Certa
vez, ouvi de um crítico de cinema que a maior parte dos espectadores enxerga
apenas vinte por cento dos filmes a que assiste. Esse um quintinho abarcaria a
história e os atores. Não à toa, ao sair de uma sessão, os comentários costumam
variar entre “fiquei com medo”, “a Meryl Streep estava ótima” e “o crédito do meu
celular acabou”.
É
comum o público não perceber como a fotografia, o figurino, a montagem, entre
outros elementos, ajudaram a criar aquela atmosfera de terror ou contribuíram
para que aquela atriz fosse indicada ao Oscar pela enésima vez. Poucos se dão
conta da delicada carpintaria que os fez rir, chorar ou degustar as unhas numa
sala escura por duas horas.
Raros
são os olhos capazes de observar, por exemplo, que Kay (personagem de Diane
Keaton em O poderoso chefão) vai aos
poucos trocando seus vestidos de tons quentes por trajes de cores neutras,
porque se deixa paulatinamente esmaecer pela sombra da família Corleone – e não
porque, de repente, mudou de personal
stylist.
Como
raros, raríssimos são os olhos que não piscam justamente nas quatro vezes em
que a imagem de Tyler Durden (Brad Pitt) surge subliminarmente no Clube da luta, indicando o quanto a
figura do vendedor de sabão já estava presente na vida do narrador, interpretado
por Edward Norton.
Quem
dera essa miopia – resultado de um olhar não treinado para sutilezas – se
curasse assim que as luzes fossem acesas. Mas não. Infelizmente não. Diante do
que tem acontecido do lado de cá da telona, chego à conclusão de que a teoria
dos vinte por cento vale também para o chamado mundo real.
O
caso recente da revista IstoÉ, com
uma Dilma aparentemente histérica na capa, é emblemático. Houve quem não visse ali
um exemplo clássico de machismo. Mesmo depois de saber que a fotografia –
tirada no instante em que a presidenta comemorava um gol do Brasil na Copa – tinha
sido manipulada. Mesmo depois de ser apresentado ao conceito de gaslighting, forma de violência psicológica
que leva a mulher e todos a seu redor a acharem que ela enlouqueceu ou é
emocionalmente incapaz. Mesmo depois de ser confrontado com uma capa de outra
revista (a Época), em que a fúria do
treinador da seleção brasileira de futebol – um homem – era interpretada como
um dom.
Mais
um sinal dessa epidemia de catarata que parece ter contaminado o país? As
reações de ódio dirigidas à esposa do ex-presidente Lula após a divulgação de
suas ligações telefônicas. Não entendo como alguém não consegue visualizar a
má-fé de uma mídia que – sob o pretexto de registrar o passo a passo de uma
investigação que envolve políticos, empresários e corrupção – põe no ar um
diálogo entre mãe e filho no qual ela usa palavrões para xingar os vizinhos batedores
de panela. Em que um telefonema desses ajuda a esclarecer sobre propinas e
afins? Como as pessoas não se dão conta de que a conversa foi exibida com a
única intenção de depreciar a ex-primeira dama?
Talvez
já esteja entre nós o mal branco imaginado por Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira. Só isso para
explicar o fato de um indivíduo não compreender que repetir piadas de “viado” é
dilatar o terçol da homofobia; que dizer que a mulher estuprada não deveria ter
saído sozinha de casa à noite é deslocar a retina da culpa para a vítima; que ser
contra programas de renda mínima (como o Bolsa Família) e a favor da
meritocracia é fechar os olhos para a desigualdade de oportunidades; que criticar
político corrupto e furar a fila do banco e molhar a mão do guarda e sonegar
impostos é fazer vista grossa para os próprios malfeitos.
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