Escoltado
por orientandos, famoso historiador cerca professor em saída de restaurante e o
xinga por sugerir mudanças no currículo escolar.
Qualquer
semelhança com o episódio pitbulls do Leblon versus Chico não é mera coincidência. Juro que imaginei a cena
depois de ler o artigo de Marco Antonio Villa, publicado no jornal O Globo no último dia 5, em que o
uspiano vocifera contra a chamada Base Nacional Comum Curricular – que altera os
programas dos ensinos fundamental e médio (os antigos primeiro e segundo
graus).
Já
adianto logo: não sou formado em História; não tenho mestrado em absolutismos
nem doutorado em rebeliões; não entendo muito de ditaturas e democracias – só o
mínimo para não confundir golpes com revoluções, militares com salvadores da
pátria. Mas sei ler. E sou chato.
E
não me conformei ao ver o nobre Villa insinuar em seu texto que os alunos do
primeiro ano do ensino médio vão estudar apenas os “mundos ameríndios,
africanos e afro-brasileiros”. Uma pesquisa rápida na Base Nacional e encontro
para a referida série – logo no primeiríssimo item – a orientação de que fontes
históricas sejam utilizadas “para construir conhecimentos sobre as culturas
africanas, afro-brasileiras, ameríndias e europeias”. Isso mesmo. Eu-ro-pei-as.
Teria
o historiador deliberadamente omitido o último adjetivo (último só porque se privilegiou
a ordem alfabética) para adequar a realidade ao que desejava dizer? Eu queria
acreditar que não. Queria mesmo. Mas suas palavras sangram tanto preconceito
contra a cultura não europeia – “a proposta”, diz ele, “é um culto à
ignorância” – que lhe dou, nesse caso, o malefício da dúvida.
As
linhas correm e o renomado mestre afirma que, “da herança greco-latina, os
nossos alunos nada saberão”. Só se o professor do terceiro ano ignorar o ponto que
sugere “valorizar os patrimônios materiais e imateriais de povos europeus e
asiáticos, tais como gregos, romanos, fenícios e mesopotâmicos,
reconhecendo os legados culturais e as diversas formas de se relacionarem com a
Estética, a Ética e a Política”. O leitor perdoe os itálicos daqui em diante:
são dedicados aos míopes.
Villa
também se mostra preocupado com o “apagamento” da história norte-americana – só
recuperada, segundo ele, para lembrar “a região onde esteve presente a
escravidão”. Aqui seus olhos devem ter cochilado (com certa razão, já que o
documento é repleto daquele pedagogês com alto teor sonífero) e deixado escapar
as passagens que se referem à colonização inglesa nas Américas e à independência
dos Estados Unidos, ambas no segundo ano.
Em
relação à história do Brasil, o ilustre doutor sentencia que “os policiais da verdade”
não a perdoaram: “os movimentos pré-independentistas – como as Conjurações
Mineira e Baiana – não existiram, ao menos no novo currículo”. Corrigindo: ao
menos no novo currículo do ensino médio.
Sei que o professor – por falta de tempo ou ingenuidade – resolveu se
concentrar somente no velho segundo grau. Mas bastava uma visita ao sétimo ano
(do ensino fundamental) para esbarrar no tópico que orienta a “inferir, a
partir de fontes diversas, as motivações e as consequências de conflitos entre
poderes locais e poder central no Brasil expressos em movimentos como a Revolta
de Beckman (1684), a Inconfidência
Mineira (1789), a Inconfidência
Baiana ou Revolta dos Alfaiates (1798)”.
Bastava,
igualmente, uma passadinha no programa do nono ano para constatar que a
economia cafeeira não só não foi desconsiderada (Villa afirma isso), como ainda
a colocaram – sabe-se lá por que motivo – com as iniciais maiúsculas: “Conhecer
e compreender a crise da Economia
Cafeeira, no século XX, por meio do estudo da pauta de exportações
brasileiras na primeira metade daquele século e do lugar do Brasil no comércio
mundial”.
Da
mesma forma, essa consulta aos descritores do ensino fundamental evitaria as aberrações
ditas a respeito da história geral, como a afirmação de que “o Renascimento –
em todas as suas variações – foi simplesmente ignorado”. Oitavo ano: “Reconhecer
a expansão ultramarina como parte da reformulação das ideias proporcionada pelo
Renascimento europeu, por meio do
estudo das inflexões ocorridas no campo das Artes e da Ciência”. Evitaria
também a “informação” de que a Revolução Francesa não é citada uma vez sequer
no documento. É citada, sim. Duas vezes pelo menos. De novo o oitavo ano: 1) “Reconhecer
os nexos entre o processo de Independência e as transformações ocorridas na
Europa, por meio do estudo da Revolução
Francesa e seus desdobramentos no campo político”; 2) “Reconhecer as
incorporações do pensamento liberal no Brasil, por meio do estudo do pensamento
liberal expresso na Revolução Gloriosa e na Revolução
Francesa”.
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