo ID aterrissa nas telonas a anos-luz de seu precursor. Arrasa tanto quanto arrasou, desta vez, um famoso cartão-postal, causando nele meras escoriações e fazendo tombar tão somente a bandeirinha que tremulava em seu topo.

domingo, 3 de julho de 2016

Ilhados

Não satisfeita com a aliança de brilhantes, o bolo confeitado a ouro e o salão cujos lustres devem ser mais caros que o meu apê, a noiva queria porque queria pinguins na sua festa de casamento. Você não leu errado: pinguins. E lá foi a lindona a um desses aquários gigantes (tipo Sea World) alugar o que, nas suas palavras, eram os bichinhos mais fofos do universo. Só que, ao entrar na gaiola, ela se deu conta de que os tais bichinhos não eram tão fofos assim. Faziam barulho, fediam a peixe e – muito malcriadamente – bicavam quem se aproximasse deles para uma selfie involuntária. Preocupada com o conforto e a integridade física de seus convidados, a moçoila resolveu então substituir os animais por réplicas de pelúcia.

Pode parecer um episódio perdido de Twilight Zone, mas é apenas mais um casório registrado pelas câmeras do Vestido ideal: o grande dia, do Discovery Home & Health.

Só esse pedacinho de programa já merecia uma ação do Greenpeace em parceria com a Sociedade Protetora das Aves Que Vivem em Iglus. Valia até um #ocupaigreja ou o confisco dos bem-casados. Qualquer coisa que chamasse a atenção da dondoquilda e de qualquer outro desavisado capaz de achar o máximo, por exemplo, incluir uma onça pintada no roteiro da tocha olímpica.

Surpresa nenhuma essa incompetência do ser humano em se pôr no lugar de outras espécies. Não consegue se pôr no lugar nem da própria.

Continuo esperando ansiosamente o dia em que vamos entender, de uma vez por todas, que o outro não é obrigado a ser como a gente espera que ele seja. Que nem toda mulher sonha com a maternidade. Que nem todo rapaz sonha com a habilitação. Que nem todo menino gosta de futebol. Que nem toda menina prefere rosa. Que nem todo gay conhece a obra completa da Lady Gaga. Que nem todo jovem vira o finde na balada. Que nem toda vovó se vira no tricô. Que nem todo tímido quer vencer a timidez. Que nem toda gordinha quer vencer a balança. Que nem todo deputado exige propina. Que nem toda madrasta é vilã. Que nem todo brasileiro seca os argentinos. Que nem todo carioca frequenta a praia. Que nem toda princesa mora num castelo cheio de muros.

Tem a mulher que concebe romances policiais, o rapaz que faz da bike o seu conversível, o menino que quer ser o próximo masterchef, a menina que (tal qual a Cinderella) adora azul, o gay que coleciona as rosas atiradas pelo Rei em seus shows, o jovem que passa a madruga lendo Pessoa, a vovó que não perde um rapel com os amigos, o tímido que acha ótimo ir ao cinema sozinho, a gordinha que seduz a si mesma com suas curvas, o deputado que – pasmem – respeita seus eleitores, a madrasta que é mãe, o brasileiro que reverencia o Messi, o carioca que gosta de dias nublados.

A princesa que vive na aldeia.

Certamente esse não era o caso daquela noiva e o de muitas pessoas por aí – que têm passado cada vez mais tempo em seus castelos de pelúcia e, por isso, se assustam sempre que topam com pinguins de carne, osso e penas. Daí a necessidade de sair da caixinha com mais frequência e conhecer outras realidades. Deixar a ilha onde residimos e dar umas voltas no continente ajuda a exercitar a empatia. Principalmente: diminui o risco de fazermos da nossa vida um eterno brexit.

Um plebiscito diário em que, inadvertidamente, escolhemos nos isolar do resto do mundo.