Crail
é um vilarejo perdido no litoral leste da Escócia. Foi lá que a apresentadora Mel
Fronckowiak conheceu um velho pescador e, ao entrevistá-lo para o programa Destino certo (exibido no canal
+Globosat), perguntou-lhe se já tinha pensado em mudar de vida, uma vez que
mantinha a mesma rotina havia vinte e tantos anos. A resposta dele: não. Eu
tenho meu barco, não preciso de mais nada.
Difícil
saber que itinerários aquele capitão e sua modesta nau cumpriram ao longo de
duas décadas. Teriam atracado em portos além da imaginação? Içado velas entre o
pôr do sol e o nascer da lua? Enfrentado ondas capazes de inundar as nuvens?
Cruzado com piratas famosos? Sobrevivido a um desfile de baleias circenses? Ficado
simplesmente à deriva catando conchas e estrelas?
Só desejo uma história ímpar ao par em questão. De qualquer modo, um barco é
sempre um horizonte.
E
todo mundo deveria ter um: barco ou horizonte – dá no mesmo. A possibilidade
de se lançar a mares nunca dantes navegados ajudaria muita gente por aí a
desencalhar de lugares-comuns, preconceitos, discursos mumificados e
de tantos outros redemoinhos que só afogam nossa esperança de ver a humanidade
velejando por águas menos turvas.
Remei
daquela cidadezinha escocesa até aqui pensando no amigo náufrago que se julga a
mais tolerante das criaturas, mas não aceita “o que não é normal”. A homossexualidade
é um de seus icebergs. Já lhe joguei várias boias: o ser humano não escolhe a
orientação sexual; da mesma forma que não escolhe ser negro, ser alto, ser
craque em trigonometria, ser uma lástima com a bola nos pés. Ele nasce de um
determinado jeito. É uma condição dele. E o que nos resta é tratá-lo com
respeito. Ponto.
Cadê
que o marujo agarrou uma boinha?
Ele
ainda mergulha fundo na ideia de que “as famílias estão sendo destruídas aos
poucos”. Mais boias: de que famílias você está falando? daquelas em que os
homens podiam agredir, humilhar, ter amantes e as mulheres tinham que aceitar
tudo caladas? daquelas em que o arranjo social era mais importante que o afeto?
daquelas em que os filhos “desobedientes” sofriam maus-tratos físicos? daquelas
em que conversar sobre qualquer assunto era sobremesa rara nos almoços de
domingo? daquelas em que os pais ensinavam o menino a ser “pegador” e a menina
a se “preservar” – já que ela podia topar com um rapaz criado igualzinho ao seu
rebento?
Infelizmente,
o mar está infestado de crusoés: tem o que se queixa de racismo
quando é chamado de palmito (mas não lembra em que lavoura seus alvos tataravós
trabalharam por livre e espontânea opressão); tem o que combate a criminalidade
com o lema bandido-bom-é-bandido-morto (seguido à risca pela polícia brasileira
e cuja consequência é a paz que se transpira nas ruas); tem o que repete que
não havia corrupção e violência no tempo dos militares (e só vê no dueto censura-tortura
uma rima pobre); tem até o que acredita que Hitler era comunista só porque seu
partido tinha “socialista” no nome (como se toda moçoila chamada Bela fosse
necessariamente uma Gisele Bündchen).
Mesmo
com mil guarda-vidas à disposição, esses inquilinos da Lagoa Azul ainda preferem
acabar numa ilha deserta, presos a suas âncoras.
Eu
sigo no meu humilde barquito e, graças a ele, estou quase aportando no último
capítulo do best-seller de Marcia Tiburi: Como
conversar com um fascista. Nas piores horas – em que dá vontade de ignorar
os gritos de “homem ao mar” e deixar o sujeito ir a pique sozinho –, repito
para mim mesmo a passagem na qual somos alertados de que “o diálogo é
resistência”, “é prática real de escuta em que a dúvida existe para abrir a si
próprio e o outro”, “é aventura no desconhecido”, “é ato político real entre
diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva”.
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