domingo, 10 de janeiro de 2016

Policiais da verdade

Escoltado por orientandos, famoso historiador cerca professor em saída de restaurante e o xinga por sugerir mudanças no currículo escolar.

Qualquer semelhança com o episódio pitbulls do Leblon versus Chico não é mera coincidência. Juro que imaginei a cena depois de ler o artigo de Marco Antonio Villa, publicado no jornal O Globo no último dia 5, em que o uspiano vocifera contra a chamada Base Nacional Comum Curricular – que altera os programas dos ensinos fundamental e médio (os antigos primeiro e segundo graus).

Já adianto logo: não sou formado em História; não tenho mestrado em absolutismos nem doutorado em rebeliões; não entendo muito de ditaturas e democracias – só o mínimo para não confundir golpes com revoluções, militares com salvadores da pátria. Mas sei ler. E sou chato.

E não me conformei ao ver o nobre Villa insinuar em seu texto que os alunos do primeiro ano do ensino médio vão estudar apenas os “mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros”. Uma pesquisa rápida na Base Nacional e encontro para a referida série – logo no primeiríssimo item – a orientação de que fontes históricas sejam utilizadas “para construir conhecimentos sobre as culturas africanas, afro-brasileiras, ameríndias e europeias”. Isso mesmo. Eu-ro-pei-as.

Teria o historiador deliberadamente omitido o último adjetivo (último só porque se privilegiou a ordem alfabética) para adequar a realidade ao que desejava dizer? Eu queria acreditar que não. Queria mesmo. Mas suas palavras sangram tanto preconceito contra a cultura não europeia – “a proposta”, diz ele, “é um culto à ignorância” – que lhe dou, nesse caso, o malefício da dúvida.

As linhas correm e o renomado mestre afirma que, “da herança greco-latina, os nossos alunos nada saberão”. Só se o professor do terceiro ano ignorar o ponto que sugere “valorizar os patrimônios materiais e imateriais de povos europeus e asiáticos, tais como gregos, romanos, fenícios e mesopotâmicos, reconhecendo os legados culturais e as diversas formas de se relacionarem com a Estética, a Ética e a Política”. O leitor perdoe os itálicos daqui em diante: são dedicados aos míopes.

Villa também se mostra preocupado com o “apagamento” da história norte-americana – só recuperada, segundo ele, para lembrar “a região onde esteve presente a escravidão”. Aqui seus olhos devem ter cochilado (com certa razão, já que o documento é repleto daquele pedagogês com alto teor sonífero) e deixado escapar as passagens que se referem à colonização inglesa nas Américas e à independência dos Estados Unidos, ambas no segundo ano.

Em relação à história do Brasil, o ilustre doutor sentencia que “os policiais da verdade” não a perdoaram: “os movimentos pré-independentistas – como as Conjurações Mineira e Baiana – não existiram, ao menos no novo currículo”. Corrigindo: ao menos no novo currículo do ensino médio. Sei que o professor – por falta de tempo ou ingenuidade – resolveu se concentrar somente no velho segundo grau. Mas bastava uma visita ao sétimo ano (do ensino fundamental) para esbarrar no tópico que orienta a “inferir, a partir de fontes diversas, as motivações e as consequências de conflitos entre poderes locais e poder central no Brasil expressos em movimentos como a Revolta de Beckman (1684), a Inconfidência Mineira (1789), a Inconfidência Baiana ou Revolta dos Alfaiates (1798)”.

Bastava, igualmente, uma passadinha no programa do nono ano para constatar que a economia cafeeira não só não foi desconsiderada (Villa afirma isso), como ainda a colocaram – sabe-se lá por que motivo – com as iniciais maiúsculas: “Conhecer e compreender a crise da Economia Cafeeira, no século XX, por meio do estudo da pauta de exportações brasileiras na primeira metade daquele século e do lugar do Brasil no comércio mundial”.

Da mesma forma, essa consulta aos descritores do ensino fundamental evitaria as aberrações ditas a respeito da história geral, como a afirmação de que “o Renascimento – em todas as suas variações – foi simplesmente ignorado”. Oitavo ano: “Reconhecer a expansão ultramarina como parte da reformulação das ideias proporcionada pelo Renascimento europeu, por meio do estudo das inflexões ocorridas no campo das Artes e da Ciência”. Evitaria também a “informação” de que a Revolução Francesa não é citada uma vez sequer no documento. É citada, sim. Duas vezes pelo menos. De novo o oitavo ano: 1) “Reconhecer os nexos entre o processo de Independência e as transformações ocorridas na Europa, por meio do estudo da Revolução Francesa e seus desdobramentos no campo político”; 2) “Reconhecer as incorporações do pensamento liberal no Brasil, por meio do estudo do pensamento liberal expresso na Revolução Gloriosa e na Revolução Francesa”.

Eu poderia listar outros exemplos da desinformação promovida pelo historiador em sua crítica. Poderia até sublinhar com mais força o sentimento reacionário de quem considera “sanha anticivilizatória” uma visão menos eurocêntrica do mundo. Mas paro por aqui – certo de que já abarrotei o leitor com evidências suficientes de que o texto “recheado de equívocos” e de “panfletarismo barato” (é assim que Villa classifica a Base Nacional) não foi aquele escrito pelos professores que assinaram as propostas desse novo currículo escolar.

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