Aquele
cinema não era minha segunda casa. Era a primeira. Só lá eu conseguia sonhar
depois que apagavam as luzes.
Perdi
a conta de quantas vezes atravessei a rua sem olhar os carros. Quantas vezes
pulei os degraus da entrada como se fosse um coelho atrasado. Quantas vezes
escorreguei no piso encerado. Quantas vezes passei o tempo lendo as letrinhas
dos cartazes enquanto esperava na fila. Quantas vezes assisti à mão da
bilheteira deslizando o ingresso pela fresta no vidro.
O
detalhe não mereceria um parágrafo de atenção se não tivesse relampeado meus
olhos no mesmo instante em que um raio gritou “ação!” e a tempestade entrou em
cena.
Deu
vontade de ir ao banheiro. Dez minutos para a sessão. Fui tranquilo. O toalete
estava às moscas – varejeiras. Só uma lâmpada funcionava – mal. Piscava tanto
que não me surpreenderia se batessem a porta e eu ouvisse alguém dizer: let’s
play a game. Me tranquei no único reservado. Zíper, alívio, descarga. De
repente escutei passos. Ligaram a torneira. A luz apagou de vez.
A
água escorrendo era a única trilha sonora.
Como
eu não suportava perder nem o curta com as instruções de segurança, fechei o
zíper e abri a porta cheio de coragem (não necessariamente nessa ordem). A
lâmpada acendeu no ato. Ninguém ali – a não ser minha alma depenada. Lavei as
mãos com o sabonete líquido que ainda restava. Não havia papel para secá-las.
Aproveitei para ajeitar o cabelo, levemente arrepiado.
Não
adiantou nada. O preço da pipoca eriçou cada um dos fios novamente.
Comprei
um Halls e corri para a sala. Só dois lugares estavam desocupados: o meu e o do
lado. Pus a bolsa na poltrona vazia e uma bala na boca. Imediatamente um gosto
amargo roçou a língua e desceu pela garganta – ao mesmo tempo que a escuridão
roçou as paredes e desceu até a plateia. A sessão enfim havia começado.
Só
que eu não ia aguentar duas horas de saliva sabor breu. Precisava de um refri.
Ou de qualquer outra infusão doce. Ignorei os trailers e voltei à bomboniere. Nem
sombra do rapaz que tinha me atendido. Minto. A sombra dele estava lá – apenas a sombra. Tentei então o bebedouro:
em manutenção. Última alternativa? A chuva lá fora. Mas a entrada principal e
as saídas de emergência estavam fechadas.
Eu
até teria reclamado com o gerente se ele não tivesse dado o ar da desgraça de
um modo tão previsível: dependurado pelo pescoço no lustre do saguão.
A
cena me fez lembrar outra coisa que vivia dependurada. Falo da minha bolsa.
Tinha esquecido a danada na sala – que se encontrava trancada àquela altura. Sem
saber mais o que fazer, gritei hitchcockianamente. Péssima ideia. Uma amostra
de ectoplasma surgiu no corredor e resolveu flutuar justamente na minha
direção. Era a bilheteira.
Aquelas
unhas por pouco não fizeram um estrago. Acordei no minuto certo, salvo pelo
rock pesado que o diretor escolheu para embalar os nomes subindo na tela. A
maior parte do público já havia deixado o cinema. Cinéfilos mal treinados. Perderam
a sequência pós-créditos: eu abrindo a bolsa e dando falta do moleskine onde eu
guardava anotações da vida inteira.
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