Tempo
bom aquele em que a gente abria os jornais para se inteirar da realidade e ia
ao cinema para fugir dela. Esse tempo já era (se é que um dia ele foi). Hoje o
absurdo anda tão banalizado que, se Lewis Carroll fosse nosso contemporâneo,
não faria Alice viajar até um país distante para comemorar com o Chapeleiro o
desaniversário dela. A menina cantaria parabéns neste mundinho desmaravilhado
mesmo, talvez acompanhada de algum armani de Wall Street. Aqui o buraco do
coelho é mais embaixo.
Aqui
um filmão estrelado por Christian Bale, Steve Carell e Brad Pitt bota as mãos
inteiras nas feridas do capitalismo – ao investigar causas e consequências da
crise imobiliária detonada em 2008 nos Estados Unidos – e a velha imprensa
tupiniquim usa até os pés para aplaudir o livre mercado, responsável pela “reação”
norte-americana depois do crash de oito anos atrás.
Dirigido
por Adam McKay, A grande aposta não é
para pequenos investidores. Inflacionado de termos caros ao universo financeiro,
exige do espectador vultosas quantias de atenção do primeiro ao último minuto.
Meus neurônios quase pediram falência após a sessão. Só não o fizeram porque o
roteiro escrito pelo próprio McKay e Charles Randolph é hábil ao apostar no
humor enquanto apresenta os descaminhos de uma tragédia que poucos previram.
Um
bônus de palmas para a ideia divertida de convidar celebridades como a atriz
Margot Robbie, o chef Anthony Bourdain e a cantora Selena Gomez para traduzir
certas expressões do economês. Miriam Leitão que se cuide.
De
qualquer forma, com ou sem a ajuda desses “especialistas”, o importante ali é
menos o entendimento fino desta ou daquela operação na bolsa – praticamente impossível
para leigos – e mais a compreensão do quão selvagem é o sistema financeiro. Um
sistema cuja existência só se torna possível graças à ganância desregulada das
corporações (sublinhada na sequência em que o personagem de Byron Mann conversa
com o de Steve Carell), à ignorância do grande público (que pode acabar debaixo
da ponte, como se vê numa rápida cena), à cumplicidade míope das agências de
risco (os óculos da representante da Standard & Poor’s falam por si sós), à
omissão conveniente da mídia (também formada por corporações) e ao suporte do
Estado.
Fica
bem claro, ao final do longa, que a fatura daquela joint-venture fadada ao
desastre caiu no colo dos contribuintes americanos – e eles a continuam pagando até
hoje.
Embora
os meios de comunicação de massa venham espalhando que os Estados Unidos
ensaiam uma recuperação da crise em razão de uma “economia de mercado assentada
numa sólida democracia representativa e numa sociedade aberta” (o trecho aí foi
retirado de um recente editorial do jornal O
Globo), o que se tem visto é o aprofundamento da desigualdade por aquelas
bandas. Em Nova York, por exemplo, o número de moradores de rua quase dobrou na
última década – um fenômeno que tem se repetido em outras grandes cidades
americanas.
Ou
seja, enquanto nossas manchetes exaltam a retomada da atividade econômica na
América – o reino de todas as virtudes, a terra das oportunidades, o modelo de
nação a ser seguido por qualquer país que deseje prosperar –, ao mesmo tempo ocultam
o destino da riqueza gerada: os endereços mais caros da Park Avenue.
Por
essas e outras, não me espanto ao ver tantos que dependem do transporte público
esbravejarem por causa de 0,2% da CPMF – imposto que recai também sobre os
milionários – e emudecerem sobre os 10% a mais na passagem de ônibus ou sobre
as manifestações de jovens contra esse aumento abusivo. O que esperar de quem foi
domesticado, desde priscas eras, a buscar informação apenas naquele noticiário
espremido entre as novelas?