Recentemente,
o jornal O Globo defendeu em
editorial a “modernização” da legislação trabalhista como saída para “preservar
os empregos atuais” e “acelerar a criação de novos”. Não satisfeito em acusá-la
de “arcaica”, afirmou ainda que a CLT (a Consolidação das Leis do Trabalho)
tinha sido inspirada “no fascismo de Benito Mussolini”, numa clara tentativa de
demonizá-la ao relacionar sua origem a um regime totalitário.
À
época, comentei com amigos que a história se repetia; bastava um momento de
crise econômica para que os grupos midiáticos – grandes empresas que vivem do
dinheiro de outras grandes empresas (os anunciantes) – apontassem como solução
de todos os problemas o ataque aos direitos adquiridos dos trabalhadores. Brinquei
ainda que logo, logo iam recomendar a volta da escravidão como antídoto contra o
desemprego: casa, comida e trabalho garantidos até o fim da vida.
Seguindo
uma tradição de décadas – vide a antiga capa da mesma publicação em que se
anunciava o quão desastrosa seria para o país a criação de um décimo terceiro
salário –, o jornalismo brasileiro de massa tem, com poucas exceções, assumido cada
vez mais a posição de mero hipermercado de factoides e reles assessoria de
imprensa da elite econômica e do capital financeiro.
Outro
exemplo? Matéria publicada também em O
Globo, há algumas semanas, sobre o número de acidentes nas rodovias
federais. Entre suas principais causas, eram apontados “o despreparo dos
motoristas e a falta de manutenção dos veículos”, mas não era mencionada a batida
combinação direção + bebida alcoólica. Às vésperas do Carnaval – período em que,
provavelmente, as cervejarias gastam fortunas ainda maiores com publicidade –, talvez
não fosse conveniente fazer tal associação.
Diante
de um cenário desses, em que o negócio vale mais que a notícia, fico imaginando
quantas histórias de abuso sexual envolvendo padres deixariam de vir à tona se
o editor Marty Baron, recém-chegado ao The
Boston Globe, tivesse recuado ao ouvir de um superior que mais da metade dos
leitores do jornal era católica. Pois ele não só ignorou a pressão do chefe e
do mercado, como ainda escalou seu melhor time de jornalistas – o Spotlight que dá título ao filme de Tom
McCarthy, indicado a seis Oscars – para investigar os crimes de pedofilia cometidos
por párocos na capital de Massachusetts.
Baseado
em fatos que ocorreram nos idos de 2001 – quando a internet começava a disputar
“consumidores” com a mídia impressa, o que torna a decisão de Baron (Liev
Schreiber) ainda mais admirável –, o longa mostra a equipe formada por Walter
Robinson (Michael Keaton), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), Matt Carroll (Brian
d’Arcy James) e Mike Rezendes (Mark Ruffalo) descendo aos porões de casos
aparentemente isolados e, de repente, descobrindo a máfia que sobrevivia graças
à cumplicidade entre o alto escalão da Igreja e a sociedade local.
Uma
fala do advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci), veterano em assistir as
vítimas dos estupros, ilustra bem a situação: “If it takes a village to raise a
child, it takes a village to abuse them. That’s the truth of it” (“Se é
necessária uma aldeia para criar uma criança, é necessária uma aldeia para
abusar dela. Essa é a verdade”).
Verdade
que os integrantes do Spotlight perseguem com tanta dedicação que mais parecem
exercer um sacerdócio – o que não deixa de ser irônico, levando-se em conta
quem eles investigam. Coerentemente, o roteiro do próprio McCarthy e de Josh
Singer pouco se interessa por suas vidas pessoais. De Robinson, sabemos que joga
golfe; de Sacha, que tem uma avó religiosa; de Matt, que se preocupa com os
filhos; de Mike, que corre nas horas de folga até... o trabalho.
Eixo
de uma narrativa sem floreios e (quase) sem humor, a busca do quarteto – que
exige meses de pesquisa, apuração, entrevistas – alcança ainda mais relevo em
razão da ausência de perseguições alucinantes, melodramas artificiais ou
quaisquer outros artifícios que pudessem desviar a atenção da plateia. Recursos
mais sutis ajudam a sublinhar a dimensão da empreitada, como a presença de
templos católicos no fundo de várias sequências ao ar livre, o que sugere uma atmosfera
de ameaça constante.
Ao
final da projeção (em que é relatado, entre outros desfechos, o inacreditável
destino de certo cardeal, suspeito de acobertar os pecados de seus padres), o
espectador sai do cinema com a certeza de ter acompanhado uma lição de bom
jornalismo – coisa rara em tempos de tabloides cada vez mais angustiados com o
número de cliques em seu crescente conteúdo online. Não por acaso, o que
deveria ser usado como instrumento importante da democracia tem dado lugar a
manchetes sensacionalistas (muitas vezes fruto de acusações sem provas) e
artigos de meia página cuja relevância só não é maior do que a das inspiradas
notinhas dos cadernos de entretenimento.
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