Passei
os últimos dias tentando me recuperar do baque. Nunca imaginei que aquela
carta escrita à mão, em papel rosa-bebê e cujo envelope exalava Cashmere
Bouquet (reproduzida aqui na semana passada) despertaria tamanha nostalgia em
tantos leitores. Foi uma baita surpresa constatar a quantidade de donzélicas
senhoras saudosas de um país que – deixa eu contar pra vocês – jamais existiu.
Afinal
de contas, só numa terra em que unicórnios – u-ni-cór-nios – cavalgassem, ricos
e pobres caminhariam juntos pela orla
de Ipanema, tomariam juntos chá na
Confeitaria Colombo, frequentariam juntos
os camarotes do Municipal, viajariam juntos
para a serra nas férias escolares; a não ser que o rico em questão fosse uma
criança nascida em berço esplêndido e o pobre da vez, sua babá.
Babá
que não tinha nem horário fixo: tinha, ao contrário, que se “divertir a valer”
(“trabalhar”, em tradução livre de ironia) às vezes até a madrugada, dependendo
da insônia do rebento. E ai dela se exigisse horas extras ou adicional noturno
por isso. Onde já se viu alguém que era “praticamente da família” reivindicar “regalias”
(“direitos”, também em tradução livre de ironia)?
Continuando
meu périplo pelo reino dos unicórnios: só nele, ou noutro que não tivesse
experimentado séculos de escravidão, brancos e negros viveriam “na mais
completa harmonia”. E “mais completa harmonia” não significa apenas dividir a
Sapucaí no carnaval; significa também condições minimamente equivalentes de
disputar, por exemplo, uma vaga na universidade. Caso seu coração bombeie ao
menos um mililitro de empatia por minuto, não será tão difícil perceber que Maria
Onete – cinco irmãos menores para cuidar, trabalho na feira ao lado da mãe – e Maria
Embranquecida – que nunca precisou olhar o maninho, nem ajudar o pápi na firma (tendo
assim todo o tempo do mundo para estudar) – não largaram da mesma posição no
grid da vida.
Aí
é que entram as cotas – instrumento que, se não é o ideal, reduz distâncias e
faz com que a corrida seja mais justa.
Por
falar em justiça, tratar os nordestinos com a dita-cuja – e, consequentemente,
com a tal dignidade – não é permitir que eles troquem seus lares por periferias
quase sempre ignoradas pelo poder público; não é submetê-los a atividades (informais,
inclusive) que muitas vezes não garantem aquelas “regalias” já citadas. Não é
disfarçar com aparente compaixão o fato de que não se providenciou, na terra
deles, um ambiente que suprisse suas necessidades mais básicas, como o acesso à
água.
Lembro
que aqui a donzélica senhora mencionou indiretamente o surrado slogan “não tem
que dar o peixe; tem que ensinar a pescar”, logo após afirmar que “os paulistas não
pensavam duas vezes em oferecer trabalho e abrigo” aos imigrantes. Mas como é
que se ensina a pescar num lugar em que nem poça é disponibilizada aos
moradores?
Quanto
ao penúltimo parágrafo da carta, sobre o amor entre petralhas e coxinhas, sobre
aulas de história cabuladas, sobre encontros furtivos com um certo Lu, sobre um
bosque atrás da escola, sobre braços fortes e companhia, me reservo o direito
de não comentar – por obviamente se tratar de assunto de foro íntimo.
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